quinta-feira, 13 de novembro de 2014

MANIFESTAÇÕES SOCIAIS BRASILEIRAS E SUAS ARTICULAÇÕES ENTRE MEMÓRIA E IDENTIDADE

Tatiana D'Almeida Rodrigues
Bibliotecária e gestora de unidades de informação
Formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

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Resumo:

Na sociedade contemporânea multicultural, o indivíduo é afetado por diversas questões culturais, havendo uma interpenetração entre elas. Nos movimentos sociais existem diferentes subculturas, e o indivíduo participante apresenta características de uma ou de outra identidade. Outro aspecto recorrente neste contexto é atualização ou transformação de uma memória já existente e de lugares de memória, ajudando o indivíduo em seus processos identitários. Em 2013, no Brasil, muitas manifestações sociais ocorreram, e tornou necessários estudos e análises que tratassem especificamente deles. A presente pesquisa tem por objetivo analisar como a memória e a identidade se fazem presentes neste meio, investigando suas relações com a história e com o enunciado e a linguagem, procurando identificar como se dá o fenômeno da identidade entre os envolvidos e como a memória se faz presente. Utilizou-se a abordagem qualitativa, sendo os objetos de investigação as imagens produzidas durante as manifestações, à luz da teoria de Bakhtin. A coleta de dados se deu por pesquisa exploratória, e a análise através dos conceitos de dialogismo, enunciado e linguagem. Pode-se observar que os indivíduos se valem dos elementos da memória de forma a validar discursos, apoiando-os em discursos anteriores. Verificou-se também que as relações dialógicas somente se dão quando há uma rede de memórias prontas a entrarem em cena a partir da vivência de situações semelhantes àquelas. Foi visto, ainda, que no interior das manifestações sociais os indivíduos vivem com suas identidades em xeque, passando por várias transformações identitárias até reconhecerem, de fato, a própria face.

Palavras-chave: Manifestações sociais brasileiras 2013. Memória. Identidade. Enunciado. Movimentos sociais. Dialogismo.

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1 INTRODUÇÃO

Os movimentos sociais são um tipo de resposta da população a algo que está caminhando muito contrariamente aos seus desejos e reivindicações. O indivíduo inserido neste contexto está em constante processo de desconstrução e reconstrução, buscando se construir. Suas verdades, conceitos e perspectivas mudam, a ótica situacional e relacional está em constante movimentação e por isso sua identidade se apresenta de uma maneira mais flutuante do que nunca.

Tomado por este sentimento e contexto ele passa a ter contato com diversos grupos que formam uma coletividade; estes grupos não necessariamente compartilham dos mesmos padrões de uma cultura dominante. Conforme afirma Bastide (1960 apud CUCHE, 2002), são os indivíduos que entram em contato uns com os outros e não as culturas, porém este indivíduo pertence a grupos sociais, ou seja, na verdade as culturas entram em contato, mas não elas por elas mesmas, e sim por meio de seus indivíduos. Pessoas evocam conceitos, acontecimentos, exemplos, marcas de um tempo passado onde, na maioria das vezes, nem elas próprias estavam presentes, retomando assim símbolos, significações etc., como afirma Herkovits (1948 apud CUCHE, 2002) ao abordar o conceito de “reinterpretação”, afirmando que antigas significações são atribuídas a elementos novos ou novos valores mudam a significação cultural de formas antigas.

O Brasil tem sido cenário de diversas manifestações sociais, e estas questões de identidade, encontros entre culturas e retomada de elementos e significações da história vem se apresentando como fatos recorrentes nestes encontros. Uma série de redes de memórias são reavivadas e atualizadas nestas manifestações, sendo algumas passíveis de reinterpretação, como por exemplo memórias evocadas em nome da liberdade, da moral, da religião, da concepção de democracia, da filiação partidária, dentre outras. Elas são acúmulos e desgastes sociais e principalmente políticos, que tiveram como estopim o aumento nas tarifas do transporte público. Tendo ocorrido o estouro das manifestações, outras questões rapidamente se elucidaram entre os indivíduos, como: modos de governo, corrupção, abusos de poder e de religiosidade, precariedade dos serviços públicos, gastos excessivos com eventos internacionais, entre outras coisas.

Desta maneira, o objetivo deste trabalho é analisar como a memória e a identidade se fazem presentes nos movimentos sociais, investigando suas relações com a história e com o enunciado e linguagem, tomando como base as manifestações sociais ocorridas no Brasil em 2013. Objetiva-se, especificamente, identificar como se dá o fenômeno da identidade entre os envolvidos e analisar a presença da memória neste contexto. Utilizou-se a abordagem qualitativa, tendo como objeto de investigação as imagens produzidas durante as manifestações, sendo a coleta de dados por meio da pesquisa exploratória e a análise destes dados à luz dos conceitos de Bakhtin de enunciado e dialogismo.

2 METODOLOGIA 

Este trabalho teve uma abordagem qualitativa que, dentre outras características, “[...] busca significados em contextos social e culturalmente específicos, porém com a possibilidade de generalização teórica” (TERENCE; ESCRIVÃO FILHO, 2006). 

Teve como objeto de estudo imagens das manifestações sociais brasileiras ocorridas em 2013. Optou-se por escolher as imagens não pelo local onde ocorreram as manifestações, mas sim pelo seu conteúdo, de maneira a elucidar a homogeneidade das mesmas. 

Como instrumento para a coleta de dados foi usada a pesquisa bibliográfica, que abrange toda bibliografia já tornada pública como em jornais, revistas e livros (MARCONI; LAKATOS, 2003). Como fontes bibliográficas foram usados jornais e revistas on-line e páginas no facebook. Foram coletadas 13 imagens que melhor retrataram as manifestações do ponto de vista aqui estudado. Após a coleta dos dados, foi realizada a interpretação do material, entendidas aqui como formas de enunciações por meio de conceitos de enunciado, dialogismo e ideologia à luz de Bakhtin (2006), a fim de produzir sentidos para interpretação. 

3 CONCEITOS

Nesta seção serão abordados conceitos referentes ao tema, de maneira a validar teoricamente as análises.

3.1 Cultura e identidade

O homem simbologiza, ou seja, atribui sentido a uma coisa, objeto, som, cor, etc. e deste processo surge o símbolo e seu significado, que é a base da cultura, que por sua vez constrói, desconstrói e reconstrói as identidades (WHITE, 1972). Mais de uma cultura pode existir em uma única sociedade, e elas podem perfeitamente coexistir entre si. O indivíduo inserido neste meio social complexo dificilmente estará fechado em apenas uma identidade, pensar assim seria reduzi-la a um fenômeno estático, quando na verdade ela é algo absolutamente flutuante.

Para Cuche (2002), é mais prudente pensar em processos de identificação do que propriamente numa identidade única, pois, como o indivíduo está a todo tempo em contato com culturas diversas, ele está sempre em processo de recriação da sua identidade, às vezes até de maneira estratégica, conforme ele afirma quando diz que a identidade é vista como um meio para atingir um objetivo e que em função da avaliação de dada situação, o indivíduo utiliza seus recursos de identidade de maneira estratégica. 

É legítimo pensar a identidade como uma espécie de bricolagem, uma vez que o indivíduo capta aspectos e características das mais diferentes culturas e se apropria disto formando um todo final com um resultado ímpar (CUCHE, 2002). Assim, pensar em identidade é pressupor flexibilidade, mudança, escolha, liberdade, diferenciação, consciência, aproximação, desconstrução, reconstrução etc. como uma maneira de construção nas relações de trocas sociais. Desse modo, Bauman (2012, p. 17) contribui afirmando que

o pertencimento e a identidade não têm a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante negociáveis e revogáveis, e as decisões que o próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o pertencimento quanto para a identidade.


A identidade é intangível e ambivalente, por se afirmar na crise do multiculturalismo e ser tão complexa e transitória como é; “qualquer tentativa de solidificar o que se tornou líquido por meio de uma política de identidade levaria inevitavelmente o pensamento crítico a um beco sem saída” (BAUMAN, 2005, p. 12). É preciso, ainda, que se dê atenção à fala de Cuche (2002) quando este afirma que “[...] toda identificação é ao mesmo tempo diferenciação”; em outras palavras, é uma marcação de limites entre “eles” e “nós”, segundo as características do momento. Trata-se de uma fronteira social simbólica. Nesta mesma linha de raciocínio, Pollak (1992, p. 204) afirma que “a construção da identidade é um fenômeno que se produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de admissibilidade, de credibilidade [...]”.

3.2 Memória individual e coletiva

A memória, tanto individual como coletiva, é uma construção inteiramente social, construída coletivamente mesmo em suas manifestações mais individualizadas. A forma como os indivíduos se lembram e o conteúdo do que lembram é socialmente determinado. A construção, manutenção e atualização da memória social dependem estritamente da interação social (OLIVEIRA, 2012). 

Pollak (1992) afirma que a memória é constituída por alguns elementos essenciais para sua condição, que, a saber, são os acontecimentos, as pessoas e os lugares. Os acontecimentos podem ser vividos pessoalmente ou por tabela; os por tabela são vividos pelo grupo em que o indivíduo está inserido e que, no imaginário, tomam muita relevância, fazendo assim com que ele não saiba ao certo se participou ou não do fato. Neste sentido, Halbwachs (2003) afirma que a memória pode ser construída não somente pela experiência como também pelo que é contado e assimilado, lido e aprendido. Com as pessoas da memória acontece coisa parecida com o que ocorre quem os acontecimentos: tais pessoas podem realmente ter sido encontradas no decorrer da vida ou somente frequentadas por tabela, o que, assim, se transformam praticamente em conhecidas. Os lugares dizem respeito aos lugares da memória, que se ligam intimamente a uma lembrança pessoal ou coletiva, ou aos lugares fora do espaço-tempo da vida de alguém, que constitui grande importância para a memória do grupo e consequentemente para o indivíduo nele inserido (POLLAK, 1992).

Outro aspecto importante em relação à memória é que ela é seletiva. Nem tudo fica gravado, nem tudo fica registrado; sua organização se dá em função das preocupações pessoais e políticas, o que a define também como sendo um fenômeno construído, pois sofre flutuações em função do momento em que é articulada (POLLAK, 1992). Além disso, ainda segundo Pollak (1992, p. 204), a memória se revela também como um elemento constituinte do sentimento de identidade, envolvendo o “[...] sentido da imagem de si, para si e para os outros [...]”, que é a imagem que a pessoa adquire no decorrer da vida em relação a ela mesma. Neste sentido de negociação da memória, ela, “quando enquadrada pela história, já é resultado (uma representação) de processos e lutas políticas e embates ideológicos e são muito comuns para selecionar os acontecimentos de serão gravados na ‘memória de um povo’” (OLIVEIRA, 2012, p. 25).

3.3 Enunciados e linguagem

Ideologia, para o círculo de Bakhtin, é o universo dos produtos do espírito humano, ou seja, tudo aquilo imaterial ou de produção espiritual, bem como as formas de consciência social. Assim, ideologia é o universo que engloba a arte, a ciência, a filosofia, o direito, a religião, a ética, a política e inclusive o discurso. Este discurso, de acordo com os pensadores do Círculo de Bakhtin, é uma infinidade de enunciados que vão além das características meramente linguísticas e do diálogo propriamente dito; é um fenômeno que engloba, principalmente e antes de tudo, ideologias, signos, complexo de forças que nele atuam e condicionam a forma e as significações do que é dito, valores e avaliações que estão embutidas no sujeito, conforme pode ser ratificado por Faraco (2009, p. 47, grifo do autor), quando ele diz que

a significação dos enunciados tem sempre uma dimensão avaliativa, expressa sempre um posicionamento social valorativo. Desse modo, qualquer enunciado é, na concepção do Círculo, sempre ideológico – para eles, não existe enunciado não-ideológico. E ideológico em dois sentidos: qualquer enunciado se dá nas esferas de uma das ideologias [...] e expressa sempre uma posição avaliativa.

Assim, pode-se dizer que não há enunciado neutro, muito pelo contrário, todo discurso possui um significado. A colaborar com esta perspectiva, Bakhtin (2006, p. 29) nos diz que tudo o que é ideológico é um signo e que “sem signos não existe ideologia”. Tais vozes sociais se encontram e dialogam, e esta dialogização estabelece uma dinâmica interessante: “[...] elas vão se apoiar mutuamente, se interlumiar, se contrapor parcial ou totalmente, se diluir em outras, se parodiar, se arremedar, polemizar velada ou explicitamente e assim por diante” (FARACO, 2009, p. 58). Além disso, o círculo de Bakhtin considera que as vozes sociais estão intrincadas numa cadeia de responsividade: os enunciados respondem e provocam respostas. O Círculo de Bakhtin enfatiza ainda que, muito mais importante que o diálogo em si, são as forças sociais que nele atuam e as significações dos enunciados ali presentes. A isto ele chamam de relações dialógicas ou dialogismo. E Este dialogismo não é apenas uma forma composicional do discurso, mas sim relações de sentido que se estabelecem entre enunciados, a partir da interação verbal (FARACO, 2009). Assim, os enunciados estabelecem relações dialógicas a partir do momento que estão lado a lado, isto é, no mesmo sentido. “Mesmo enunciados separados, soltos no tempo e no espaço e que nada sabem um do outro, se confrontados no plano do sentido, revelarão relações dialógicas” (BAKHTIN, 2006, p. 124; FARACO, 2009, p. 65).

Para melhor compreensão do que são as relações dialógicas para o Círculo de Bakhtin, é preciso entender que


as relações dialógicas são, portanto, relações entre índices sociais de valor [...] e constituem parte inerente de todo enunciado, entendido não mais como a unidade da língua, mas como unidade da interação social; não como um complexo de relações entre palavras, mas como um complexo de relações entre pessoas socialmente organizadas. (FARACO, 2009, p. 66).


Neste sentido, mais uma consideração de Bakhtin vem asseverar o já dito, no momento em que ele diz que “ser significa se comunicar, significa ser um para o outro e, pelo outro, ser para si mesmo. [...] Eu não posso me arranjar sem um outro, eu não posso me tornar eu mesmo sem um outro; eu tenho que me encontrar num outro para encontrar um outro em mim” (FARACO, 2009, p. 76). Os enunciados são sempre discurso citado, mesmo que não sejam percebidos assim. As chamadas “palavras que perderam as aspas”. As palavras, para Bakhtin, “são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios”, sendo “o indicador mais sensível de todas as transformações sociais” (BAKHTIN, 2006, p.40).


3.4 Movimentos sociais

Para Castells (2013) os movimentos sociais são as alavancas das mudanças sociais, que se originam da precariedade das condições de vida e que tornam insustentável a existência cotidiana para grande parcela da população. Segundo ele, os movimentos sociais são desencadeados por emoções, onde o gatilho é a raiva e o opressor é o medo:

a raiva aumenta com a percepção de uma ação injusta e com a identificação do agente por ela responsável. O medo desencadeia a ansiedade, associada à evitação do perigo. Ele é superado pelo compartilhamento e pela identificação com outros num processo de ação comunicativa. Então a raiva assume o controle, levando ao comportamento de assumir os riscos. (CASTELLS, 2013, p. 158).

Esta temática de movimentos sociais surge por volta de 1840 (SCHERER-WARREN, 1987), e tem o início de seus estudos na década de 20, quando começou-se a preocupação de entendimento sobre o comportamento dos grupos sociais (GOHN, 1997). Até 1960, os estudos eram especificamente as questões do movimento dos operários, das lutas sindicais. As ciências sociais, nos anos 50 e 60, abordavam os movimentos no contexto das mudanças sociais como fontes de conflito e tensões, fomentadores de revoluções, revoltas e atos considerados anômalos no contexto dos comportamentos coletivos vigentes (HEBERLE, 1951 apud GOHN, 1997). Na teoria marxista, até os anos 60 do século XX o conceito de movimento social esteve associado ao de luta de classes. O conceito evolui conforme o passar das décadas, absorvendo novas problemáticas e novos cenários sociopolíticos. Nos anos 90, o tema se ampliou e passou a enfocar outras dimensões das ações coletivas, como os protestos sociais. 

Ressalta-se a importância da comunicação nos movimentos sociais do século XXI, “onde as pessoas só podem desafiar a dominação conectando-se entre si, compartilhando a indignação, sentindo o companheirismo e construindo projetos alternativos para si próprios e para a sociedade como um todo” (CASTELLS, 2013, p. 166). Ele aponta para um padrão comum desses movimentos, desenvolvendo suas características semelhantes: são conectados em rede de múltiplas formas, apesar de se iniciarem na internet se tornam um movimento ao ocupar o espaço urbano, são simultaneamente locais e globais, são espontâneos em sua origem e geralmente desencadeados por uma centelha de indignação, são virais pelo caráter instantâneo de compartilhamento, passam da indignação à autonomia, não possuem liderança, criam companheirismo, possuem redes horizontais de liderança, são profundamente autorreflexivos, raramente são propragmáticos, são voltados para a mudança dos valores da sociedade e, por fim, são muito políticos num sentido fundamental (CASTELLS, 2013). 

No geral, as novas mobilizações têm como principal explicação o desencanto com a política, a indignação diante do cenário de corrupção, a falta de ética, o mau uso do dinheiro público e a falta de vontade política dos dirigentes (GOHN, 2013). 

As manifestações populares/sociais, ocorridas em grande parte do território nacional brasileiro em 2013 traduzem a grande insatisfação do povo brasileiro em relação as formas atuais de operação da democracia, que estão estremecidas pela corrupção e não apresentam canais entre o governo e a sociedade (CARVALHO, 2013 apud VASQUES, 2013). 

Estes protestos tiveram como motivo inicial a luta pelas reduções das tarifas dos transportes públicos, e sua organização foi feita, principalmente, via internet, por meio de redes sociais e mecanismos diversos por alguns grupos que se destacaram no decorrer do processo. Diversas capitais e principais cidades brasileiras participaram destas manifestações promovendo atos e passeatas em locais representativos, como prefeitura de suas cidades, Câmaras dos deputados, grandes espaços urbanos onde anteriormente já haviam sido palco de outros espetáculos deste tipo, como avenidas, Teatros Municipais ou Esplanada dos Ministérios, no caso de Brasília. Os protestos brasileiros tiveram uma repercussão internacional muito forte – visto que o Brasil tem sido destaque por sediar eventos mundiais importantes, como a Copa das Confederações e a Jornada Mundial da Juventude, ambos em 2013, a Copa do Mundo, em 2014, e as Olimpíadas em 2016 –, ganhando adeptos em várias partes do mundo. Muitos outros motivos foram sendo incorporados às manifestações, como os gastos excessivos com eventos internacionais (neste caso, Copa do Mundo a ocorrer no Brasil em 2014 – em detrimento de investimentos necessários em saúde e educação precários), descontentamento com a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 37, com a “Cura gay” e com o Estatuto do Nascituro, dentre outros. Novas ações também foram organizadas, como as ocupações dos espaços públicos e atividades culturais e de lazer nesses locais. Outro fato marcante foram as prisões dos administradores de páginas em redes sociais, como os Black Blocks, Anonymous e Mídia Ninja, que agiam sempre em apoio aos manifestantes. No interior das manifestações muitos resgates de memórias eram feitos, ideologias retomadas, filosofias revividas. Em alguns momentos as manifestações se subdividiram em pequenos grupos, como os que representavam partidos políticos, os que não queriam ser representados por nenhum partido, sindicalistas, Diretórios Acadêmicos etc., o que ocasionou brigas e desentendimentos internos. Os indivíduos faziam alusão a palavras como nacionalismo exagerado, fascismo, ufanismo, poder do povo, ditadura, democracia, entre outros, retomando nitidamente ideologias dos tempos passados e reinterpretando de maneira a afirmar as ações do presente.

4 ANÁLISES E RESULTADOS

Os enunciados estão no interior da corrente da comunicação social (VOLOSHINOV, 19? apud FARACO, 2009). A análise que aqui é feita é a análise das forças sociais que atuam no diálogo, suas dimensões valorativas e a dialogicidade consequente destes aspectos, de modo a evidenciar as possíveis relações com a memória e a identidade, tomando como ponto de partida a teoria de que todo discurso é revestido de uma ideologia.

Assim, as figuras abaixo foram analisadas a partir destes conceitos.





A cura gay, figura 1, e o Estatuto do Nascituro, figura 2, foram dois assuntos que estiveram muito em pauta no início das manifestações. Ser favorável ou contrário a uma ou outra proposta traz à tona a questão identitária do indivíduo inserido neste contexto. Quando se discursa “Fora Feliciano” ou “Abaixo ao estatuto do nascituro”, na verdade o que está sendo expresso é a dissemelhança (não-identidade) em relação a tal coisa. No momento em que o discurso se diz contra ao, por exemplo, estatuto do nascituro, está sendo marcada a diferenciação em relação às pessoas que são a favor, e estabelecendo identificação com os que também são contra. Aqui é retomada a afirmação de Cuche (2002) quando ele diz que toda identificação é ao mesmo tempo diferenciação. Os manifestantes, enquanto povo, não estão se sentindo representados. Em relação à figura 3, pode-se notar a afirmação identitária pela negação no sentido de que somos os pais da próxima revolução e não os filhos, como está sendo dito. Há neste enunciado um rompimento com o passado, passado este que se nega e ao qual não se quer ter nenhum tipo de vínculo, e um apontamento para o futuro, onde se quer ter o controle da situação (somos os pais) e novas formas de fazer desvinculadas e diferentes de tudo o que já foi feito até agora. Esta questão da autonomia está muito fortemente presente no que tange a identidade, pois, conforme foi citado, a identidade é um processo contínuo de redefinir-se e de inventar e reinventar sua própria história (BAUMAN, 2005). E mais que isso, a identidade é ambivalente, tendo a liberdade necessária e suficiente de percorrer seus próprios mapas, traçar seus próprios caminhos, se enveredar por quaisquer ideais, tomar para si um ou outro aspecto mesmo que eles pareçam incoerentes entre si. É toda esta flexibilidade e desprendimento que caracteriza a identidade e que, cada qual em sua dosagem, está sendo expresso nas figuras 1, 2 e 3.




É inevitável, ao presenciar as manifestações brasileiras de 2013, não rememorar os acontecimentos de 1968, que marcaram o país assim como agora. Embora os momentos históricos sejam diferentes, o cenário das ruas e os protagonistas são similares. Para Pollak (1992), este cenário evidencia os elementos constitutivos da memória, sendo o momento histórico o acontecimento, o cenário das ruas o lugar e os protagonistas (os manifestantes) as pessoas. Ao se apropriar dos mesmos discursos de outrora, em contextos , faz-se uma transformação, uma atualização da memória. Mesmo que não se tenha participado da Passeata dos Cem Mil, em 1968, considera-se memória, uma memória vivida por tabela, ou seja, tal memória adquire tanta relevância em determinado momento que instantaneamente desperta quando é visto, presenciado ou vivido algo semelhante. 

A figura 4 aponta para um deslocamento e atualização de sentido, uma vez que traz o espírito e memória de 1968 para as manifestações atuais de 2013, passando um entendimento de que dois casos absolutamente importantes na história do Brasil podem se encontrar e dialogar mesmo que em tempos e contextos diferentes.

A questão do apartidarismo expressa na figuras 5 diz respeito a reapropriação de conceitos cuidadosamente selecionados e, por isso, reconstruídos, para reforçar e reafirmar posições políticas e ideológicas com enunciados que ilustram o caráter seletivo da memória, onde sua organização se dá em função das preocupações pessoais e/ou políticas.




A figura 6 é a capa de um quadrinho chamado V de Vingança, que é inspirada em uma personagem real que viveu no século XVI, conhecido como Guy Fawkes, e que é um símbolo bastante adotado pelas manifestações atuais. Percebe-se então que são três cenários diferentes, separadas pelo tempo e pelo espaço, mas que dialogam entre si criando todo um deslocamento e atualização de sentidos: O Guy Fawkes, o quadrinho V de vingança (mais conhecido posteriormente pelo filme homônimo) e o uso da máscara deste personagem. Fawkes se desenvolveu juntamente com seu ideal de liberdade e luta contra a opressão, e deste contexto surgiu o quadrinho V de Vingança, de Allan Moore.

Revestidos deste caráter ideológico, histórico e significativo, a imagem da máscara foi utilizada ainda para fazer menção ao vinagre, conforme a figura 7, que era utilizado para amenizar a respiração do gás lacrimogênio lançado contra os manifestantes. A expressão “V de vinagre”, juntamente com a máscara de Guy Fawkes, remete ao “V de Vingança”, que desloca todo o significado de luta contra a opressão, de levante contra o governo e de poder do povo para os dias atuais. Assim, podemos dizer que há uma dialogicidade entre as imagens 6 e 7, que possuem o mesmo significado mesmo em tempos e espaços tão distantes e distintos.

As figuras 7 e 8 também possuem caráter dialógico, uma vez que se utilizam de significados subjetivos expressos em cada detalhe, enunciando assim muito mais do que aparentam ou do que está escrito. No momento que vestem o Carlos Drummond de Andrade de manifestante com a máscara de Guy Fawkes, o cobrem com a bandeira do Brasil e o colocam com um cartaz contra a PEC 37, pressupõe-se a interpretação e a ressignificação do ponto de vista da memória social, a partir da vinculação simbólica do conteúdo atual com aquele expresso por um monumento, que reitera a memória de Drummond: um ator social com reconhecido valor atribuído por uma sociedade. Tal vinculação atribui um novo significado ao movimento e às intenções dos manifestantes. Tendo tudo isto em mente, pode-se considerar a estátua de Drummond um coparticipe das manifestações.




Foi incluída, nos movimentos, a causa da desmilitarização da PM na pauta de reivindicações. Nas manifestações de 2013, Amarildo foi uma vítima da PM assim como foi o estudante Edson, também morto pela PM durante as manifestações de 1968. Estes dois acontecimentos que num primeiro momento nada tem a ver um com o outro, que estão em tempos e espaço absolutamente diferentes, dialogam entre si, significando o mesmo enunciado: os abusos e arbitrariedades da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Foram acontecimentos ocorridos no contexto das manifestações que foram simbologizados e utilizados como signos por parte dos manifestantes, um em 1968 e outro em 2013, com as mesmas funções. A repressão policial do Estado brasileiro diante dos setores populares da sociedade foi comum aos dois acontecimentos. 

Assim, as figuras 9 e 10 não apenas se apoiam e se completam como também estabelecem relações dialógicas e de deslocamento e atualização de memórias marcadas no consciente de um povo, que são reavivadas tão logo a pessoa se depare com algum fato ou acontecimento semelhante.




Para finalizar as análises, estas duas imagens, que são misturas de dialogicidade e memória discursiva.

A figura 11, ‘Fora Cabral, poder popular’ possui um enunciado que, se ativado pela rede de memórias e feita a ligação com o enunciado da figura 12, ‘Abaixo a ditadura, o povo no poder’, pode-se dizer que uma perfeita relação dialógica e mnemônica está sendo feita. Já apontamos para Bakhtin (2006), ao afirmar que não nos valemos das palavras do dicionário, mas sim dos lábios das pessoas, e que, desta maneira, os enunciados são sempre discursos citados. O que não deixa de acontecer entre as duas imagens acima. Para entender os enunciados é preciso antes informar que várias menções, em diversos momentos, foram feitas durante as manifestações ao governador Sérgio Cabral como ditador, muito embora isto não seja efetivamente caracterizado. Visto isso, pode-se entender que onde lê-se o enunciado ‘Abaixo a ditadura’, atualizando e reinterpretando pela memória, poderá ler-se ‘Fora Cabral’, e da mesma maneira ‘poder popular’ e ‘o povo no poder’.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das análises e dos resultados, pode-se observar que os indivíduos participantes das manifestações se valem inúmeras vezes dos elementos e atributos da memória de forma a validar seus discursos, apoiando-os em discursos anteriores, já que, como Bakhtin (2006) bem afirmou, quando disparamos um enunciado não nos utilizamos das palavras do dicionário e sim dos lábios das outras pessoas. Sendo assim, na verdade nos valemos da memória discursiva, seja ela vivida verdadeiramente ou por tabela. Pode-se perceber, ainda, que as relações entre memória social e identidade coletiva são constantemente vivenciadas, atualizadas e modificadas na / e pela linguagem. Por serem ideológicos, os enunciados e discursos estão inseridos em contextos socio-históricos que lhes atribuem significados específicos.

Verificou-se também que as relações dialógicas somente se dão quando há, por parte do receptor do enunciado, uma rede de memórias prontas a entrarem em cena a partir da vivência de situações semelhantes àquelas guardadas em sua memória individual. Esta, necessariamente, precisa ter sido produzida coletivamente, pois tanto o locutor do enunciado quanto o receptor precisam estar afinados quanto aos sentidos e as forças sociais expressos em tal enunciado.

A ideologia do movimento esteve presente em cada enunciado, em cada figura, em cada depoimento. Uma ideologia massacrada, dominada pelos padrões dominantes, que tem lutado com tanto vigor em busca de sua emancipação diante daqueles que os oprimem e tiram a dignidade e o frescor da vida. Ideologia esta que se alastrou e deu força às manifestações, não deixando com que a luta minguasse. No interior das manifestações sociais os indivíduos vivem a todo o tempo com suas identidades em xeque; eles passam por processos de abandono da identidade, retomada de outras, construção de novas, e convivem com estas questões a flor da pele, procurando se valer estrategicamente delas, em sentidos de afirmações ou negações identitárias.


REFERÊNCIAS


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quarta-feira, 5 de novembro de 2014

NUM PAÍS NO QUAL MORAR É UM PRIVILÉGIO, OCUPAR É UM DEVER

Genesis de Oliveira

Mestrando em Serviço Social UFRJ
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas - IBASE

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Na madrugada do dia 31 de outubro, estivemos junto ao Movimento de Trabalhadores Sem Teto ajudando na ocupação de um terreno em São Gonçalo.

Essa nova ocupação não pode, de forma nenhuma, ser analisada descolada do legado da Favela da Telerj (Lembre aqui o caso). A situação imobiliária no Estado do Rio de Janeiro vem tomando proporções incontroláveis, refletidas nas concretas expressões sentidas por todos os trabalhadores assalariados desse estado: o aumento dos alugueis, a segregação sócio-espacial, a gentrificação, o distanciamento dos pobres dos centros urbanos que concentram os empregos. A favela da Telerj teve uma peculiaridade histórica, dezenas de famílias sem nenhuma ligação ao movimento social ocuparam uma área de forma autônoma, certamente motivados pela indignação, pela falta de acesso à cidade, e, sobre tudo, pela falta de moradia e pelos altos preços dos alugueis na cidade. O legado da favela da Telerj foi uma provocação aos movimentos sociais urbanos ligados à questão da moradia no Estado do Rio de Janeiro, colocando como tema central a necessidade de capilarizar os setores sociais revoltados com os preços cada vez mais altos para se habitar na cidade.

Após alguns meses da ocupação do terreno da Telerj, o MTST retoma suas atividades no Rio através da ocupação em São Gonçalo. O município de São Gonçalo caracteriza-se por um enorme contingente populacional (mais de um milhão de habitantes), crescimento desordenado, precariedade dos serviços de educação, mobilidade urbana e saúde. Em um processo gradual, o município vem sofrendo com o aumento da especulação imobiliária nos bairros centrais, crescimento da violência, aumento do tráfico de drogas, falta de saneamento básico. O crescimento urbano desordenado tem rapidamente transformado as áreas de característica rurais, que se desenvolvem sem infraestrutura, e, com a ausência do Estado, temos o crescimento do poder paralelo. O atual cenário em São Gonçalo obriga inúmeros trabalhadores a alugarem imóveis precários, insalubres, em áreas de risco, dominadas pelo tráfico e em constante guerra com a polícia.

Situado a margem da BR, o município tem posição privilegiada para o deslocamento tanto para o Rio, quanto para Itaboraí. A ocupação Zumbi dos Palmares situa-se próxima a BR, local estratégico para a mobilidade urbana dos trabalhadores. Cerca de 200 famílias foram cadastradas pelo MTST, famílias oriundas de comunidades dominadas pelo tráfico em constante guerra entre facções e a polícia, familias que são cotidianamente submetidas a violações do direitos de ir e vir, vivem em moradias precárias, em áreas de risco, pagam aluguéis, ganham baixos salários.

Já na madrugada do dia 31 algumas famílias chegavam ao local, os olhos brilhavam de esperança ao ver aquele terreno, o coração pulsava de emoção, a consciência só conseguia sonhar com a possibilidade de um lugar para viver. Uma das falas que me marcará por toda vida, foi de uma senhora de uns 70 anos que dizia: “por mim eu já dormiria aqui hoje”, “vocês são minha família”. Naquele momento eu tive a dimensão do sonho de ter uma casa e da responsabilidade social que tinha com essa luta. Naquele momento eu percebi que aquela senhora reconhecia aquelas pessoas que ali estavam como uma nova família, pois embora muitos ali tivessem casa, estavam contribuindo para a realização de seu sonho. Para nós que nos envolvemos com as lutas por justiça social o sonho da casa própria é um direito, e, por tanto, um sonho que se sonha coletivamente.

Após 2 anos muito próximo as lideranças de São Gonçalo, é impossível não se envolver com a luta dessa população. Muitos dizem que São Gonçalo é terra sem lei… isso é MENTIRA! São Gonçalo é terra de luta, é terra de mulheres e homens guerreiros(as), é terra de Janetes, Emilias, Roses, Marias, Edmilsons, que estão lá na comunidade sem recurso e tocando uma luta para uma São Gonçalo mais justa e igualitária. São Gonçalo mexeu com meus sonhos, um lugar que aprendi a amar através de tantas pessoas guerreiras, lutadoras, cheias de garra que não fogem da luta e enfrentam o leão.

Na madrugada do dia 1º, uma invasão criminosa ateou fogo nos barracos, ainda temos pouca informação e pelo que sabemos as pessoas estão bem e reocupando o espaço. O ato de tacar fogo é simbólico, na verdade quando se queimam os barracos a tentativa é de queimar os sonhos, mas, lamentamos informar, disso vocês não serão capazes.

Dia 1º de novembro São Gonçalo acordou com a possibilidade de realização de sonhos antigos. Dia 1º de novembro São Gonçalo acordou com a possibilidade de avançar na construção de uma sociedade menos desigual.


Enquanto não tiver moradia vai ter luta sim! E o que me tranqüiliza é saber que o Gonçalense é povo de luta!

terça-feira, 28 de outubro de 2014

CINEDUCAÇÃO NO MAIS EDUCAÇÃO


Rosa Miranda

Integrante do Grupo de Pesquisa ALFAVELA/IEAR-UFF
Estudante da Graduação em Cinema-UFF

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O conteúdo deste relato não é exaltar ou depreciar o universo escolar. São impressões vividas empiricamente pela autora, que não pode se eximir dos fatos que ocorreram na unidade escolar onde trabalhou. Tomando o cuidado de não revelar nomes, sem uma visão romântica da função do professor ou de uma escola perfeita, o objetivo é fazer uma análise sobre o espaço escolar em contato com as novas tecnologias.
Certa noite, tomei conhecimento sobre o Programa Mais Educação. Achei muito interessante e queria saber mais sobre o mesmo, mas como meu tempo era curtíssimo, protelei, pesquisei na internet. Soube que, a partir de oficinas de diferentes campos, inclusive cineclube, vídeo etc, o Programa era uma iniciativa do Governo Federal que pretendia transformar o ensino público em um ensino de tempo integral
Um dia cansada do meu antigo trabalho, trabalho este que não me dava tempo para fazer nada do que eu gostava e que também não tinha nada a ver com o que eu estava estudando, fiquei entusiasmada me imaginando dando aulas.
Com o tempo, decidi saber mais sobre o Programa. Era uma forma de ganhar dinheiro e fazer algo que eu realmente gosto. Fui à Secretaria de Educação de São Gonçalo (cidade que eu residia na época) armada com meu currículo e minha declaração de escolaridade.
Conversei com a responsável e a mesma me disse que ligaria assim que tivesse alguma escola com meu perfil, que era muito difícil pedirem algo relacionado a minha área. Jornal e teatro era coisa comum, mas cinema nunca pediram.
Uma semana e nenhuma ligação. Decidi ir até lá, mas ela não estava. Peguei o número e ligava, dia sim e dia sim, sempre perguntando e querendo saber de alguma novidade. Um dia, ao ligar, ela disse: "Você veio aqui! É a garota do cinema! Tem uma escola, mas é longe. Vai querer mesmo?" Eu respondi: "Claro!". Ela avisou para eu ir até lá, pegar o número, o endereço da escola e o nome da diretora. Em 15 minutos eu estava na Secretaria para pegar um papel, um pequeno papel que mudou a minha vida!
Cheguei em casa e fui logo ligando e marcando uma reunião para segunda feira à tarde. Era uma sexta-feira, nem preciso dizer o quão ansiosa fiquei para acabar o fim de semana. Quando chegou segunda-feira, estava em cólicas. Ao meio dia já estava pronta e querendo que chegasse logo às 14 horas, porém, já estava dando a hora e o ônibus não chegava. Liguei para a escola avisando que estava à caminho, a diretora disse que me esperaria.
Cheguei na escola esbaforida às 15 horas. Na minha cabeça, como cheguei um pouco atrasada, achei que não conseguiria o trabalho. A diretora me recebeu sorrindo, se apresentou e pegou meu currículo.
- Já deu aulas para crianças? - questionou a diretora, de forma simpática.
- Sim, cursei o antigo curso normal, mas não o concluí. Montei na varanda da casa do meu pai uma creche na comunidade em que ele morava. Respondi, tentando parecer calma.
- Ótimo! Vou te mostrar a escola.
(E eu sorria, muito feliz).
- Você gosta de crianças?
Ela me fez essas perguntas enquanto andávamos pelos corredores da escola vazia. Os estudantes não estavam mais. Ela abriu a porta de uma sala pequena onde pude ver várias coisas entulhadas.
- Sim, adoro! – respondi, acompanhando e olhando o espaço pequeno onde ela disse que seriam as minhas aulas, muito diferente do que eu imaginei.
- Você deve ficar com essa sala aqui. Estamos em obra, vamos mudar, depois terá uma outra sala onde hoje é a de professores, mas não agora. Vai demorar, no momento é o que temos para vocês. Aqui são 25 alunos por turma no máximo e são 4 turmas. o pessoal da secretaria já te passou o valor?
- Sim. R$ 240 reais, certo?
- Isso. Outra coisa: aqui você vai pegar os piores alunos, os indisciplinados, os violentos, com mau comportamento, mau rendimento e apáticos. Você vai ter que ter voz ativa!
Não falei nada, mas a minha cara disse algo que ela respondeu:
- Qualquer problema é só falar comigo que eu resolvo.
Fiquei pensando como ela resolveria, Voltamos a sala da direção.
- Você começa na segunda-feira, tudo bem? E preciso de outra pessoa na quarta-feira também, pode ser?
- Pode, sem problemas.
- Então fica assim: segunda e quarta o dia todo, ok?
- Ok!
No final de semana planejei uma aula de apresentação e uma dinâmica de apresentação. Eles teriam que dizer o nome, a idade, mais um filme que já assistiram e gostaram. Depois eles iriam escrever em um papel 5 coisas que eles gostavam muito de fazer e 5 coisas que eles não gostavam nem um pouco de fazer.
Cheguei na escola às 9 horas, a aula seria às 10 horas. Arrumei as cadeiras em um círculo enquanto ouvia os gritos deles do lado de fora. Eu estava com um vestido retrô azul e um sapato preto, levemente maquiada, cabelos soltos. Queria causar uma boa impressão aos meus alunos. Saí para o pátio e eles estavam formando e orando ao Senhor, fiquei extremamente incomodada com a forma como eram tratados com gritos e deboche por parte dos inspetores e professores e pensei: “se o Estado é laico, porque na escola tem que rezar?” Entrei novamente para a sala e aguardei aquele ritual acabar.
Me apresentei falando meu nome, idade e filme que gostei de assistir, um filme compatível com a idade deles. Eles sorriam e não pareciam nada com o que a diretora havia dito, até chegar a segunda turma da manhã.
A segunda turma da manhã estava eufórica. Eles gritavam e brincavam. Através de nomes que não consigo mencionar aqui, dois estudantes começaram a se xingar porque, na folha que eu havia entregue com a atividade sugerida, um deles havia colocado o nome de uma das meninas daquela turma. Percebi claramente naquela discussão que havia uma espécie de “casta” dentro da favela. Dependendo do lugar em que se mora, você é de uma classe diferente e, com isso, acontecia o bullying dentro daquela escola. Fiquei atônita olhando para aquelas crianças, até que resolvi intervir e mandar eles pararem imediatamente. O sinal tocou e eles foram dispensados. Fiquei incomodada vendo a sala vazia e pensando no que tinha acontecido. Nada funcionou! Eles rasgaram o papel, não queriam sentar, uma loucura.
Veio a turma da tarde que era dos mais velhos e as injúrias eram piores. Ainda assim, consegui desenvolver atividades com eles, mas estava tão abalada com o que havia acontecido pela manhã que me desanimei na parte da tarde.
Fui para casa me recusando a acreditar no que tinha presenciado. Comecei a reler minha monografia que falava sobre O cinema na educação como formador de um novo público para o cinema nacional. Nela fazia uma discussão a partir de uma visão de mercado, pensando no crescimento do mercado audiovisual caso, desde a primeira infância, fôssemos acostumado a assistir filmes não pedagógicos. Tive vontade de rasgá-la.
Foi-se o primeiro dia. No segundo dia, pedi o aparelho DVD para exibir um filme na TV, já que o projetor ainda não havia chegado na escola. O DVD estava sendo usado numa turma em que a professora faltou e colocaram um filme para os alunos assistirem. Exibi os filmes num monitor de computador. Eram curtas do youtube. Eles reclamaram, mas, ao final, gostaram, apesar de eu ter uma certa dificuldade para fazê-los prestar atenção nos filmes e não nos computadores que, mesmo estando desligados, eles cismaram em teclar e colocar os fones.
Duas semanas depois de tentativas frustradas de fazê-los entender os filmes exibidos, comecei a alugar filmes de longa metragem para eles. Eles gostavam, mas o bate-boca continuava. Fiquei sabendo que haveria um encontro de educadores de cinema e vídeo na UFF no horário das minhas oficinas, pedi que a diretora trocasse meus dias naquela semana para que eu pudesse ir ao encontro. Avisei aos estudantes que eles ficariam com outra professora nos meus dias, mas que eu retornaria. Foi a melhor coisa que eu fiz! Não me arrependo!
Tive diversos insights com relatos de futuros colegas de profissão. Tive acesso a informações e materiais desconhecidos para mim até então. Depois de três dias de encontro, decidi que mudaria minhas aulas e minha postura diante dos educandos. Estava radiante, confiante e empolgada.
Resolvi começar do zero, coloquei as mesmas roupas do meu primeiro encontro com eles, cheguei na escola com outras atividades, levei minha câmera, filmes, 4 papéis 40 kg e pilot. Pedi para eles que fizessem o "estatuto da turma". Eles não sabiam o que era um "estatuto", daí então pegamos o dicionário. Eles entenderam que eram as regras do jogo daquela sala.
Para minha surpresa eles decidiram as mesmas regras que já estavam estabelecidas na escola, com poucas alterações, como o uso de celular, por exemplo. Eu mesma fui avisada pela diretora que havia uma lei federal onde dizia que não se pode usar celular nos espaços escolares. Essa regra foi mantida escondida, porque a turma mesmo questionou: "as professoras usam celular!".
Sem procurar dar repostas, e sem divulgar à direção propus continuar com o uso do celular. Acredito que o fato de eles terem autonomia de dizer SIM ou NÃO mudou a concepção deles de regras. Eles passaram a se policiar mais, foi muito interessante fazer eles perceberem que têm poder de decisão e mudar a visão deles de escola.
Em casa, fiquei pensando um jeito de acabar com as agressões entre eles. Decidi levar uma caixa de sapato que seria confeccionada por eles. Quando eles quisessem gritar, brigar ou xingar outro colega ou qualquer pessoa da escola, sugeri que escrevessem,  desenhassem, enfim, desabafassem, sem colocar o nome, depositando na caixa o desabafo. Essa caixa seria chamada de "Caixa de Pandora". Coloquei algumas folhas e lápis ao lado da caixa. Levei apenas uma caixa pequena, não sabia que eles queriam escrever tanto!
Na semana seguinte, tive que passar no shopping e coletar mais caixas, pois percebi que aquela caixa era muito pequena para eles. Levei então uma caixa para cada turma e eles decidiram que deveríamos abrir a caixa uma vez por semana. Decidiram também que algumas coisas ficariam na caixa, outras seriam descartadas para sempre.
Achei ótimo vê-los às vezes irem para o fundo da sala pegar um papel e rabiscar até esgotar, depois colocar na caixa e voltar pro seu lugar, pensei que iria ler eles se xingando, mas para minha surpresa eles depositavam ali todas as angústias deles, não só da escola como também da família, medos, colegas de fora…
Em outro encontro, eu levei feijões, copos descartáveis e algodão. Pedi pra eles plantassem e fotografassem a cada dia, dessa forma registrariam a evolução daquela planta. Infelizmente não deu certo, pois, como a sala ficava fechada quando não tínhamos aula, eles eram proibidos de entrar e não tinha como fazer. Eles ficaram frustrados e eu também. Tentamos então fazer em casa, porém, nem todos os pais deixavam as crianças usarem as câmeras. Tentamos novamente na escola, mas as faxineiras jogaram os copos fora. Ao fim, conversamos e chegamos à conclusão que nem sempre tudo vai dar certo, mas que tínhamos que tentar. Eles, apesar de chateados, seguiram em frente e uma das estudantes me disse: "Pelo menos tentamos, né, tia?". Respondi que sim e propus outra atividade.
Percebi que eu e aqueles estudantes estávamos mudando a forma como nos relacionávamos: eu confiava neles e eles confiavam em mim. Viramos cúmplices uns dos outros, nos meus almoços eles ficavam comigo.
Em outra ocasião, fizemos uma experiência com o som em um filme. Coloquei o som de uma propaganda do youtube para eles e pedi para eles criassem uma estória a partir dos sons ouvidos. Em seguida, pedi que eles assistissem a mesma propaganda sem o som e escrevessem quais sons eles imaginariam ouvir naquele vídeo. Depois, os alunos assistiram a mesma propaganda com som e ficaram intrigados com a diferença que fazia entre o que eles tinham escrito e o que estavam vendo. Muitas perguntas foram feitas e conclusões tiradas.
Em outro encontro, falei sobre os filmes mudos. Exibi um curta- propaganda de guerra do Chaplin, um filme raro. Depois exibi um curta de animação extra do DVD “Up - Altas Aventuras”, também mudo. Fiz algumas perguntas sobre qual a diferença entre um e outro e eles falaram sobre um ser preto e branco e o outro ser colorido; que um era antigo e o outro novo; que um era desenho e o outro pessoas de verdade. Alguns falaram que conheciam o Chaplin e o associaram ao Chaves, porque ele também era atrapalhado como o herói mexicano.
Durante a exibição, uma professora entrou na sala no momento em que Chaplin martelava um soldado nazista com um grande martelo. Neste mesmo dia, fui chamada à direção. Senti um frio na barriga como quando eu era estudante e era repreendida. A coordenadora ir na minha sala me chamar durante aquele encontro me incomodou. Fiquei pensando se havia ocorrido alguma coisa com algum educando meu. Neste meio tempo, deixei com os estudantes dois sacos de brinquedos doados por filhos de amigos. E também deixei com eles a câmera. Pedi para que eles pegassem os brinquedos e fizessem um filme mudo ou, no máximo, com o som de algum celular.
Na sala da direção, fui chamada a atenção por exibir um filme violento. Ouvi da diretora que eles não sabiam o que era Chaplin e que eu tinha dado pérolas aos porcos. Ouvi também que, a partir de então, ela teria que ver os filmes que eu estava exibindo porque um filme que diminui o policial não é bom para eles. Dizia ela que o filme tinha que ser condizente com a idade. Não respondi nada. Fiquei aborrecida e voltei a sala quieta, mas louca para dar uma resposta.
Ao chegar na sala, eles estavam filmando ainda. Fiquei quieta para não atrapalhar a filmagem. Um grupo colocou até música do celular. Fizeram uma briga de bonecos e um deles recriou uma parte do filme de Chaplin com os brinquedos. Eu não tinha ideia do que eles iriam fazer, mas peguei aquele material e pedi para eles não saírem por um momento que eu colocaria na TV para assistirem o que eles tinham acabado de fazer. Fui na direção e mostrei o que eles fizeram e a diretora. Ela então disse que não interromperia mais as minhas aulas e nem interferiria nos meus métodos, apesar de não concordar com eles.

Na semana seguinte, havia poucos estudantes devido à falta de uma das professoras da tarde. Assim, nos sentamos no chão e fizemos aviões de papéis e balões. Peguei a câmera e dei a eles o tema “liberdade”. Perguntei o que eles queriam filmar naquele dia. Eles quiseram ir a quadra e pediram para eu filmar eles pulando, correndo, se pendurando na trave do gol, estrelinha, cambalhota e rindo muito. Perguntei o que era para eles aquilo e eles gritaram: "Liberdade! Tô livre!".
Para a turma seguinte dei o tema "sonho". Enquanto sentávamos no chão, perguntei a eles: "qual é o seu sonho?". Os meninos queriam ser jogadores de futebol, um queria ser desenhista. Entre as meninas, uma queria ser médica, outra modelo e outra "cuidadora" de cavalo. Falei veterinária e ela concordou. Perguntei então: "qual desses sonhos vamos filmar hoje?".
Eles pediram para eu sair da sala e voltar quando eles decidissem. Eu concordei. Fui beber água e, quando voltei, eles queriam ir para a quadra. Gravaram 2 sonhos, o da médica e dos jogadores de futebol. A médica atendia um jogador que se machucava durante o jogo.
Para a primeira turma da tarde o tema foi "observação". Eles ficaram na sala porque a quadra estava ocupada e brincaram do jogo do "detetive". Eles sorteavam o papel e, em roda, o assassino piscava e matava as vítimas. Por sua vez, o detetive tinha que prender o assassino. Segundo eles, a câmera passava e observava o detetive e, por vezes, as vítimas.
Para a última turma do dia o tema foi "prisão". Decidiram brincar de "polícia e ladrão". Se dividiram em dois grupos, um sendo carcereiro e outro prisioneiros. Os prisioneiros se rebelaram e os policiais tentavam controlá-los com palavrões e agressões. Essa  foi bem complicada porque, quando estava muita algazarra e eu pedia para parar, eles diziam que eram atores e que estavam em uma cena.
Em alguns momentos, quando eles pediam, eu filmava. Achava muito interessante as associações feitas com os temas propostos, desde reação dos carcereiros e dos carcerários, como a relação que fizeram do sonho do jogador com a médica.
Neste período, precisei dar aulas nas segundas e terças. Eles reclamaram pois não foram avisados anteriormente. Mais uma vez, os estudantes foram deixados à margem das informações administrativas. Eu acordei com a direção a mudança dos meus dias, mas a informação não foi repassada a eles. Depois fui perceber que esta era uma problemática recorrente naquele e em outros espaços escolares.
Em outro encontro, passei a falar sobre documentários. Tentei utilizar filmes brasileiros e exibi "Ilha das flores", do diretor Jorge Furtado. Eles passaram a se cumprimentar com os polegares e indicadores como no filme. A discussão sobre o filme foi muito interessante, eles começaram a refletir um pouco mais sobre a realidade deles e a problematizar a escola.
Para contextualizar, devo dizer que nossa sala não tinha ventilador, muito menos ar condicionado, e que o calor era absurdo. No entanto, eles começaram a observar que em alguns espaços da escola, espaços aos quais eles não tinham acesso, havia ar condicionado, internet, água gelada…
Fiz a proposta de fazerem um documentário sobre a escola. Perguntei o que eles queriam filmar daquela escola. "Tudo", eles responderam. Perguntei o que eles queriam saber sobre aquele espaço, e eles responderam "sobre a merenda, sobre a direção, sobre a professora". Pedi para que eles se dividissem em grupos e escolhessem alguém da escola para entrevistarem com 5 perguntas previamente discutida entre eles e com a turma.
Um grupo decidiu me entrevistar, outro decidiu entrevistar a diretora, outros 3 grupos decidiram por 3 professoras diferentes. A elaboração das perguntas foi uma parte um pouco complicada, pois muitas delas, pelas polêmicas levantadas, além de me provocar certo desconforto, podiam me atrapalhar com a direção.
Perguntas como:
- Você come a merenda da escola? Se não, por quê?
- Porque você grita tanto?
- Você gosta do que você faz?
- Por quê na sala dos professores tem ar e na nossa não tem ventilador?
- Você se aborrece muito?
- Você acha que é uma boa professora?
- Você ganha muito para estar aqui?
Eu os orientei a falar sobre o documentário, entregar as perguntas antes, conseguir os entrevistados e fazer a entrevista no próximo encontro que seria na semana outra semana, ou seja: na terça eles fariam a produção e na segunda seguinte filmaríamos. Avisei que não iria me envolver, mas, ao final da aula, conversei com a diretora sobre a proposta de documentários e disse que eles iriam fazer a produção, conversar com os possíveis entrevistados, que perguntariam se seria possível na segunda, qual seria o melhor horário. Afirmei que tudo ficaria sob a responsabilidade deles.
Naquela mesma terça-feira, antes de sair da escola, a diretora me chamou de novo na direção. Disse que eu não iria fazer entrevista nenhuma, que eu parasse com essa história de documentário, que a minha oficina era de cineclube e não de vídeo, que ou eles mudavam as perguntas ou ficariam sem filme nenhum.
A maioria dos escolhidos disseram que responderiam as perguntas, exceto a diretora, por não se sentir à vontade com as questões. O grupo que entrevistaria a diretora ficou desanimado com o ocorrido. Perguntei a eles se não queriam entrevistar outra pessoa, mas eles foram irredutíveis. Sugeri que eles mudassem as perguntas e propusessem a mudança à diretora, mas eles imediatamente disseram não. Perguntei a eles o que poderíamos fazer, afinal, já que estava difícil resolver o impasse. Por fim, eles optaram por mudar as perguntas e eu concordei pra darmos prosseguimento a atividade.
Foram elaboradas novas perguntas, como:
- Você gosta do seu nome?
- Qual a sua idade?
- Você quer mais filhos?
- Você gosta do que você faz?
- O que você gostaria de ser se não fosse diretora?
Eles entregaram na direção e aguardaram o chamado desta. Quase no fim da tarde a diretora foi à sala e disse que poderia fazer a entrevista naquele momento. Eu estava com outra turma, porém, na mesma hora fui acompanhar o grupo que entrevistaria a diretora. Levei a câmera mas deixei a outra turma  sozinha por um tempo, enquanto eles assistiam ao que haviam filmado.
Alguns minutos depois, eles foram devolver a câmera e riam muito, disse a eles que não poderia assistir naquela hora, mas que, no próximo encontro, todos assistiríamos juntos. Logo em seguida, a diretora entrou na sala e me chamou à direção.
Após liberar a turma, fui à direção e a mesma estava irritadíssima. Disse que foi muito maltratada pelos meus estudantes, que ela não aceitava o que tinham feito com ela e que eu deveria repreende-los em sala, do contrário, expulsaria todos. Como ainda não tinha assistido a filmagem deles, não pude debater, só afirmei que conversaria com eles assim que entendesse o que havia acontecido de tão ruim. Ela disse que eles haviam modificado as perguntas.
Em casa, assisti ao vídeo e me preparei para uma conversa que estava marcada para a semana seguinte com a diretora. Pensei em me eximir da culpa, dizer que foi responsabilidade deles, que eu não tinha nada a ver com isso, mas achei, no mínimo, inescrupuloso da minha parte fazer isso. Assumi minha posição como mediadora daquela turma e responsável por propor esta atividade. Conversei com a diretora sem me desculpar e resisti para que nenhum deles fosse criminalizado pela ação espontânea de ter as respostas que eles queriam. Apesar de contrariada por eu ter me colocado a favor deles, a diretora não me dispensou da escola.
A conversa com a turma foi a pior parte para mim. Eles estavam muito apreensivos. Fiz um circulo no chão com eles e falei que a atitude que eles tiveram não havia tido um resultado positivo. Eles não conseguiram obter as respostas que queriam e ainda causaram um desconforto entre eu e a diretora. Sugeri que eles fossem conversar com a diretora e serem verdadeiros ao expor os motivos que os levaram a fazer o que fizeram. Analisei a técnica, disse que constranger o entrevistado não era o ideal, eles assim o fizeram e depois desse incidente não houve mais embate da direção comigo.
Após a exibição de um filme, percebendo que alguns deles tinham muita dificuldade de se expor, resolvi fazer um questionário com perguntas técnicas sobre a obra. Quem respondesse corretamente receberia uma paçoca, já que o programa não permitia avaliações pedagógicas. Atualmente considero problemática essa adestração, mas como na época ainda não tinha os debates que tenho hoje sobre o assunto, consegui obter resultados. Mas, devo admitir, ainda hoje questiono-me se os bons resultados foram pela paçoca ou pelo real interesse em saber do filme.
A diretora não mais entrou em embate comigo, mas tempos depois, um dos meus colegas foi expulso do programa por mal comportamento e, enquanto todas as professoras diziam "ainda bem!", eu dizia "que pena, é menos um aqui comigo".
Em outro encontro percebi o quanto eles adoravam histórias de terror. Fiz uma pesquisa de curtas-metragens desse gênero e exibi na parede da sala com datashow, que foi cedido com muito medo pela direção, pois acreditavam que eu não conseguia operar o equipamento. Depois de muita insistência, consegui não só provar que sabia operar o aparelho bem como ensinar as professoras que se interessavam em aprende a operá-lo.
Alugava filmes em uma locadora próxima à escola com meu próprio dinheiro, depois descobri que a escola poderia me ressarcir. Passei a dar as notas para a professora e ela sempre me reembolsava o valor.
O resultado de um ano de aprendizado naquele universo é a certeza que na sala de aula me sinto realizada, que naquele espaço, mesmo com todas as suas problemáticas e contradições, ainda é um local de formação e autoafirmação, de criação, de identidades e de manifestações culturais das mais diversas.
Tive um contato mais próximo, empírico, em uma unidade educacional dentro de uma comunidade carente. Consegui, mesmo com meu "olhar de fora", ter uma visão diferente daquela romantizada nos filmes que falam de escolas.
A minha visão de escola é que esta é uma instituição que não faz uma reflexão da sua prática e tem uma visão muito “idebizada”, se é que posso dizer isso desta maneira, muito mais preocupada com resultados irreais e nem tampouco coerentes, do que com o resultado real que faz o indivíduo refletir sobre a sua realidade.