DIREITO PENAL E ESCOLARIZAÇÃO DAS CLASSES POPULARES:
REBATIMENTOS E ATRAVESSAMENTOS
Rodrigo Torquato da Silva
– UFF / ALFAVELA-CNPq
O objetivo do presente
artigo é apresentar os resultados de uma pesquisa na qual se faz uma reflexão
analítica acerca das interfaces existentes na relação entre os
discursos-práticas norteadores do Direito Penal e os seus rebatimentos nas
práticas-discursos pedagógicos desenvolvidas numa escola pública que atende,
predominantemente, estudantes das classes populares[1].
A
pesquisa traz consigo uma relação com outros trabalhos do Grupo ALFAVELA, que
atua em quatro municípios do Estado do Rio de Janeiro (Niterói, Angra dos Reis,
Duque de Caxias e a favela da Rocinha, situada na Zona Sul da cidade
“maravilhosa”), e foi realizada na Escola Municipal Diógenes Ribeiro de
Mendonça, pertencente à Rede Municipal de Ensino de Niterói, que atende a
estudantes que se encontram nas séries iniciais do Ensino Fundamental.
Esses estudantes compõem
um quadro que apresenta uma certa especificidade: as suas comunidades de origem
se encontram em uma região fronteiriça entre os municípios de Niterói e São
Gonçalo, fato que apresenta peculiaridades nas situações e acontecimentos do
cotidiano da escola.
O trabalho visou, além do
objetivo de levantamento e análise dos dados, utilizar os recursos audiovisuais
na intervenção das práticas escolares, através da implementação de um processo
dialógico que teve como ponto de partida as leituras que os estudantes
partícipes fazem de sua realidade, entendendo que a compreensão crítica gera-se
na prática de participar e de refletir acerca da própria inserção no mundo.
BREVE RELATO DA EMPIRIA
A
chegada na escola do projeto de pesquisa "Imagem, Som e
Alfabetização" se deu em 2011. Em uma reunião pedagógica ordinária, nos
turnos da manhã e da tarde, apresentamos aos professores, à equipe
técnico-pedagógica e à Direção a síntese desse Projeto.
No
início de 2012, já contemplados pelo edital FAPERJ, fizemos uma reunião para
apresentar como se daria a operacionalidade do Projeto e como dialogaríamos com
a rotina da escola. A nossa proposta, de certa forma, delineava-se
cartesianamente em três movimentos: a) de um horário para estar regularmente
com os estudantes (algo em torno de 3 horas) em um dia na semana, nos dois
turnos; b) de uma sala que comportasse com qualidade os equipamentos, os
estudantes e nós (pesquisadores e bolsistas, que na soma éramos nove – o
coordenador, os dois bolsistas de treinamento e capacitação técnica –
professores da escola, os dois bolsistas de iniciação científica, as três
bolsistas "jovens talentos", vindas do Ensino Médio de uma escola
parceira, e um jornalista – que esteve todo tempo como voluntário); e c) da
parceria das professoras que apontariam 30 alunos (sendo 15 estudantes por
turno), que apresentassem três tipos de “problemas” com os quais a escola
admitisse não estar conseguindo lidar: 1- dificuldades de aprendizagem; 2-
histórico de violência na escola; e 3- apatia.
Nosso
objetivo inicial de trabalho com os estudantes era bem simples: exibir trechos
de filmes e problematizá-los a partir da trocação
de ideias[2]. A
proposta era apresentar aos estudantes o universo do audiovisual tentar aproximá-los
não somente de uma linguagem tecnológica de perspectiva crítica. Paralelamente
à exibição dos filmes e após as conversas, conduzimos os processos sugerindo
que os estudantes manuseassem os equipamentos disponíveis (câmeras, fones,
microfones, tripés) e fossem se familiarizando com os primeiros códigos da
linguagem tecnológica do audiovisual, como "focar/desfocar",
"dar o zoom", "dar o rec", segurar a câmera e
movimentá-la lentamente, montar e desmontar o tripé etc.
Foi
possível perceber que os filmes que não abordavam diretamente temas atrelados
ao dia a dia dos estudantes e que se passavam em contextos longe de suas
realidades não eram capazes de mantê-los concentrados e, por consequência,
potencializar as discussões em sala, por mais que provocássemos os debates. Por
sua vez, os filmes que traziam como cenários as favelas, escolas públicas e
nuances das tensões e dos códigos desses contextos (como, por exemplo, as
disputas territoriais entre facções) eram mais potentes nesse sentido, com uma participação
mais intensa dos estudantes que, com clareza e segurança, demonstravam
verbalmente conhecimentos acerca dos assuntos tratados. A indagação mais
intrigante que emergiu desse processo foi: quais são as matrizes que imprimem
no estudante o estigma de que ele tem problemas para aprender?
Uma constatação importante foi a de que os
recursos audiovisuais entram como um detonador de múltiplas alternativas de
processos subversivos aos silenciamentos e aos sistemas moedores de corpos
inadaptáveis. Transformando a escola num espaço aglutinador dessas
alternativas, eles desobstruem as artérias que ampliam os fluxos para outras
expressividades possíveis, para além da necessidade de uso das habilidades de
decodificação da língua escrita. Permitem, com isso, chegar ao que poderíamos
denominar de registros imagéticos, ou seja, um conjunto de possibilidades
imagético-discursivas das experiências vividas nos cotidianos e nos contextos
de inserção socioculturais, bem como o registro-denúncia da dramaticidade existencial
das crianças, por elas mesmas.
Através
da pesquisa, a escola, como espaço de possibilidade de expressão audiovisual,
permitiu aos estudantes tachados profeticamente como meninos que não têm jeito a “ajeitar-se” desajeitando o modelo de
escola que os profetiza como aqueles que têm problemas de aprendizagem. Há, na
operacionalização dos equipamentos, uma possibilidade de demonstração factual
de que os “conteúdos” ensinados durante as “trocações” de ideias para os
estudantes são convertidos, diante de todos, em ação-comprovação da capacidade
que eles têm de aprender a fazer o que é ensinado.
A
demonstração dada por cada um daquilo que apreendeu tanto na operacionalização
dos equipamentos quanto no planejamento das filmagens desconstrói a profecia da
escola. Todos podem se ver (e demonstrar isso ali) aprendendo-apreendendo os
“conteúdos” complexos e sistematizados de elaboração dos roteiros de vários
tipos. Mesmo aqueles que não dominavam a contento a habilidade de decodificação
do código linguístico escrito, aprenderam a elaborar roteiros em modelos storyboard, a elaborar coletivamente o
planejamento das sequências de filmagens externas, e, fundamentalmente,
demonstraram sua capacidade criativa na construção das suas narrativas quando
criaram seus próprios roteiros e planos de filmagens para as suas histórias de
vida.
Ou
seja, o alijamento que até ali predominou na relação com a escola passou a ser
tensionado pela possibilidade de denúncia que o recurso audiovisual lhes
oferecia. Suas culturas e “valores comunitários” construídos nas relações
necessárias de solidariedade que o viver nas favelas impõe podem ser não
somente elaborados e exibidos na escola, mas ressignificados e compreendidos
por ela. A origem social dos estudantes bem como a dramaticidade das condições
existenciais podiam então ser vistas e contempladas pelas filmagens das
crianças, e, fundamentalmente, problematizadas e tematizadas como elemento
curricular.
Isso
permitiu sugerir um currículo-movimento-acontecimento
com tematizações contextualizadas. Tal currículo pode envolver temas sobre as
múltiplas infâncias que se encontram na escola, no bairro, no país, por
exemplo. Compreendemos que as imagens registradas pelas próprias crianças nos
seus contextos podem ser tensionadas com as que predominam no cinema, nas
novelas e nos comerciais das infâncias propagadas como universais. O principal
objetivo neste caso seria fazer com que a escola e as crianças compreendessem,
indagassem e debatessem a complexidade da sociedade de classes em que estão inseridas
e que não naturalizassem de forma fatalista os “fenômenos” econômicos e a
crueldade social que as atinge diariamente.
Portanto,
a ideia não era visar a um conjunto de conteúdos que as tornem “mais polidas”
culturalmente. Ao contrário, o objetivo principal tornou-se fazer com que elas
descobrissem o próprio potencial criativo e político e, ao utilizar as
ferramentas do audiovisual, explodissem a “naturalização” da sua condição
existencial dando outros sentidos à sua potência criativa.
Tudo
isso veio a nos provocar em pensar numa pedagogia diferente. Quem sabe, ao
invés de uma "pedagogia das artes", trabalharmos com a ideia de uma arte de pedagogias, no plural.
Pedagogias estas que se apropriem dos acontecimentos detonadores não como
elementos inviabilizadores dos processos pedagógicos, mas, em oposição a isso,
utilizá-los como elementos potencializadores de problematização temática do currículo-movimento-acontecimento. Em
vez de apontarmos os não-saberes escriturísticos formais, destacamos o espírito
crítico dessas crianças, sua sensibilidade estética, a qualidade das suas
análises de conjuntura local e, por fim, suas intuições políticas.
Entendemos
que tais pedagogias precisam manter, como premissa e termômetro da sua
potência, uma constante desconfiança da normalidade e das prescrições. É
preciso pensar seriamente sobre o quanto uma pedagogia impositiva de um modelo
civilizatório universalista, que visa ao enquadramento dos estudantes numa
lógica comportamental e de pensamento distante das que estão disponíveis nos
seus contextos, influencia na estigmatização da forma de estarem no mundo.
Para
que possamos alcançar algum êxito na escolarização desses estudantes não
podemos descartar a sua condição existencial. Nesse sentido, a relação
tempo/aprendizagem está no centro da questão, visto que a escola impõe uma
temporalidade de ensino-aprendizagem insuficiente ao que ela oferece de
tempo-contexto de aprendizagem (aprender em um ano conceitos e lógicas de
raciocínio às quais crianças de outras classes, as que se enquadram no modelo,
estão expostas desde que nascem, nos seus meios).
Um
estudante que passa a maior parte do seu tempo interagindo com sociabilidades,
linguagens, conceitos, nos espaços onde mora, considerados, pela escola, de
menor valor, de baixo calão, criminalizados, está fadado não só ao fracasso
escolar, mas à estigmatização. Assim, fica claro que o que temos é uma
injustiça tanto social quanto cognitiva, na medida em que se quer atribuir ao
estudante o seu fracasso escolar, sem levar em conta que a capacidade de
apreender conteúdos, conceitos, etc, está diretamente ligada à oportunidade de
estar inserido num meio que seja farto daquilo que é exigido pela escola.
Ou
seja, exige-se que os estudantes pensem, compreendam a partir de um tipo de racionalidade
imposta pela escola, sem considerar as ferramentas ou os instrumentos
conceituais que eles trazem, que são frutos das suas interações e experiências
no meio onde habitam, o que envolve discursos de classes, ideologias,
conceitos, conteúdos, formalidades e informalidades para a execução de tarefas,
além de violências cotidianas de policiais/milícias/traficantes. Pior que isso,
encontramos uma clara transferência de discursos criminilizadores bastante
comuns no universo do Direito Penal que pululam nos discursos pedagógicos
usados como justificativas do fracasso escolar. Essa foi a motivação que me
levou a tentar compreender a relação entre a expansão do Direito Penal e a
escolarização das classes populares.
EXPANSÃO DO DIREITO PENAL
Após
uma detida revisão bibliográfica é possível afirmar que a “fratura exposta” do
Estado é o Direito Penal. Essa é a esfera jurídica onde o Estado consegue criar
uma áurea mistificadora das relações de conflitos de classes, elementos
fundantes da sociedade capitalista, e transformá-los em algo fatalista, mágico,
místico, dado pela natureza ontológica humana. O Estado capitalista conseguiu
criar uma ideia falsa de linearidade histórica do Direito Penal, principalmente
no que tange ao Direito Penal brasileiro. Partindo de sua origem europeia e do
seu principal propósito, atender aos interesses da burguesia, o Direito Penal
foi criado para ser um sistema de mediação política (e também pedagógica) para
lidar com os conflitos oriundos da Revolução Francesa.
Aqui
no Brasil, passamos por um processo, denominado por alguns estudiosos, de
Colonialidade do Poder e do Saber[3] (MIGNOLO,
2005; QUIJANO, 2005), no qual fomos marcados a ferro e fogo pela colonização
eurocêntrica. Somos, hoje, no que tange à justiça criminal, o reflexo disso
somado às recentes reformas neoliberais tanto no Direito Penal quanto na
Política Criminal.
Para
o diálogo que nos interessa fazer entre o Direito Penal e a Educação Pública
das classes populares, fundamentalmente no que diz respeito à tese de fundo
aqui defendida, faz-se mister, à guisa de reflexão, discutir um pouco acerca do
processo e a lógica que levou à criação da Lei dos Crimes Hediondos, Lei
8.072/90.
Temos
aí, um marco, o início de um processo que instaura não somente a manutenção de
antigas crenças, mas, sobretudo, a criação de novas crenças, tais como as de
que a expansão e o recrudescimento do Direito Penal traz progresso para a
sociedade. O resultado prático de tais ideias consubstancia-se nos infindáveis
processos penais que resultam no esgotamento do sistema carcerário que, de
alguma forma, traz à tona um paradoxo, visto que implode a premissa fundante do
Direito Penal que é a promessa da ressocialização do cidadão-infrator.
Uma
consequência disso foi a criação de um “contrassistema” penal, dentro das
inúmeras e superlotadas carceragens do país, que não apenas desafia o Direito
Penal, mas, fundamentalmente, o próprio Estado Brasileiro. Também coloca em xeque a segurança e o
conforto da burguesia brasileira, que o criou e o mantém através dos seus
aparelhos de pressão política e de controle da opinião pública.
No
que se refere ao progresso esperado, promessa central do Estado Moderno em
todos os campos – educacional, social, econômico, político, jurídico, etc. – o
Direito Penal não contribuiu em nada que desse motivo de festejos para as
classes populares, quiçá para a sociedade brasileira. Longe disso, o que
vivenciamos no cotidiano é um sistema de opressão forte para com os mais
precarizados, os alijados do próprio sistema capitalistas. Isso nos induz a
pensar novamente no paradoxo sugerido acima: o de que o sistema penal, à medida
que se expande, caminha para sua autodestruição, pois, enquanto eficácia
sistêmica, não é autorrealizável. Isso deixa claro que o Direito Penal, como
possibilidade de normatização socializadora e justiça social, não é sinônimo de
eficiência, quiçá eficácia, como nos quer fazer crer os discursos
conservadores. O que temos aí é, em vez de justiça social, controle para a
manutenção da ordem vigente, leia-se, manutenção do status quo.
De
acordo com Juarez Cirino:
A prisão é o aparelho
disciplinar exaustivo da sociedade capitalista, constituído para exercício do
poder de punir mediante de privação de liberdade, em que o tempo exprime a
relação crime/punição: o tempo é o critério geral e abstrato do valor da
mercadoria na economia, assim como a medida de retribuição equivalente do crime
do Direito. Portanto, esse dispositivo do poder disciplinar funciona como
aparelho jurídico econômico, que cobra a dívida do crime em tempo de liberdade
suprimida, e como aparelho técnico disciplinar, programado para realizar a
transformação individual do condenado. (SANTOS, 2010)
Como
foi exposto, o Direito Penal nasce como instrumento legal de limitação e
controle visando à manutenção dos privilégios e a permanência das prerrogativas
do status quo. Por isso, não é contrário à sua natureza que
ele se transforme ou se transmute em direito bélico, focado na segurança
pública dos bens e das riquezas privadas. Em vez de Estado Democrático de
Direito, focado na educação-formação humana das gerações futuras, temos um
estado de garantias dos privilégios, logo, das desigualdades socioeconômicas e,
consequentemente, das injustiças sociais e cognitivas.
Direcionando
para a problematização e aprofundamento do tema, voltemos à Lei dos Crimes
Hediondos, Lei 8.072/90. Esta Lei, ou mesmo o sistema penal, não define
conceitualmente, principalmente no que diz respeito à adjetivação, o que são ou
como definiremos aqueles que cometem tais crimes. Se a Lei não os definem
claramente, a cargo de quem ficam as construções discursivas que adjetivam tais
criminosos? À mídia, qualificando-os de repugnantes, perversos, desumanos? Ao
senso comum, denominando-os de bandidos porcos, sanguinários, X-9, alemão?
Vemos
uma fenda aberta para a “liberdade” de criação de constructos discursivos[4], aqueles
verbetes que qualificam, requalificam e desqualificam os que praticam crimes.
Assim, não é a discursividade formal normativa do Direito Penal que tem o poder
total de criar e produzir os termos adjetivos daqueles que cometem crimes
hediondos, mas sim outros veículos ao seu modo. Está posta aí a ponte que
estabelece a ligação entre estilos de vida e modos comportamentais (estes
últimos não nascem do nada, mas do conjunto de possibilidade de socialização
disponibilizados nos espaços de interações em que estão inseridos) e os
estigmas criminalizadores atribuídos, por outrem, aos que praticam qualquer
desvio.
Cabe
ressaltar, porém, que a difusão dos estigmas e estereótipos é um movimento
diferente da adesão voluntária aos modelos que surgem e são propagados. A
adesão e o uso de adjetivos estigmatizadores são incorporados não somente aos
discursos predominantes e corriqueiros das classes populares, mas também passam
a fazer parte do vocabulário daquelas que os criaram. Esses discursos são difundidos
como verbetes universais de enquadramento adjetivo, e as classes que são
atingidas diretamente pelos malefícios e preconceitos muitas vezes aderem ao
uso desses adjetivos em função dessa capacidade que os meios de controles e de
difusão têm de transformar criações políticas em invenções mágicas, naturais,
que surgem sem autores e sem intencionalidade. Temos, aí, movimentos de adesão
distintos: de um lado estão os que podem difundir e aderir, caso lhe interesse;
do outro, aqueles que só podem aderir, visto que estão submetidos ao
poder-controle das Leis e dos mecanismos.
Um
exemplo recente é o caso da professora universitária da PUC-RIO e também do
reitor da UNIRIO que se envolveram, por via das redes sociais, num caso típico
de estigmatização de um modelo-estilo supostamente característico das classes
populares. O caso foi o de um passageiro que aguardava seu voo num aeroporto,
vestido de forma espontânea, com bermuda e camiseta (numa temperatura de 40 graus, é bom que se diga), e que teve
sua foto publicada, pela referida professora, em sua rede de relações, em que a
mesma insinuava que um aeroporto não era lugar para aquele tipo de gente
(leia-se; portador daquele estigma, o de classe popular ou, como nas palavras
do reitor da UNIRIO, um estilo sem o glamour que os daquele meio supostamente
são portadores). Isso revela, claramente, como se dá, no cotidiano, a
propagação dos estigmas.
Retomando
o debate, o Direito Penal e a Reforma de 1990 não definiu claramente, como
devem ser as normas penais, ou os conceitos qualificadores, para os agentes que
praticam as ações enquadradas no Crimes Hediondos. Portanto, a definição dos
agentes tornou-se uma questão política e de luta (resistências) de classes.
Para
muitos estudiosos do campo do Direito Penal e importantes juristas, duas
garantias, a taxatividade e a legalidade, foram extintas ou caducaram, com a
Reforma de 1990. A concepção técnica dos legisladores, à época, para definir os
elementos conceituais dos Crimes Hediondos (tráfico, tortura) não incluiu o
homicídio simples, por exemplo. O homicídio é a pedra angular que fez nascer o
Direito Penal. Não poderia ser desconsiderado, ou mesmo esquecido, na primeira
formulação de Lei dos Crimes Hediondos de 1990.
Segundo
Rogério Greco:
De todas as infrações
penais, o homicídio é aquele que, efetivamente, desperta mais interesse. O
homicídio reúne uma mistura de sentimentos – ódio, rancor, inveja, paixão etc.
– que o torna um crime especial, diferentemente dos demais. Normalmente, quando
não estamos diante de criminosos profissionais, o homicida é autor do único
crime do qual, normalmente, se arrepende.
(GRECO, 2012: p.130)
Portanto,
creio que podemos sugerir que tal desconsideração com o homicídio demonstra o
quanto a elaboração, a expansão e a consolidação da nossa legislação está refém
das grandes empresas de mídia, dos seus apelos e da capacidade de impor
diretrizes normativas, legisladoras, fazendo pressão e conduzindo a opinião
pública a pressionar o juiz togado, quiçá o Júri Popular. Ficou muito evidente
(e quem vivenciou esse período deve lembrar bem disso) que a expansão dos
elementos que caracterizam os crimes hediondos teve uma forte influência da
empresa Rede Globo de televisão, visto que concomitante ao período de
elaboração e fixação da Lei 8.072/90, aconteceu um crime que chocou a opinião
pública, envolvendo a filha da escritora e novelista, Glória Perez, a jovem
Daniela Perez. É inegável a influência deste episódio que conseguiu transformar
um crime passional, bárbaro, não resta dúvida, em crime hediondo. Isso
demonstra o quanto o nosso Direito Penal é subsidiário da pressão e dos apelos
midiáticos que com seus aparelhos ampliam exponencialmente o tamanho do fato
impondo a lógica do medo e do terror, sem dar margens para as garantias de
defesa e de direito de todos os Réus, condenados a priori.
Cabe
ainda uma última questão. Como o “Favor
Rei” ou “Favor Libertatis” (modo
de interpretar a Lei de forma mais favorável ao Réu) pode ser aplicado, de
acordo com o seu pressuposto doutrinário, diante dessa pressão? Ou, como
aplicar o princípio da “Verdade Real”
diante de tal exposição? O juiz, segundo esse preceito jurídico, não pode se
contentar com a verdade formal, aquela trazida pelas partes. O juiz criminal
deve, de ofício, buscar elementos comprobatórios que o leve a dirimir quaisquer
dúvidas. Em que medida essa busca não é contaminada pela capacidade criativa
das empresas midiáticas de construir provas e de publicizar, com isso,
possíveis decisões judiciais leigas?
Embora
ciente de que parte da doutrina condena o Art. 156, Inc. I, considerando-o
inconstitucional e, com isso, condenam a decisão de um juiz de buscar provas
para além das apresentadas formalmente pelas partes, antes mesmo de ser
provocado pelo ministério Público, é sensato considerar também que, na condição
de ser humano, o juiz, exposto a uma forte pressão da mídia e às suas provas
apresentas à opinião pública (antes de qualquer M.P.), tem a sua
imparcialidade, digo, sua subjetividade, completamente permeada pelas
informações-denúncias-“provas” ideologicamente e politicamente impostas. Ou
seja, trazendo o núcleo duro da questão aqui colocada. Como aplicar de forma
justa o princípio: em dúvida, decide pró-Réu, se este, hoje, já está condenado a priori?
REBATIMENTOS
E ATRAVESSAMENTOS
Pelo
que foi apresentado até aqui, é possível sugerir que as crianças das classes
populares já chegam na escola pública marcadas, a priori, sob os estigmas de uma “marginalidade” (tanto no sentido
de estarem à margem da sociedade formal quanto no sentido de estarem também à
margem da sociedade legal). Estamos falando de crianças que, em sua maioria,
são moradoras de favelas[5] e,
portanto, vistas por muitos professores/professoras e por agentes educacionais
(e isso é frequentemente constatado em nossas pesquisas), em função apenas de
seus comportamentos peraltas, ou até mesmo violentos, como criminosos em
potencial. Em alguns casos até mesmo como criminosos em miniaturas.
Diante
de tais constatações, vem a questão: quais os processos, sejam eles de
sociabilidades ou de discursividades incorporadas, que impactam o cotidiano
escolar e que permitem originar e/ou reforçar esse imaginário social, acerca
das crianças-estudantes das classes populares? Outra questão igualmente
pertinente é: em que medida o Direito Penal teria alguma relação com esse
imaginário, propagado nos contextos escolares através dos discursos de
professores e professoras e outros agentes da escola, já que os discursos do
Direito Penal têm um contexto específico de difusão e de uso conceitual e
prático, que se dá predominantemente na esfera do Direito propriamente dito?
Essas
crianças já estão, ao nascer, inscritas subjetivamente como infratores, em
função da própria condição existencial já que, enquanto moradores de favelas,
moram em terrenos sem documentação de propriedade, em espaços abandonados pelo
poder público, onde o “Estado de Direito” só chega com uso desmedido da força
ainda que sob o discurso de “pacificação”. Discurso este que perde totalmente a
credibilidade e reforça ainda mais a histórica desconfiança das classes
populares na ação do Estado infringente de Direitos: “Cadê o Amarildo?”
É
bom ressaltar, aqui, que a definição conceitual de Estado de Direito é complexa
e demanda uma longa discussão política e filosófica, que extrapolaria os
limites deste trabalho. Porém, mesmo ciente de que o sentido predominante do
conceito tem uma forte marca da colonialidade eurocêntrica, não me furto de
apresentar uma concepção que, a meu ver, é a mais plausível, no momento, para
fundamentar o sentido aqui exposto. Portanto, justifica-se a citação da
concepção defendida por Danilo Zolo.
Nos países
ocidentais, os direitos subjetivos podem ser defendidos e promovidos não só
dentro do ordenamento do Estado de Direito, mas também fora do seu âmbito
formalizado, com instrumentos políticos, informáticos, culturais, educativos,
econômicos. (...) Os direitos são
(preciosíssimas) próteses sociais que permitem reivindicar com maior
possibilidade de sucesso, e sem recorrer novamente ao uso da força, a
satisfação de interesses e de expectativas socialmente compartilhadas. Mesmo a
limitação do poder arbitrário e a proteção institucional dos direitos
subjetivos – os dois serviços específicos do estado de Direito – são o
resultado histórico de “lutas pela defesa de novas liberdades contra antigos
poderes”: são a outra face do conflito social, estão e caem com ele. (ZOLO,
2006, p. 93-94).
Outra
questão importante, diz respeito à sociabilidade dos estudantes. Constantemente
são postos na pauta dos conselhos de classes escolares problemas de ordem
comportamentais que indicam o que poderíamos denominar de ambivalência
existencial (necessária à sobrevivência das classes populares), que se
consubstancializam no debate sobre convivência e/ou conivência com os bandidos,
ou com um tipo de sociabilidade violenta. Dividir um território, como o de
muitas favelas, que, muitas vezes, estão submetidas ao controle de traficantes,
milícias ou mesmo policiais da UPP, cuja regra geral é o uso desmedido da
força, não é tarefa fácil ou simples. Requer o desenvolvimento de um tipo de
inteligência-malícia-astúcia que não cabe nos padrões cognitivos almejados pela
escola. Há outras questões, como a corrupção tantas vezes publicizada pela
mídia jornalística, que contribui para uma vida de silêncios forçados
aprendido/apreendido desde a idade mais tenra (é o famoso ver, ouvir e calar).
Isso é suficiente para a estigmatização dessas crianças-estudantes? Ou seja, o
fato de nascer em famílias pobres que compram naturalmente mercadorias sem o
devido registro ou legalização (ainda que entre tais produtos esteja o pão de
cada dia, comprado nas padarias dos becos), que participam de um capitalismo
informal porém de forte impacto na cultura econômica do país (vide o turismo
nas favela, hoje), reforça o imaginário dos/das professoras que lidam
diretamente com essas crianças nas escolas públicas?
Pudemos
verificar com a pesquisa que o Estado, que deveria ser de Direito, na verdade é
um provedor do processo de manutenção da desigualdade pedagógica visto que não
cumpre o dever de ensinar, na escola, o que é o fundamento da existência
institucional dela mesma, como, por exemplo, ensinar a ler e a escrever. Ou
seja, chegamos ao século XXI e a educação brasileira ainda convive com graves
problemas que a desafiam. A aprendizagem das classes populares, por exemplo, é,
entre muitos outros, um desses problemas. Muitas foram (e são) as tentativas
que visam a resolvê-lo. Várias instâncias vêm, historicamente, comprometendo-se
com essa temática. Projetos e propostas educacionais, teóricas e pedagógicas
têm ocupado os debates em nossas universidades com o intuito de compreender
melhor o que acontece nos cotidianos das escolas públicas desse enorme e
complexo país. A atual realidade mostra também que vários elementos oriundos
dos conflitos sociais e das relações citadinas confluem para ampliar a
complexidade dessa temática, dentre as quais se destaca a violência urbana.
O
objetivo deste trabalho foi investigar-analisar em que medida há rebatimentos
dos discursos normativos do Direito/Processo Penal nas escola pública que
atende predominantemente estudantes oriundos das classes populares. A ideia foi
a de identificar e problematizar os indícios de criminalização dos
comportamentos e das sociabilidades expostas pelos estudantes de origem já
mencionada acima,
A
metodologia priorizou a pesquisa de Campo, a análise documental e as
entrevistas-conversas, muitas delas filmadas, com professores e estudantes de
uma escola pública situada no município de Niterói.
Os
resultados apontam para uma forte influência, nos discursos pedagógicos, dos
argumentos acusatórios, cuja fundamentação ancora-se predominantemente nas
jurisprudências no Campo do Direito Penal, difundidos no cotidiano escolar – em
reuniões de conselhos de classes ou nos momentos informais – que justificam os
fracassos escolares das crianças que não aprendem-apreendem o que deveriam
aprender-apreender nesse contexto.
Vejamos
o que constata Ratto com sua pesquisa acerca dos “Livros de ocorrências” das
escolas:
Muito dessa lógica
judiciária pode ser encontrada nos livros de ocorrências, cujo próprio nome
remete a uma associação imediata aos corriqueiros boletins de ocorrência das
delegacias de polícia. Tal qual foi mostrado no conjunto das ocorrências
citadas até aqui, seus registros são geralmente estruturados em torno de três
partes centrais, não necessariamente naquela ordem. Apresentam os dados de
identificação dos alunos(as), ou seja, dos acusados(as); narram a situação
ocorrida, essa espécie de crime cometido, muitos vezes registrando os indícios
ou provas que o atestariam (marcas físicas das agressões, testemunhos,
confissões, acareações, dentre outros); e explicitam as consequências, uma
espécie de veredito final com a decorrente “pena”, seja na forma de tudo o que
já foi feito para resolver o problema, como parte das justificativas para as
providências tomadas, ou como prova dos esforços da escola para o
encaminhamento de soluções, seja na forma de uma ameaça do que futuramente será
feito, em caso de reincidência, seja ainda na forma da providência presente,
isto é, da medida que a escola efetivamente toma, diante da situação narrada.
(RATTO, 2007: 91)
A
relevância desse estudo não somente está na compreensão dos enredamentos dos
discursos acusatórios e da lógica judiciária, no cotidiano escolar, como também
permite um intenso diálogo com os resultados das nossas pesquisas,
principalmente porque ajuda a pensar na criação e no fortalecimento de novas
alternativas metodológicas, para o ensino-aprendizagem, no Ensino Fundamental público.
Visando ao combate do chamado fracasso escolar, nos espaços onde estão alocados
predominantemente os estudantes das classes populares, criamos também uma
tentativa para tentar descontruir essa lógica acusatória que, ao não saber
lidar com questões comportamentais, cuja matriz está nas sociabilidades de
classe, opta por segregar os praticantes.
Fica
claro que as classes populares, oriundas dos locais mais precarizados,
principalmente no que diz respeito aos instrumentos e dispositivos citadinos
(de urbanidade e socioculturais) são preteridas nas opções de quem deveria
disponibilizar tais recursos, o Estado, tal como é disponibilizado para os
bairros de população mais abastada. Os preteridos, diante da situação em que se
encontram, constróem estratégias de sobrevivências, mesmo estando submetidos a
grupos armados que impõem ordens de sociabilidades violentas, riquíssimas. Quem
sabe, a partir dessas pistas, não possamos construir uma educação pública mais
eficaz e, consequentemente, uma justiça social mais democrática. Nesse sentido,
cabe a proposição de Boaventura Santos:
Estou convencido de
que, para a concretização do projeto político-jurídico de refundação
democrática da justiça, é necessário mudar completamente o ensino e a formação
de todos os operadores de direito: funcionários, membros do ministério público,
defensores públicos, juízes e advogados. É necessário uma revolução. Em relação
aos profissionais, distingue-se entre a formação inicial e a formação
permanente. Ao contrário do que sempre se pensou, a formação permanente é hoje
considerada mais importante. Dou-vos um exemplo. Na Alemanha, não há nenhuma
inovação legislativa sem que os juízes sejam submetidos a cursos de formação
para poderem aplicar a nova lei. O pressupôs é que, se não houver uma formação
específica, a lei obviamente não será bem aplicada. Temos que formar os
profissionais para a complexidade, para os novos desafios, para os novos
riscos. As novas gerações vão viver numa sociedade que, como eu dizia, combina
uma aspiração democrática muito forte com uma consciência da desigualdade
social bastante sólida. E, mais do que isso, uma consciência complexa, feita de
dupla aspiração de igualdade e de respeito da diferença. (SANTOS, 2011: 82)
Reafirmo, aqui, que a luta
contra a estigmatização e a criminalização dos estudantes das classes populares
é uma luta política contra hegemônica. Luta contra os que causam a condenação
dos seus “estilos” de vida, dos seus comportamentos, fora dos padrões impostos
– cabe lembrar que tais comportamentos não “brotam” do vazio, mas da própria
condição circunstancial de existência, do meio societário que lhe está
disponível.
Temos, ainda, a condenação
dos conhecimentos que emergem da luta de classe calcadas nas resistências e nos
contra-ataques das experiências cotidianas, que se mostram nos seus corpos
marcados pelas cicatrizes de todos os tipos de injustiças da sociedade em que
vivem. Para corroborar com essa
discussão, embora longa a citação, porém de suma importância para a
fundamentação do debate aqui exposto, trago Alessandro Baratta, visto que ele
vai ao âmago da questão quando diz:
Enquanto a classe
dominante está interessada na contenção do desvio em limites que não prejudique
a funcionalidade do sistema econômico-social e os próprios interesses e, por
consequência, na manutenção da própria hegemonia no processo seletivo de
definição e perseguição da criminalidade, as classes subalternas, ao contrário,
estão interessadas em uma luta radical contra os comportamentos socialmente
negativos, isto é, na superação das condições próprias do sistema
socioeconômico capitalista, as quais a própria sociologia liberal não raramente
tem reportado os fenômenos da “criminalidade”. Elas estão interessadas, ao
mesmo tempo, em um decidido deslocamento da atual política criminal, em relação
a importantes zonas de nocividade social ainda amplamente deixadas imunes do
processo de criminalização e de efetiva penalização (pense-se na criminalidade
econômica, na poluição ambiental, na criminalidade política dos detentores do
poder, na máfia etc.), mas socialmente muito mais danosa, em muitos casos, do
que o desvio criminalizado e perseguido. Realmente, as classes subalternas são
aquelas selecionadas negativamente pelos mecanismos de criminalização. As estatísticas indicam que nos países de
capitalismo avançado, a grande maioria da população carcerária é de extração
proletária, em particular dos setores do subproletariado e, portanto, das zonas
sociais já socialmente marginalizadas como exército de reserva do sistema de
produção capitalista. Por outro lado, a mesma estatística mostra que mais de
80% dos delitos perseguidos nestes países são delitos contra a propriedade.
Estes delitos constituem reações individuais e não políticas às contradições
típicas do sistema de distribuição da riqueza e das gratificações sociais
próprias da sociedade capitalista: é natural que as classes mais desfavorecidas
desse sistema de distribuição estejam mais particularmente expostas a esta
forma de desvio. (BARATTA, 2011: 197-198)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ficou claro que,
concomitante ao enriquecimento dos recursos tecnológicos nas escolas públicas,
é crucial, para que alcancemos uma sociedade mais justa e democrática, uma luta
política. Quem sabe, assim, não chegaremos mais próximo da promessa fundante da
modernidade cientificista de alcançarmos um tal progresso, que seja viável,
dialogado, para que todos que habitam esse enorme e complexo país possam ter
seus Direitos garantidos e, com isso, um Brasil mais igualitário e com justiça
social.
É fato concreto que a
disponibilização de ferramentas tais como os recursos audiovisuais, possibilita
uma autoafirmação dos sujeitos – estudantes e professores -, pois materializa a
possibilidade de, como cidadãos submetidos a diversas formas de opressão,
tornarem-se capazes de denunciar sua condição existencial e, no caso dos
professores, profissional. Além disso, oportuniza a criação de laços fraternos
e/ou encontros com a alteridade, estudantes-professores, de classes sociais
distintas. Alteridade esta potencializada por um sentido pluralizado de
tolerância ao outro como legítimo outro na relação (MATURANA, 1999). Alteridade
não apenas no sentido de se perceber no outro, estudante ou professor, enquanto
indivíduos diferentes uns dos outros, mas de permitir que nos vejamos, enquanto
humanidade comum, no outro, no diferente. E não tratá-lo como desigual em
função das diferenças.
Quem sabe aí não está
chave que abre a possibilidade de enxergar nas crianças a potência de um mundo
melhor - sobretudo naquelas cujos comportamentos não cabem nos modelos
esperados pela escola burguesa (ou seja, as crianças das classes populares, que
trazem consigo seus contextos, sua dramaticidade, suas condições existenciais).
Em vez de criminosas em potenciais, enxergarmos artistas, poetas, políticos ou
simplesmente cidadãos de direitos, num Estado de Direito legítimo e de fato.
Quem sabe, também, não está aí a possibilidade concreta de cumprimento de, pelo
menos, três dos princípios da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – (Lei n.
9.394, de 20-12-1996).
Art. 3°
I – Igualdade de condições para o acesso e permanência na
escola;
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar
a cultura, o pensamento, a arte e o saber;
III – pluralismos de ideias e de concepções pedagógicas;
BIBLIOGRAFIA CITADA
1
- MIGNOLO,
W. D. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no
horizonte conceitual da modernidade. In: LANDER, E. (org). A colonialidade
do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Buenos Aires: Consejo
Latinoamericano de Ciências Sociales - CLACSO, 2005, pp. 71-103.
2 -
QUIJANO, A.. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In:
LANDER, E. (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais.
Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciências Sociales - CLACSO, 2005,
pp.227-278.
3
- SANTOS,
J. C. Direito Penal – Parte Geral. 4.ed. Florianópolis: Conceito
Editorial, 2010.
4 - GRECO, R. Curso de Direito Penal:
parte especial. Volume II: introdução à teoria geral da parte especial: crimes
contra a pessoa. 9 ed. Niterói/ RJ: Impetrus, 2012.
5
- ZOLO,
D. Teoria e crítica do Estado de Direito. In. COSTA, P. & ZOLO, D. (org) O Estado de Direito: história, teoria, crítica. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
6 - RATTO,
A. L. S. Livros de ocorrência:
(in)disciplina, normalização e subjetivação. São Paulo: Cortez, 2007.
7 - SANTOS,
B. S. Para uma revolução democrática da justiça. 3 ed. São Paulo:
Cortez, 2011.
8 - BARATTA, A. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à
sociologia do direito penal. 6 ed. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto
Carioca de Criminologia, 2011.
9 - MATURANA,
H. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 1999.
10 - EDUCAÇÃO. Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional e legislação complementar – Lei n. 9.394/96 . Obra
coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia,
Lívia Céspede e Juliana Nicoletti -. São Paulo: Saraiva, 2013.
[1]
Acerca da expressão “classes populares”, nossos
estudos e pesquisas têm apontado para uma polissemia no que tange à definição
conceitual em si. Existem, consagrados nos discursos sociológicos, nas teorias
economicistas e no próprio campo do Direito Penal, alguns ancoradouros que
margeiam os limites das definições de classes populares. Essas definições
operam tanto com elementos concretos, tais como condições econômicas, tipos de
moradias, informalidades e/ou ilegalidades da organização dos espaços de habitação
e suas instalações/equipamentos estatais, quanto com discursos românticos e/ou
folclóricos que remetem a imaginários de poetas, músicos populares, além
daqueles estigmatizantes e preconceituosos, que trazem a ideia de bandidos
perigosos, ameaça ao Estado, famílias desestruturadas, entre outros termos. A
nós, fica evidente que a pluralização do conceito faz-se necessária na medida
em que constatamos uma enorme heterogeneidade oriunda principalmente das
origens regionais, culturais, étnicas dessas classes populares, que se
configuram como resultantes das constantes interações, sejam para a própria
sobrevivência aos processos de opressão, em que historicamente foram submetidas
em nosso país, sejam para a resistência às
injustiças sociais que se perpetuam no Brasil.
[2] É uma noção de cunho conceitual e metodológica que
estamos desenvolvendo no Projeto, diferente da noção de roda de conversas,
pois, aqui, os estudantes se agrupam livremente, em quantos grupos quiserem,
sentados ou em pé, em qualquer canto da sala, e falam sobre quaisquer assuntos
(as ideias trocadas). Não há, necessariamente, direcionamentos unilateral e nenhum ponto de partida fixo (seja ele do
professor ou dos estudantes).
[3] Alguns dos autores aos quais me filiei teoricamente
defendem uma distinção entre colonialismo e colonialidade, sendo o primeiro
conceito entendido como o controle das formas de trabalho, dos recursos e dos
produtos, fruto de uma especificidade histórica que foi a colonização. E o
segundo, a colonialidade, como um processo que se estende para além do
colonialismo, na medida em que cria modelos para um sistema-mundo eurocêntrico,
hierarquizando as relações humanas a partir do conceito de raça, promovendo,
com isso, as classificações que submetem as formas de estar no mundo daqueles
que não se enquadram em tais modelos. Esses intelectuais defendem que fomos
levados a cometer equívocos na compreensão política e histórica do
sistema-mundo em que vivemos. Esses processo de colonialidade do poder e do
saber nos condicionou, durante muito tempo, a enxergar a nossa história e as
nossas questões sob as lentes do eurocentrismo. A base da colonialidade e do
eurocentrismo é o uso da força como elemento fundamental para garantir os
processos de subalternização.
[4] É bom frisar que tal prerrogativa, a de criar os
adjetivos e propagá-los, não é para quem quer, mas para quem pode, ou seja,
aqueles que, munidos dos veículos de difusão de ideias e ideologias, expandem
seus adjetivos ao bel-prazer.
[5] Termo este que, enquanto conceito sociológico e do
próprio IBGE, remete à ideia de localidades irregulares e subnormal de
habitação, como também, no que tange às referências do Direito Penal, a um lócus de criminalidades onde todos e
todas estão submetidos a suspeição, inclusive, com decisões recorrentes de
juízes que inscrevem liminares de efeito coletivo, inconstitucional, diga-se de
passagem, para que policiais tenham o salvo conduto de invadir qualquer
residência destas localidades, a qualquer hora e dia.