segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Sobre contextos, encontros e diferenças


Danielle Tudes
Mestranda em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Integrante do grupo de pesquisa ALFAVELA (Alfabetização, Classes Populares e o Cotidiano Escolar - IEAR/UFF) e do grupo de pesquisa: Culturas e Identidades no Cotidiano/UERJ 




Minha negritude não é nem torre nem catedral
Ela mergulha na carne vermelha do solo
Ela mergulha na carne ardente do céu
Ela rasga a prostração opaca da paciência sensata...

Frantz Fanon


De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a palavra contexto significa a inter-relação de circunstâncias que acompanham um fato ou uma situação e/ou o conjunto de palavras, frases, ou o texto que precede ou se segue a determinada palavra, frase ou texto e que contribuem para o seu significado. As circunstâncias que acompanham o texto podem nos fornecer informações valiosas para a compreensão do mesmo, a complexidade das tramas tecidas nessa construção nos ajuda a entender as opções realizadas e as possibilidades apontadas. Nesse sentido, inicio o presente texto narrando o que move sua produção, narrando o que me move a escrever e compartilhar minhas perplexidades e indagações.
Para cumprir essa empreitada, faço uso da palavra escrita como um recurso, como um tradutor, como um meio de expressão para me contar, talvez diferente do uso estritamente acadêmico em que, muitas vezes, não nos reconhecemos, nos tornamos outras pessoas e assumimos uma escrita insípida e indolor. Arrisco um uso mais próximo à literatura, lembrando aquelas obras que por não ter nenhuma intenção de nos ensinar verdades sobre o mundo, narrando trajetos de vidas tão humanas quanto as nossas, nos mobilizam a não sermos mais os mesmos. Concordando com Frantz Fanon (2008, p. 34), um dos mais importantes pensadores do século XX, considero que “existe na posse da linguagem uma extraordinária potência”.
Embora esteja atualmente em Angra dos Reis, no estado do Rio de Janeiro, nasci no Distrito Federal em 1978.
Minha mãe, Dilma, veio da Bahia com meu avô Euclides, barbeiro, minha avó Risoleta, costureira, e seus três irmãos. A caravana veio embalada pela esperança da construção de uma vida nova e melhor na terra vermelha e poeirenta do centro-oeste, recheada das promessas do nacional desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek.
E quantos, desde que o mundo é mundo, se movem, não como nas alegres caravanas turísticas mas esperando dias melhores, pisando a terra, candangos chacoalhando nas boleias dos caminhões. Quantos atravessaram oceanos, quantos despejados pelo Atlântico derramando suas histórias. Quantas redes lançadas nas diásporas dos povos.
Era preciso deixar o passado, mas como esquecer a fazenda de cacau, os bois, a vida mais verde trocada pela poeira e ventania que ameaçava os barracos de tábuas, cujos buracos eram cobertos pelos recortes das revistas com jogadores de futebol e artistas? A alternativa foi crescer sonhando com um trabalho de prestígio, quem trabalhava no senado sempre andava em carros bonitos. Andar de carro preto, usar roupas boas, poderiam ser feitas pela mãe, alisar os cabelos. E por que não?
Como a realidade transpôs os sonhos de minha mãe, ela não conseguiu, naquele momento, ser professora nem trabalhar no senado. Minha avó não reconhecia a continuidade da escolaridade, no que hoje chamamos ensino médio, como importante a ponto de pausar suas encomendas de roupas, o que também garantia a subsistência da família. Por isso não fez sua matrícula no curso de formação de professores, além disso, meu avô não admitia que sua filha, mulher, trabalhasse fora de casa. Portanto minha mãe aprendeu a costurar, a fazer tricô e crochê, essas sim, coisas de mulher, coisas autorizadas para aquelas cujos papéis já estão escritos.
Meu pai, José, carioca, perde cedo a mãe que morre com tuberculose agravada pela precariedade das condições de vida. O cortiço, a favela, o gueto, o subúrbio, a periferia, os aglomerados subnormais. Menino catando borracha para alimentar a guerra que consome o mundo. Delinquente, marginal, trombadinha, meliante, menino de rua, menino na rua, adolescente em conflito com a lei.
A partir daí, o que se segue são os movimentos de quem precisa sobreviver e experimenta as ruas, os mal tratos, os lares emprestados, a humilhação, o patronato, as fugas, os empregos formais e informais e o aprendizado do ofício de topógrafo, medindo, calculando e mapeando as ruas do Rio de Janeiro na década de 60. Depois viajando pelo Brasil, loteando o Brasil.
Mas como se olhar no espelho? Como se traduzir pelos outros? Quem era ele para a família branca que o ajuda a ser alguém? Zequinha, o motorista? Zequinha, o quebra-galho? Ter uma profissão, não como a dos filhos legítimos, engenheiros, contadores. É preciso ter uma profissão para ser alguém, para não virar bandido. Só se aprende a ser alguém ouvindo calado, é preciso ouvir com atenção porque negro quando não suja na entrada, suja na saída.
Sentimento de inferioridade? Não, sentimento de inexistência. O pecado é preto como a virtude é branca. Todos esses brancos reunidos, revólver nas mãos, não podem estar errados. Eu sou culpado. Não sei de quê, mas sinto que sou um miserável” (FANON, 2008, p. 125)

Então as histórias se encontram no Distrito Federal e meus pais, na década de 80, migram para Angra dos Reis, pois meu pai trabalhava para o DNER[1] e já conhecia o lugar. De novo o deslocamento, a promessa do novo, da prosperidade, vida nova.
No século XX, o município tornou-se palco de grandes empreendimentos econômicos: a criação do estaleiro Verolme, a implantação do Terminal Petrolífero da Ilha Grande (TEBIG), a construção das usinas nucleares Angra I e II e a construção da rodovia BR101. São os ares do progresso. Esses grandes investimentos causaram um crescimento desordenado, resultando em uma expansão urbana sem planejamento, principalmente em direção aos morros da cidade, por conta da limitação dos espaços planos e da especulação imobiliária. Esse cenário foi convenientemente próspero para meu pai que se beneficiava por um aumento na procura por medições e mapeamentos de terra.
Angra possui uma história intrigante, o município localizado no litoral fluminense, entre a serra e o mar, constitui um exemplo em pequena escala do nosso infeliz processo de colonização empreendido a partir de 1500 pela Europa, caracterizado em grande medida pela exploração e os conflitos por terra. A região participou dos ciclos econômicos da cana-de-açúcar, do tráfico de africanos escravizados, do ciclo do ouro e do café. Ainda hoje, a repercussão desse processo permite  que o centro da cidade seja propriedade de meia dúzia de famílias pertencentes à elite local e que disputam ferrenhamente o poder público na cidade, que os condomínios à beira mar impeçam ou dificultem o acesso às praias e que os quilombolas precisem empreender uma luta dantesca para a titulação de suas terras, pois o poder em Angra tem cor e classe, visíveis quando os helicópteros cruzam o céu ou quando as lanchas salpicam o mar nos feriados.
A primeira moradia da família foi uma casa alugada no Morro da Glória, minha mãe conta que atolou comigo no colo muitas vezes em dias chuvosos, com lama até os joelhos, subia o morro me carregando. Dali fomos morar em uma região chamada Japuíba, antiga fazenda loteada e vendida para os posseiros como meu pai.
Cresci à beira das máquinas de costura, entre retalhos coloridos e as criações maravilhosas de uma mulher que sempre nos vestiu. Seda, chita, laise, brim, linho, crepe, flanela. Linhas, botões, agulhas, fitas, bordados, fivelas e paetês. A mulher que esperou os filhos “se formarem” e fez o sonhado curso de formação de professores e a graduação em pedagogia. É cruel constatar o quanto ser costureira nunca teve valor social, foram os diplomas, o reconhecimento acadêmico que trouxe um “lugar” no mundo para minha mãe.
Também cresci entre os livros de meu pai, que todos os domingos segurava minha mão e me levava à banca de jornais onde comprávamos gibis. Seus livros foram meus primeiros grandes prazeres, fui ao centro da Terra com Júlio Verne, conheci os robôs com Isaac Asimov e senti terror ao lado de Stephen King. Presenciei a retomada de seus estudos com a conclusão do ensino médio. Meu pai sempre foi um trabalhador autônomo e vivemos as auguras dessa condição, períodos em que havia demanda pelo serviço que prestava e outros (longos) em que não havia garantia de renda. Nas dificuldades vendíamos os móveis, os eletrodomésticos e até os livros. Apesar disso, nunca nos faltou, a mim e meu irmão, os materiais escolares, o uniforme completo exigido pela escola, o acompanhamento necessário em casa.
A escola, esse espaço tão cobiçado por meus pais, foi onde depositaram suas esperanças e investimento financeiro para que pudéssemos gozar de dias mais prósperos, por conta disso, afirmo sem hesitar que tudo que sou passa pela escola pública popular. Todo o meu amor pelo conhecimento, meus amigos e minhas realizações, devo a essa escola como um de meus mais importantes contextos de formação.
Mas a mesma escola pela qual nutro a mais profunda gratidão foi a mesma instituição que excluiu muitos de meus amigos. Como não estranhar que raros eram os negros nas suas salas de aula? Quantos ficaram pelo caminho, rotulados como burros, desinteressados, agressivos, aqueles que “não davam para o estudo”! As amigas grávidas, das quais já se sabia que “dariam para isso, mais cedo ou mais tarde”! Quantos, como minha mãe, aqueles cuja “família não se interessa, que não acompanha os filhos” e como meu pai, meninos e meninas sujos demais, feios demais, velhos demais, reais demais para a escola.
Além dos colegas de turma, mais tarde vieram os estudantes com os quais trabalhei na condição de professora, no Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA), no Programa de Aceleração da Aprendizagem e nas turmas regulares, homens e mulheres, meninos e meninas, em sua maioria pretos, pardos e pobres. Foram bons encontros, no sentido empregado por Spinosa, talvez muito mais tenha aprendido que ensinado.
Considero que seja essa devoção pela escola pública popular (que não me permite desqualificar outros espaços de formação, mas reconhecer sua importância para que eu construísse, por exemplo, a relação com a escrita que permite que me narre nesse texto) construída ao longo de minha história de vida, o que me faz desejar esse movimento de pesquisa que se situa nesse encontro das classes populares com a escola pública, na esperança de que as escolas angrenses deixem definitivamente de ser dos reis. Nesse momento solicito o diálogo com Regina Leite Garcia, através de uma longa citação, cujos contextos podem dialogar com o meu.

Desde que as crianças entram na escola, e mesmo antes do momento da entrada na escola, vai sendo preparado o terreno para que umas tenham sucesso e outras fracassem. Aqueles que têm sucesso na escola não são a nossa preocupação. “Esses já nascem feitos”, como diz a sabedoria popular. Quando entram na escola, já trazem o capital cultural esperado, e estão condenados ao sucesso escolar. Aprendem nos cinemas, nos concertos, nos vídeos, nos teatros, na biblioteca particular de suas casas, nas viagens, nas conversas. Convivem em seu cotidiano com tudo o que a escola valoriza, falam a língua que a escola acredita a “correta”, comportam-se “educadamente”. Sua presença não agride como a presença dos mestiços pobres. São estes, portanto, os que desafiam a nossa competência. É para eles que a escola precisa ser repensada, pois os dentre eles que, apesar de todos os obstáculos, conseguem ter sucesso na escola e no trabalho, vão se tornar porta-vozes da ideologia dominante, afirmando a evidência da igualdade de oportunidades oferecidas pela sociedade. Mas há ainda, felizmente, aqueles que, conseguindo romper as barreiras colocadas à ascensão das classes populares, vencem, e, ao vencer, colocam a sua vitória a serviço dos demais, que foram impedidos do sucesso. Às vezes eles se tornam revolucionários, fazendo a crítica ao saber por eles adquirido e à forma como o adquiriram. E há ainda aqueles que chegam ao mesmo lugar por caminhos diferentes. Aprenderam na escola da vida e da luta (GARCIA, 1995, p.65).

Em minha história, embora atribua centralidade à formação escolar, não posso deixar de falar sobre a importância dos espaços não formais para a compreensão do desenho desse contexto. Por espaços não formais entendo todo o vasto e heterogêneo conjunto de espaços e relações sociais frequentados ao longo de minha vida e que são fundamentais para explicar e reforçar as opções acadêmicas e profissionais dentro dos caminhos que percorri/percorro. Neste âmbito, o Movimento Negro, o Grupo de Consciência Negra Ilá Dudu, foi fundamental no sentido de provocar as perplexidades que tenho em relação a escola e as classes populares, a participação nesse espaço me possibilitou a assunção, a reivindicação de uma identidade negra. Não afirmo que exista uma identidade negra única, imutável, mas utilizo essa expressão para explicar que assumi elementos, referências de uma cultura relacionada à diáspora africana.
As relações estabelecidas nesse grupo também me fortaleceram para as lutas em um local marcado por tantas desigualdades. A cidade com alto potencial para o turismo classe A, envolvendo turistas de alta renda do Brasil e do exterior, é retratada na mídia como uma região paradisíaca, com  suas mais de trezentas ilhas, cercada pela exuberante mata atlântica e águas cristalinas, imagem confirmada por aqueles que chegam à Angra dos Reis em seus helicópteros e se dirigem às suas ilhas particulares, que se poupam da visão de pobreza, presente somente em seus empregados contratados para garantir a limpeza das casas de veraneio. Infelizmente, boa parte da população, que se dirige todos os dias para o trabalho, não de jet ski, lancha ou helicóptero, mas utilizando o aviltante transporte público, sabe que o desenvolvimento desigual, a precariedade dos serviços públicos, a pobreza e a corrupção, constituem também o cotidiano local.
Creio que todo desejo de pesquisa começa a partir de uma relação muito íntima e visceral do pesquisador com o tema com o qual pretende dialogar. No meu caso, essa relação, pelas motivações pessoais e políticas explicitadas, se estabelece com os estudos sobre educação, classes populares e relações étnico-raciais. A intenção é dialogar com as classes populares e seus contextos, no sentido de compreender seus territórios e como os mesmos se expressam no espaço das escolas. Portanto a proposta de pesquisa não se pretende exclusivamente neutra e objetiva por me considerar parte do próprio universo a ser pesquisado. Concordando com Luciana Pires e Rodrigo Torquato, pesquisadores que trabalham o conceito de pesquisas viscerais,

é a condição de opressão que rompe as distâncias ou proximidades fabricadas e permite a emergência de novos sentidos nas aberturas dos corpos/corpus fechados. Aos viscerais é possível ler o que está em jogo, ou seja, riscos e tensões naquilo que vemos como situações cotidianas. São pesquisas viscerais, na carne que se faz verbo e no verbo que se faz navalha. ( ALVES & TORQUATO, 2013, p.)


A questão racial em Angra dos Reis

Na entrada da cidade, aqueles que pela primeira vez visitam o município de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, se deparam com um cenário ambíguo: de um lado, a visão do mar azul coalhado de lanchas e veleiros e do outro lado, as casas que escalaram as montanhas em busca de espaço. Alguns relatam que, à primeira vista, o município lembra a arquitetura das favelas. Mas, para além da arquitetura, como o conceito de favela pode nos ajudar a pensar o espaço angrense?
Embora a população local se oponha veementemente à ideia de que existam favelas em Angra dos Reis, de acordo com a pesquisa sobre aglomerados subnormais realizada no censo 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Angra é o décimo município do país com maior percentual de domicílios em favelas. Conforme o site do IBGE, o Manual de Delimitação dos Setores do Censo 2010 classifica como aglomeração subnormal cada conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais carentes, em sua maioria, de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e densa.
Muitos questionamentos poderiam ser feitos em relação ao uso do termo que em si carrega as marcas do preconceito em relação a esses espaços, já que subnormal significa, de acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o que é próximo do normal, porém abaixo ou aquém dele, ou seja, espaços fora do padrão, da lei, do aceitável, os mesmos adjetivos utilizados para qualificar suas populações. Com todas as restrições, esse é um dado que merece atenção, principalmente por se opor à imagem de Angra dos Reis como souvenir, provocando-nos com uma imagem diferente daquela exposta a partir da Ilha de Caras, por exemplo.
A imagem da cidade como uma ilha paradisíaca não é somente imposta, ela dialoga com as expectativas da população e recebe acolhida nos imaginários, talvez isso explique a aversão ao conceito de favela, além, é claro, do estigma que pesa sobre a palavra, uma vez que a favela é descrita como o espaço da falta, da carência, como o espaço que precisa ser civilizado, pacificado. Mas a negação da favela também significa invisibilizar as desigualdades vividas pelas classes populares, desigualdades sobre as quais a cidade foi historicamente edificada, é negar a precarização dos direitos sociais.
Podemos mapear as populações que podem ser apontadas como as classes populares de Angra dos Reis[2] identificando a população do Quilombo do Bracuí que luta pela titulação de suas terras; a
etnia Guarani Mbya, da Aldeia Guarani Sapukai, também no Bracuí; os caiçaras que habitam as ilhas da Baía da Ilha Grande e aqueles que foram expulsos pela especulação imobiliária criminosa para os morros do centro e os bairros periféricos e os trabalhadores que vieram de muitas regiões do Brasil para construir e se empregar nas usinas e no estaleiro da cidade. Portanto, quando nos referirmos às classes populares de Angra dos Reis, estão nos referimos também a esses grupos, que historicamente contrastam com a beleza natural idílica desse paraíso há aproximadamente quinhentos anos, sendo constituído em sua maioria por pretos e pardos.

Afinal, desde que o Brazil é Brasil, ou melhor, quando era ainda uma América portuguesa, o tema da cor nos distinguiu. Os primeiros viajantes destacavam sempre a existência de uma natureza paradisíaca, mas lamentavam a “estranheza de nossas gentes”. Muito se comentou sobre essas novas gentes desse igualmente novo mundo, mas do lado dos relatos ibéricos o mais famoso é talvez o do viajante português Gândavo, que deu forma canônica ao debate que, desde Caminha e Vespúcio, mencionava a ambivalência entre a existência do éden ou da barbárie nessas terras perdidas. O Brasil seria o paraíso ou o inferno? Seus habitantes, ingênuos ou viciados? (SCHWARCZ, 2012, P.11)

Isto posto, pensamos que as relações entre as classes populares e as elites da cidade refletem ainda uma lógica colonial que subjuga e nega o direito à terra, à educação e que não reconhece esses sujeitos como produtores de cultura, de saberes. As primeiras relações estabelecidas quando André Gonçalves aporta nessa região são reproduzidas através das oligarquias angrenses, pois embora o Brasil não seja mais uma colônia, isso não apaga toda a herança desse processo violento que se perpetua em outros campos, pois citando Santos, aquele a quem nos apraz chamar pelo nome  Boaventura

O colonialismo, para além de todas as dominações por que é conhecido, foi também uma dominação epistemológica, uma relação extremamente desigual entre saberes que conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias dos povos e nações colonizados, relegando muitos outros saberes para um espaço de subalternidade. (SANTOS, 2010, p.11)

Consequentemente, as classes populares em suas singularidades não cabem nos folhetos turísticos, não cabem no hino de Angra, não cabem nos nomes das escolas, não cabem na história do município, erguido com o sangue, o suor e os conhecimentos de tantos negros e indígenas, pois  “a atividade do conhecer passa a ser reconhecida como um privilégio dos que são considerados mais capazes, sendo-lhes, por isso, conferida a tarefa de formular uma nova visão do mundo, capaz de compreender, explicar e universalizar o processo histórico.” (HERNANDEZ, 2008, p.17)
As classes populares são lembradas anualmente, quando as casas caem, os morros desmancham e os caminhos são interditados durante as chuvas torrenciais do verão, já que são as maiores vítimas dos infortúnios herdados das décadas de falta de planejamento urbano e irresponsabilidade por parte de um estado corrupto e populista, ou estão presentes em imagens estereotipadas nas comemorações do dia 13 de maio e 19 de abril. Mantendo ainda a escuta voltada para Boaventura, concordamos que a

inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o outro. (Ibid., p.32)

Há os espaços concedidos, onde a existência pode ser exposta, por isso as classes populares  são as protagonistas das páginas criminais, ilustrando as notícias manchadas de sangue. Como exemplo, podemos citar o conteúdo do periódico angrense denominado “A Cidade”, carinhosamente cognominado pela população como “O Sangrento”, publicado semanalmente e com grande circulação no município. Inicialmente é fácil observar que o jornal se volta majoritariamente para notícias policiais, onde as classes populares são sempre as principais personagens dos casos criminosos, aqueles que na poesia de Eduardo Galeano são

os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.


Assim como os humanistas dos séculos XV e XVI chegaram à conclusão de que os ditos selvagens eram sub-humanos, criando um conceito de vazio jurídico que justificou a invasão e a ocupação dos territórios indígenas, o estado, baseado na representação das classes populares como imorais e incapazes, necessitando portanto de tutela, justifica o aniquilamento dos jovens negros e outras ações que tem como objetivo garantir a “ordem” na sociedade.
A análise de sete meses do referido periódico[3] nos forneceu um total de 134 registros de crimes, entre esses, através de heteroclassificação, nos casos em que havia fotos, identificamos 105 negros e 22 brancos protagonistas das ocorrências, caracterizando-se, a maioria, como tráfico de drogas. Esses dados evidenciam a vulnerabilidade dos jovens negros e explicita a proeminência da questão étnico-racial. Cabe abrirmos um parêntese para salientar que o emprego do conceito de raça é questionável e explicar que, embora as ciências biológicas já tenham demonstrado que não há critérios que justifiquem seu uso, optamos pelo mesmo porque, enquanto construção histórica, a eliminação do vocábulo não garante que o mesmo seja banido de seu uso social e político. Ademais, sabemos também que é a raça, materializada no fenótipo, o recurso empregado para a discriminação.
Lembramos que o periódico não é tomado como uma fonte neutra, mesmo porque nenhuma fonte o é, mas como portador de intencionalidades e subjetividades construídas nas relações sociais, onde os vínculos mantidos pelo jornal e suas fontes de recursos estão consideravelmente implicados.  Outrossim, não consideramos que o periódico possa nos fornecer informações sobre os contextos e territórios das classes populares, que é o interesse central da pesquisa que ora se desenha, pois ele expõem um discurso onde as vozes desses sujeitos não estão presentes e onde os  mesmos são arranjados como peças descartáveis e incômodas de um jogo. Mas esses dados podem nos ajudar a compreender que os subalternizados, como tem nos mostrado a história, não sucumbem em silêncio. Os discursos, declaradamente discriminatórios que permeiam o periódico e que se caracterizam como discursos sobre e não com, não são nosso foco, o que nos interessa é em que medida existe uma resistência nas ações noticiadas, em que medida a ruptura com o tênue limite existente entre vida e morte pode nos apontar um esgarçamento da ordem e moral estabelecidas nos territórios.

Inconclusões

De acordo com Censo 2010 do IBGE[4] (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), dos 190.755.799 habitantes do Brasil, 96,7 milhões de brasileiros (50,7% da população) são negros e 91 milhões são brancos (47,7%). Esses dados nos mostram claramente que a população negra constitui a maioria do povo brasileiro, o que nos leva a interrogar por que a mídia, as instituições e as políticas públicas invisibilizam esse contingente tratando a população negra como minoria. É claro que não defendemos aqui que por ser numericamente superior, determinado grupo deva gozar de privilégios em detrimento de outros. Consideramos que em uma sociedade democrática todos devem ser respeitados em suas especificidades e ter acesso às condições que garantam o acesso aos direitos.
Ainda hoje existe a ilusão de que vivemos em uma democracia racial, o fato de não termos dispositivos legais de segregação, ou seja, o fato de nosso racismo não ser institucionalizado, reforça a mentira de que somos uma sociedade harmônica onde todos gozam de oportunidades iguais. O Mito da Democracia Racial, representado por Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala, ainda impregna o senso comum, mascarando, sob uma tendenciosa harmonia, o racismo presente entre nós. Nos lembra Schwarcz (2012) que

O “cadinho das raças” aparecia como uma visão otimista do mito das três raças, mais evidente aqui do que em qualquer outro lugar. “Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo, a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena e/ou do negro”, afirmava Freyre, tornando a mestiçagem uma questão de ordem geral.

Basta uma rápida incursão pelos espaços historicamente ocupados pelas elites brasileiras, como os cursos mais prestigiados das universidades, para percebermos a ausência quase completa dessa diversidade, uma vez que estes espaços são majoritariamente ocupados por uma elite branca e de alto nível socioeconômico, sendo que isso, mais do que qualquer outro fator, comprova a pouca equidade de acesso aos instrumentos de ascensão social, demonstrando que o artigo 5º da Constituição, que afirma que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, é acintosamente desrespeitado, não existindo além do limitado alcance do texto escrito, estando muito longe de ser um dos princípios formadores sobre os quais nossa sociedade deveria se firmar.
Percebemos a segregação racial nos espaços da cidade, os bairros periféricos são onde vive a maioria dos negros (entendendo os mesmos como a adição de pretos e pardos). Assim, constituem-se os territórios onde se concentram as habitações populares e sobre os quais se constroem representações calcadas na imoralidade e na necessidade de intervenções, já que sua população é estereotipada como violenta e carente de civilidade e aqueles territórios onde as classes populares se empregam, são os hotéis, condomínios, casas de veraneio e outros.
A educação, escolarizada ou não, reflete e atualiza o contexto de desigualdade presente na sociedade brasileira. A escola pública como instituição responsável pela socialização dos conhecimentos historicamente construídos e por sua transmissão às novas gerações tende a reproduzir as desigualdades inerentes a sociedade em que está inserida, mas jamais podemos nos esquecer de que ela também pode ser um espaço privilegiado para a realização de ações que tenham como objetivo desconstruir práticas discriminatórias, em especial as práticas racistas. Em um sentido mais restrito, a escola é um dos espaços privilegiados para a implantação de políticas públicas que visem democratizar a sociedade que se encontra racialmente estratificada.
Nas últimas décadas ocorreu uma inegável expansão das vagas oferecidas, especialmente no Ensino Fundamental, promovendo a democratização do acesso à escola com a inclusão de diferentes grupos sociais e culturais nesse espaço, porém nos parece que a instituição permanece excluindo em seu interior aqueles que não possuem os conhecimentos valorizados pela mesma, com uma lógica meritocrática e monocultural. Desse modo, as crianças negras deparam-se com dificuldades adicionais em seu trânsito escolar, tendo que lidar com conteúdos e práticas discriminatórias e racistas, pois não há, na maioria das vezes, uma orientação multicultural nas ações empreendidas na escola.
              A trajetória escolar de alunos brancos e negros é desigual e evidencia a discriminação racial na educação brasileira. Enquanto os primeiros realizam uma trajetória menos acidentada, os últimos têm de lidar com piores condições sociais e econômicas, racismo e discriminação. Entretanto, a pobreza não explica a desigualdade racial, afirmar que somente são discriminados os pobres, admitindo a existência de discriminação exclusivamente baseada na classe social, constitui um reducionismo das questões raciais à questão econômica. Do contrário, percebemos que o desenvolvimento econômico não atenua as desigualdades entre os grupos étnico-raciais.
Desse modo, assumimos como fundamental para essa pesquisa, os trânsitos pelos territórios das classes populares e os encontros com os sujeitos que os constituem em seus cotidianos. Aí, nesse lugar, supostamente encontraremos as vozes, as cores, as tecnologias, os saberes, as línguas, as presenças daqueles com os quais pretendemos dialogar. Lugar onde, em vez de carência, há riqueza de práticas e estratégias, onde se constroem possibilidades e onde, em vez de submissão se constroem resistências.

Referências
ALVES, Luciana Pires e SILVA, Rodrigo Torquato da. “Eu era a carne, e agora, sou a própria navalha” - pesquisas viscerais em alfabetização. Disponível em http://alfavelapesquisa.blogspot.com.br

FANON, Frantz. Pele Negra Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

HERNANDES, Leila Leite. A África na sala de aula – Visita à História Contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2008.

SANTOS, Boaventura de Sousa e Meneses, Maria Paula. Prefácio. In: SANTOS, Boaventura de Sousa e Meneses, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.

SANTOS, Boaventura. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa e Meneses, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012.





[1]    DNER é a sigla de Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, que é um órgão federal e está vinculado ao Ministério dos Transportes. Em 2001, o DNER foi substituído pelo DNIT, que significa Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes.            
[2]    Mapeamento realizado no contexto do grupo de pesquisa ALFAVELA – Alfabetização, Classes Populares e o Cotidiano Escolar do Instituto de Educação de Angra dos Reis (RJ) – Universidade Federal Fluminense, coordenado pelo professor Rodrigo Torquato.
[3]    Pesquisa em processo, realizada pelo grupo ALFAVELA e iniciada no ano de 2011.
[4]  Em: <http://www.ibge.gov.br. Acesso em 13 de fevereiro de 2012.


domingo, 17 de agosto de 2014

UM CORPO COM MARCAS COLONIAIS QUE VAI SE (RE)CONSTITUINDO ATRAVÉS DO TORNAR-SE PROFESSORA

Marcela Paula de Mendonça
Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense
Professora Regente e Orientadora Educacional da Rede Municipal de Ensino de Duque de Caxias/RJ
Integrante do Grupo de Pesquisa ALFAVELA


Resumo:
O presente trabalho origina-se de pesquisa realizada no Mestrado Acadêmico em Educação na Universidade Federal Fluminense e apresenta breves reflexões acerca do resgate da memória da construção da minha identidade negra como elemento essencial de uma aprendizagem permanente sobre a minha própria prática como professora orientadora educacional. No processo de formação permanente no campo profissional, o retorno às questões sobre a minha construção identitária tornou-se elemento fundamental para aprender, com os praticantes das escolas em que atuei e atuo como professora orientadora educacional, os caminhos possíveis para uma ação pedagógica que se disponha a ampliar os sentidos e nos permita ver para além dos estereótipos e estigmas estabelecidos em torno das crianças negras e suas famílias. Para a melhor compreensão das questões emergidas do cotidiano das minhas práticas, foi necessário voltar o olhar para a construção da categoria negro (GOMES, 2008, 2010; MUNANGA, 2010, 2012) e da relação entre raça e Colonialidade (QUIJANO, 2002, 2005, 2010), como elementos importantes para o entendimento das relações étnico-raciais na escola atualmente. Com isso, busco repensar as práticas da Orientação Educacional e a necessidade de que as histórias e experiências de professores/as, estudantes e suas famílias contribuam para possíveis reinvenções da escola como espaço capaz de provocar fissuras no padrão eurocêntrico, hierarquizante e desqualificador das crianças e jovens negros.

Palavras-chave: Cotidiano Escolar. Orientação Educacional. Raça. Colonialidade.

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Introdução

Ter na pele a cor da noite
(...)
É preciso ter coragem
Pra ter na pele a cor da noite
E sobreviver nesses dias
É preciso ter coragem
E os olhos da lua a brilhar
Pra ser o futuro que se quer
Mesmo o que virá

(Marcio Meireles)

A cada dia um novo desafio: é assim que sinto a Orientação Educacional. Tentando equilibrar as exigências do trabalho pedagógico, tais como leituras de relatórios bimestrais dos alunos do ciclo e a construção de ações e práticas que colaborem para que as aprendizagens se deem em plenitude, vou construindo minha prática de orientadora. Entre erros, muito mais do que o desejado, e acertos, muito menos do que o necessário, vou me tornando orientadora educacional da escola pública.
Ainda adolescente, a Geografia era meu principal interesse. Desejava trabalhar no IBGE, dizia querer fazer pesquisas para entender melhor o Brasil. A chamada Geografia Crítica era hegemônica na escola e ela me abria a possibilidade de conhecer mais o mundo, refletindo sobre ele. Mas, curiosamente, também dizia querer dar aulas, não para crianças, mas para adultos, à noite, para compartilhar o que pesquisaria no IBGE. Não queria trabalhar com crianças.
Hoje, observando esses desejos de menina-adolescente, considero-os muito pretensiosos. Por outro lado, percebo que já havia em mim muitos dos objetivos que ainda hoje busco materializar: aprender mais sobre mim e os outros, pesquisar, partilhar o aprendido.
No momento de escolher a formação em nível médio observei que o único curso na área de humanas que me interessava era o magistério. Após concurso, ingressei na Escola Normal Carmela Dutra, em Madureira, município do Rio de Janeiro. No berço do samba, próxima à tradição cultural das escolas de samba Portela e Império Serrano, fiz minhas primeiras aproximações com o magistério.
Entretanto, essa proximidade era muito mais geográfica do que cultural. A escola estava cercada pelo bairro, que tem em seu comércio e sua cultura suas principais marcas, mas não se permitia encharcar pelas marcas do lugar.
Na Escola Normal, a Pedagogia se mostrou uma alternativa. Fui apresentada às suas habilitações e comecei a considerar a possibilidade. Porém, ainda havia muitas dúvidas, que se desfizeram no momento em que compreendi que meu interesse era estudar educação e todos os assuntos que se relacionassem a essa área.
Interessante observar que os/as professores/as do curso Normal não pareciam entusiastas da Pedagogia. Pelo contrário, cheguei a ser censurada ao expor minha escolha pela Pedagogia. Menina, esse curso vai acabar! Pedagogia é uma carreira em extinção!
Ainda no Normal, tive conhecimento da Orientação Educacional e, entre todas as habilitações da Pedagogia, ela foi a minha escolhida. Queria ter contato com os estudantes e suas famílias, pensar a escola na relação da comunidade em que se inseria. Foi justamente esse desejo que me levou à Universidade Federal Fluminense (UFF), único curso, na época, multi-habilitado entre as universidades para as quais prestei vestibular. Já no vestibular, meu desejo era fazer parte do corpo de estudantes da UFF. Imediatamente após concluir a formação de professores em nível médio, iniciei os estudos na Faculdade de Educação dessa instituição.
Ainda como estudante de Pedagogia, fiz concurso para o magistério da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro. Fui aprovada e, em 2002, tive minha primeira turma como professora regente em uma escola no município de São Gonçalo.
Em 2006, iniciei um curso de pós-graduação lato sensu em História da África e do Negro no Brasil, na Universidade Cândido Mendes. Este curso tinha uma dupla função: atender às exigências da Lei 10.639/03 e compreender melhor minha própria história. Buscava possibilidades de conhecimentos históricos que na minha geração de estudantes nos foram negadas.
No mesmo ano, iniciei meu trabalho como orientadora educacional, após aprovação em concurso público para a rede municipal de ensino de Duque de Caxias, município na Baixada Fluminense. Fui trabalhar em uma escola no bairro Jardim Gramacho, onde permaneci até maio de 2011.
Inicialmente, eu iria para outra escola, mas por equívocos da Secretaria de Educação (SME) tive que escolher uma nova unidade de ensino. Ofereceram-me uma escola, já me advertindo: É uma escola lá no lixão. Perguntei se era um lugar perigoso e todos me garantiram que não era. Naquele momento, a escola não tinha orientadores educacionais e senti que a SE me sugeria aquela escola com certa insistência. Justamente por não ter orientadores, a escola solicitava alguém que pudesse fazer horário vertical (manhã-tarde/tarde-noite). Entretanto, eu somente poderia trabalhar no horário da manhã, em virtude do meu compromisso como professora na rede estadual em São Gonçalo. Deram-me o telefone da então diretora e ela aceitou minha condição de somente poder trabalhar no turno matutino.
No dia seguinte me apresentei. Confesso que fiquei impactada ao ver uma escola tão grande do lado de fora. Era um prédio de dois andares, com um grande campo de futebol com grama sintética.
Entrei, apresentei-me e fui logo trabalhando. Não havia professores para todas as turmas e tínhamos que improvisar, juntar as crianças por faixa etária e outros critérios possíveis no momento. Também fui apresentada à orientadora pedagógica que, assim como eu, acabara de entrar na rede através do concurso, e que também trabalharia naquela escola como professora regente.
Logo passada a agitação dos primeiros dias, deparamos-nos com o desafio de sermos as únicas orientadoras de uma escola que atendia, naquele momento, aos nove anos do Ensino Fundamental e com mais de trinta turmas, incluindo sala de recursos e classe especial de autistas.
A escola poderia ter até três professoras orientadoras pedagógicas e duas professoras orientadoras educacionais, mas só tinha nós duas. O começo do trabalho foi difícil e, entre idas e vindas, solicitamos a mudança de escola três meses após o início das aulas, porém não fomos atendidas pela SME. Permanecemos trabalhando, mas, por questões de saúde, a orientadora pedagógica entrou em licença médica. Por um período, vi-me como a única orientadora em uma escola enorme que deveria ter cinco professoras orientadoras. Algum tempo depois, chegou outra orientadora educacional e uma orientadora pedagógica (dupla jornada, ou seja, hora-extra).
O primeiro ano foi muito difícil, os anos seguintes também não foram fáceis. A cada dia o trabalho da Orientação Educacional se mostrava mais complexo. Havia expectativas quanto à atuação da Orientação Educacional às quais eu não poderia corresponder. Ideias sobre a orientadora educacional que deveriam ser desmistificadas. Nada era fácil. Atender a responsáveis, alunos/as e professores/as não somente era exaustivo, mas trazia à tona as complexidades inerentes à vida cotidiana da escola. 
O tempo inteiro as professoras enviavam alunos para a sala da Orientação. Ao mesmo tempo, frequentemente, eu convocava os pais para conversar sobre seus filhos. Isso aqui parece fila do INSS! - um dia ouvi de uma colega ao observar a quantidade de pessoas que aguardavam para conversar comigo. Sentados, lado a lado, mães, avós, irmãos, alunos mais novos, alunos mais velhos, todos aguardavam os conselhos, as “broncas”, as recomendações que eu poderia lhes dar. Além disso, muitos colegas e demais funcionários da escola me convocavam para resolver conflitos entre alunos ocorridos dentro ou fora de sala. 
Hoje, percebo que parte da dificuldade do trabalho era consequência das minhas escolhas como professora orientadora. Ao mesmo tempo em que estava realmente disposta a ouvir as famílias, havia a expectativa dos meus colegas de que, após as conversas com as famílias, tudo mudasse, ou seja, que as dificuldades ou conflitos com os alunos dentro ou fora de sala estivessem resolvidos.
Ao falar sobre as crianças e sobre como elas e suas famílias deveriam se comportar ou atender às expectativas da escola, meu trabalho apenas amenizava alguns conflitos, mas não nos ajudava a ver, identificar e enfrentar as dificuldades e os conflitos que vivíamos naquela escola. Por outro lado, aprendi a ouvir e, ao ouvir, aprendi muito sobre os alunos, mas também com eles e suas famílias. Pois nessa prática, que necessitou de diálogo, fui buscando (re)construir uma prática mais coerente, não apenas no discurso, mas também nas ações.
Como nos lembra, muito pertinentemente, Paulo Freire (1987, p. 44):
A palavra inautêntica, por outro lado, com que não se pode transformar a realidade, resulta da dicotomia que se estabelece entre seus elementos constituintes. Assim é que, esgotada a palavra de sua dimensão de ação, sacrificada, automaticamente, a reflexão também, se transforma em palavreria, verbalismo, bláblábá. Por tudo isto, alienada e alienante. É uma palavra oca, da qual não se pode esperar a denúncia do mundo, pois não há denúncia verdadeira sem compromisso de transformação, nem este sem ação.

Entretanto, não pude dar continuidade a esse processo. As idiossincrasias da vida e do trabalho pedagógico nos apresentam o inesperado. Eis que a roda da vida me carregou para outro lugar e tive que sair dessa escola.
 Em maio de 2011, transferi-me para outra escola, em que desenvolvi a minha pesquisa de Mestrado. Sua escolha se deu aleatoriamente, eu não tinha nenhuma referência da escola (fosse positiva ou negativa). Fui no escuro e, chegando lá, os desafios permaneceram. Alguns eram semelhantes, em função das necessidades próprias de uma escola, outros eram específicos daquele lugar, daquela experiência escolar, daqueles praticantes da escola.
Carreguei e carrego comigo todas as questões, reflexões, dúvidas, medos e marcas dessa experiência primeira como professora orientadora. Iniciar meu trabalho nessa posição, em uma escola com uma realidade tão adversa, fez-me compreender a minha prática como elemento complexo, mas também importante para ampliar as possibilidades de construção de uma escola que se proponha a pensar junto e incluir. Trabalhando em um lugar em que a exclusão ganha contornos tão radicais e em que a presença do poder público se faz pouco presente, a escola se torna espaço muitas vezes de confluência das tensões e conflitos da comunidade, e o primeiro profissional convocado a participar desse processo de mediação é o/a professor/a orientador/a.
Nessa experiência de ir me fazendo, a cada dia, professora orientadora educacional, o cotidiano se impõe. A vida diária, aquilo que preciso fazer sempre e, ao mesmo tempo, fazer diferente, impõe-se à minha prática.


E chegando à escola, descobri que eu era o outro

Eu entrei na escola por volta dos dois anos de idade. Na verdade, comecei a frequentar escola com minha avó. Ela era merendeira de uma escola particular, próxima à nossa casa. Logo me tornei aluna daquela escola.  Em virtude da pouca idade, tenho poucas lembranças do período. Fiz toda a Educação Infantil naquela escola.
Pela primeira vez, estive na condição de outro. Certa vez, cheguei a minha casa chorando e perguntei à minha mãe: Mãe, por que meus colegas me chamam de macaca? Por quê? Minha mãe quis saber mais detalhes, se havia ocorrido alguma briga, discussão. Expliquei que não. Que só não entendia por que me chamavam daquela forma. Não conseguia me sentir sequer agredida, pois de fato não entedia. Chorava porque me incomodava que alguns colegas decidissem não me chamar pelo nome e pela animosidade com que aquelas palavras eram ditas. Minha mãe me explicou que também não entendia bem o motivo, já que os macacos são seres tão bonitinhos. Aquilo foi o suficiente para secar minhas lágrimas. Sabedoria de mãe!
Logo depois, ela engatou outra conversa.  Pelo menos naquele momento, para mim, criança de 4 para 5 anos, era outra conversa. Ela começou a explicar que nossa família era negra, mostrando a pele do meu braço e do dela, e que muita gente faria comentários depreciativos, “feios”, a nosso respeito. Mas que eu não deveria ligar, pois Gente negra é muito linda! Não pensei muito sobre o assunto. Pelo menos acho que não, nessa bricolagem de memória. Talvez, naquele momento exato, os fios não tenham se conectado, mas os ecos dessa conversa soaram na escola.
Por algum motivo, que não sei exatamente se foi aquela conversa, mas a única coisa que me ocorre nesse momento é que sim, eu me sentia forte. Quando alguém tentava me ofender eu logo dizia: Sou negra!, e isso desconcertava meus colegas de escola. Não sou macaca, sou negra!, Não sou neguinha, sou negra!, Não sou crioula, sou negra!. Não me lembro de ter necessitado dizer isso muitas vezes, não me lembro de muitas ofensas. Não tantas que merecessem lugar especial na minha memória. Evidentemente, a questão do preconceito não estava resolvida em mim, compreensões ingênuas do mundo, características da infância atravessavam-me. Especialmente pelo fato de que a diversidade humana nunca me pareceu uma questão relevante nas escolas em que estudei.
As operações aritméticas, as orações coordenadas e subordinadas, os órgãos e aparelhos do corpo humanos, regras do vôlei, a queda do muro de Berlim, as implicações do recente fim do socialismo e até a escravidão no Brasil foram questões nas/para as escolas em que estudei. Mas a diversidade humana, a construção da sujeição de um povo ou de povos com línguas próprias e soberanias que foram aviltadas no processo de dominação e exploração perpetrado pela Europa Ocidental, a partir do século XV, não eram questões, ou não eram questões tão importantes na/para essas escolas.
Mas, certamente, não fui a primeira e sei, hoje, como professora, que tampouco fui a última a ser chamada de “macaca” na escola. A animalização do negro, inclusive, não é uma invenção da escola. Essa instituição sim e seus sujeitos estão encharcados das construções ancoradas no “padrão branco de humanidade”. Não foram meus colegas de escola, nem suas famílias que inventaram esse tipo de desqualificação, tampouco essa necessidade de demarcar lugar do branco e do não branco. A necessidade de colocar cada um em seu lugar, de colocar o negro em seu lugar, em um lugar de inferioridade, em um lugar de não humano.
Todo o processo de construção do poder e dominação colonial dependeu dessa desqualificação através da criação de categorias de humanos. O próprio processo de ser negro, tornar-se negro, é atravessado por isso. A construção do africano como negro e do negro como escravo[1] serviu de pedra angular para a conformação dos processos de dominação que ainda hoje organizam a sociedade ocidental.
Entretanto, o próprio sentido de negritude vem sendo reconstruído, principalmente pelo Movimento Negro, e ainda permanece em transição. Contudo, ainda,
A negritude e/ou a identidade negra se refere à história comum que liga de uma maneira ou de outra todos os grupos humanos que o olhar ocidental “branco” reuniu sob o nome de negros. A negritude não se refere somente à cultura dos povos portadores da pele negra que de fato são todos culturalmente diferentes. Na realidade, o que esses grupos humanos têm fundamentalmente em comum não é como parece indicar, o termo Negritude à cor da pele, mas sim o fato de terem sido na história vítimas das piores tentativas de desumanização e de terem sido suas culturas não apenas objeto de políticas sistemáticas de destruição, mas, mais do que isso, de ter sido simplesmente negada a existência dessas culturas. Lembremos que, no início da colonização, a África foi considerada um deserto cultural, e seus habitantes como o elo entre o Homem e o macaco (MUNANGA, 2012, p. 20).

Ao afirmar, quando criança, Sou negra!, os atravessamentos eram diversos. Não se tratava, portanto, da construção de uma identidade de valorização e orgulho, mas uma reação ao estabelecimento de meu lugar de outro/a da construção humana. Estabelecendo a busca por identidades que transcendam a posição prevista para os outros (negros) e “reconhecendo”, apropriando as marcas coloniais que há em nós, os outros.
As tentativas de apelidos depreciativos a partir da marca racial nunca foram motivo de preocupação. De tristeza momentânea sim, mas nada que me preocupasse por longo tempo.
Ao iniciar no magistério, passei a vivenciar o preconceito por outro ângulo, pelo ângulo dos meus alunos. Entretanto, foi a partir da minha atividade como orientadora educacional que pude atar alguns fios que mobilizam reflexões que me moveram a buscar, a investigar a questão racial na escola.
Os apelidos vexatórios, a desqualificação das manifestações culturais e religiosas de matriz africana, a desvalorização das características físicas do negro, nada disso para mim era novo.
Porém, ao ter contato com os alunos e suas famílias, pude perceber que a perversidade do nosso sistema educacional se faz ainda mais marcante para estudantes e famílias que podem ser identificadas como negras.
Junto com insultos e desqualificação de suas características culturais e físicas, também há um perverso jogo de desqualificação tácito, que culmina por reforçar e reafirmar o fracasso escolar de crianças e jovens negros. Foi no contato com as famílias, proporcionado pela Orientação Educacional, que isso se mostrou mais evidente para mim.
Na formação para o trabalho, como pedagoga, e mais especificamente como orientadora educacional, as questões sociais e culturais são exaustivamente consideradas. Entretanto, não percebia que a questão étnico-racial merecia um olhar mais apurado. Em última análise, parecia ser considerada como parte das questões sociais que envolvem a escola, mas não foi merecedora de destaque para reflexões específicas para nossas ações e atuações profissionais.
Como nos coloca Gomes (2010), no campo educacional, a questão étnico-racial muitas vezes é vista como uma tarefa daqueles que têm alguma militância nessa área ou das professoras e dos professores negros. 
Contudo, para mim, no dia a dia do trabalho pedagógico, pareceu que essa é uma questão relevante. Não apenas pela grande quantidade de crianças negras encaminhadas por professores para a Orientação Educacional, como crianças com dificuldades para aprender ou para se comportar adequadamente em sala de aula, mas pelas famílias com as quais passei a ter contato e que, de alguma forma, viam-se diante dos desafios de uma escolarização que muitas vezes subalterniza suas crianças.
Assim como eu quando criança, é na experiência escolar que muitos/as estudantes são “alertados/as” de que são “diferentes”. Porém, ainda hoje ignoramos a questão étnico-racial negra, quando pensamos o trabalho pedagógico.
Talvez essa seja uma das faces mais perversas do mito da democracia racial incrustrado em nossa sociedade. A ideia da “igualdade que apaga as diferenças” (GOMES, 2010, p. 104) torna mais difícil a compreensão das crianças e dos/as jovens que frequentam a escola hoje acerca das tramas de construção das subalternidades em nossa sociedade e, assim, vai reciclando concepções desqualificadoras da população negra.
A questão é que, na escola, ainda temos dificuldade de compreender que nosso silenciamento frente às questões étnico-raciais é um motor potente para a estigmatização das crianças negras que frequentam essa instituição. Reafirma-se, assim, os seus lugares e de suas famílias como o lugar do outro, que precisa ser modificado no corpo e na mente para ser aceito ou, pelo menos, tolerado.

Pente de madeira com dentes de ferro –  reflexões acerca da identidade
Uma penteadeira e sobre ela uma pequena lasca de madeira, manualmente trabalhada com dentes finos de ferro. Durante muitos anos, aquela peça foi reinventada por minha mente e minhas mãos infantis e de minha irmã mais nova, por isso foi máquina de nos transformar em super-heroínas, foi volante de nossos carros imaginários e também foi usada em sua função original, pente de cabelo, penteando inclusive nossas bonecas, até as loiras de cabelos lisos (que eram a maioria).
Esse pente foi utilizado durante anos por minha mãe, que por algum tempo optou por não usar nenhuma química no cabelo. Durante anos eu passava aquele pente nos meus cabelos, num comportamento de imitação muito característico das crianças pequenas. Ao brincar de adulta, cabia tomar “emprestados” da minha mãe algumas roupas, sapatos e, claro, o pente de madeira. No meu “mundo dos adultos”, as pessoas tinham cabelos crespos e os penteavam com um pente para esses cabelos.
O pente foi um presente de um amigo de juventude, feito a mão, pois não havia pentes feitos para quem usava cabelo black, como minha mãe costuma dizer, em referência à moda dos cabelos black power dos anos 70.  
Para além da lembrança da infância, o pente me remete à construção de identidades que caracterizam aquilo que se convencionou chamar negritude. O cabelo crespo faz parte do universo de construção dessa identidade. Mesmo naqueles de pele clara, ele pode indicar uma ancestralidade negra e africana que pode fazer com que a condição de outro se estabeleça.
Sinal diacrítico muito marcante nas relações que se estabelecem no meio escolar: Cabelo de Bombril!, Cabelo de Assolan!, Cabelo duro!. É natural, inclusive, fazer a referência ao cabelo crespo como cabelo ruim, inclusive entre professores e professoras. Essas expressões são comuns de serem ditas e ouvidas pelas crianças e jovens que frequentam a escola. Ouvi expressões de desqualificação do corpo negro como estudante e as ouço ainda como professora. 
Faz parte da construção deste conhecer-se ou identificar-se e ser identificado como negro, ser confrontado com os comentários sobre esse corpo e o olhar orientado por um ideal de beleza e adequação realizado a partir do corpo e das características diacríticas identificadas como do branco. Sendo assim, o cabelo do negro, visto como “ruim”, é expressão do racismo e da desigualdade racial que recai sobre esse sujeito. Ver o cabelo do negro como “ruim” e do branco como “bom” é um conflito” (GOMES, 2008, p. 21).
A escola é um lugar em que identidades são construídas a partir das interações que inevitavelmente se estabelecem nesse espaço. Como para o reconhecimento de qualquer tipo de identidade o olhar dos demais é fundamental, esse processo em nossa sociedade é cada vez mais complexo. Ele se relaciona com os encontros e desencontros do próprio olhar sobre os de alguns grupos e a identidade nacional.
No Brasil, a construção da(s) identidade(s) negra(s) passa por processos complexos e tensos. Essas identidades foram (e têm sido) ressignificadas, historicamente, desde o processo da escravidão até às formas sutis e explícitas de racismo, à construção da miscigenação racial e cultural e às muitas formas de resistência negra num processo – não menos tenso – de continuidade e recriação de referências identitárias africanas. É nesse processo que o corpo se destaca como veículo de expressão e de resistência sociocultural, mas também de opressão e negação (GOMES, 2008, p. 21).

É nesse processo, que se faz nas relações e nas palavras ditas no dia a dia, nas expressões e atitudes realizadas cotidianamente, que vamos aprendendo que somos ou não negros e negras e quais os sentidos, positivos e negativos, da negritude em nossas vidas.
A assunção da negritude ou a sua negação são ambos processos complexos. Se, por um lado, fomos tornados negros, transformados negros, inventados, criados como categoria - primeiro como categoria animalizada, posteriormente como categoria humana diferente, diferente para ser inferiorizada -, também nos tornamos negros para resistir a essa desqualificação, a condição de sub-humanos (SANTOS, 2010).
Ser negro implica, primeiro, admitir uma construção sociológica, política, cultural, inventada na contraposição a alguém, aquele, o “criador”, sempre em posição superior à nossa. Ser negro implica, antes de qualquer coisa, como diz Fanon (2008), estar preso, eternamente, ao branco.
Esse nó, entretanto, ata todos da sociedade e acaba por estruturá-la, pois as relações sociais são balizadas pelo corte racial. Fanon (2008) nos adverte para o fato de que todos estão presos a essas relações. Sendo assim, negros estão presos aos brancos, mas os brancos também estão presos à identidade de oposição do negro.
A construção de identidade como elemento fundamental da resistência do negro faz parte não apenas dos reveses da história do Brasil, mas das necessidades primeiras de sobrevivência da população. Sempre foi necessário criar meios, táticas para sobreviver à opressão, para continuar existindo. Essas táticas ainda são vistas no cotidiano da educação brasileira, mais especificamente na escola pública, que atende à grande parte, por que não dizer, à maioria da população negra brasileira.
No dia a dia de crianças, adolescentes, jovens, de mães, pais, avós e avôs, tios e todos aqueles responsáveis diretamente pelas crianças, o que inclui professores e demais profissionais da educação, essas táticas muitas vezes são vistas como resistências ou violência. De fato, a construção identitária do negro passa pela margem, muitas vezes sem uma consciência. Identidade e consciência não necessariamente caminham juntas, pelo menos não no espaço escolar. Muitas vezes, resistir é um caminho de identidade que se faz de maneira inconsciente, ou pelo menos não planejada.
Neusa Santos Souza, em seu livro Tornar-se Negro (1983), trata dos processos psicológicos de construção da identidade negra a partir dos relatos de mulheres e homens negros em ascensão social, à luz dos conceitos da Psicanálise.
Nesse trabalho, a autora mostra, entre outros aspectos, o quão difícil foi para os entrevistados, em suas infâncias e na trajetória escolar, reconhecerem-se como negros. Diante da impossibilidade de transformar-se efetivamente em branco, ideal do que é certo e bom, estabelece-se uma profunda frustração e a necessidade frequente de superação, de ser sempre bom, de ser sempre o melhor, como uma maneira de serem aceitos.     
De certa forma, para alcançar o sucesso, houve, em algum momento, a negação da sua negritude, se não dos próprios entrevistados, das suas famílias, no processo de instruí-los e educá-los. 
A resistência a essa escola que deseja embranquecer é não se render totalmente ao que ela nos diz, a uma educação embranquecedora e correr, assim, o risco de não ser um bom aluno. A resistência ao formato da escola pode ser também uma tática de enfrentamento ao embranquecimento perpetrado pela escola, não apenas pelas regras disciplinares, mas também pelos conteúdos ministrados por ela[2].
As táticas não necessariamente vêm planejadas ou planejadas da forma como cartesianamente fomos acostumados a vê-las, diferentemente das estratégias, que na escola se fazem pelo currículo, pela prática pedagógica imaginada como a melhor para aqueles grupos, a prática pedagógica valorizada como ideal (e aí incluo também as chamadas teorias críticas) e das próprias relações interpessoais que se estabelecem entre alunos, professores, responsáveis e demais funcionários da escola.
De fato, as táticas estabelecidas por crianças, adolescentes, jovens, estudantes e familiares, para o enfrentamento das questões raciais na escola, passam pela reafirmação de identidades que, talvez, nem estejam tão claras, mas que são percebidas por essas famílias e crianças, jovens e adultos frequentadores da escola pública brasileira. São percebidas como traços de sua diferença em relação às expectativas escolares.
Não necessariamente as famílias pensem que essa identidade é por si só boa. Às vezes, dão a impressão de que essa identidade precisa ser retirada, ser extirpada. De alguma forma, a negritude tem que ser retirada dos corpos. Os corpos devem ser adestrados para outra identidade, anteriormente reconhecida como civilizada, neste momento como de desenvolvimento, progressista, avançada. Muitas vezes, as táticas são de resistência, mas, ao mesmo tempo, de uma necessidade de que esses corpos sejam transformados num corpo idealizado[3] (SOUZA, 1983).
De fato, há uma contradição e não poderia ser diferente em uma sociedade marcada por tantas ambiguidades nas relações que se supõem identitárias. Essas ambiguidades se refletem, inclusive, no seu racismo (GOMES, 2008; 2010).
Nas relações de herança colonial que podemos identificar no espaço escolar, certamente aquelas relativas à questão étnico-racial - mais especificamente ao negro e sua condição de vida -, culturais, históricas e até psicológicas parecem ganhar força. Isto é, mesmo que escondidas, camufladas, acabam por vazar e se fazem visibilizar, fazem-se sentir, tornando o espaço escolar denso.
A relação étnico-racial não tem essa característica na escola brasileira por mero acaso. A situação do negro, a história do negro, a vida do negro são fundamentais na compreensão da história do Brasil, pois são elementos fundamentais da nossa história. Fazem-se, obviamente, presentes na história da escola de uma maneira simples e objetiva, nos corpos que nela circulam, nos sujeitos que nela se fazem e que ela, a escola brasileira, constroem, seja pela presença, seja pela ausência.
Além disso, a questão étnico-racial é importante para se pensar o Ocidente, a ciência, a cultura ocidental, a organização espacial, as relações de poder, a constituição de classes e o pensamento daqueles que se fazem hegemônicos porque ganharam força traçando a Linha do Equador como marca/margem fundamental de distinção para o poder e a dominação.
A questão étnico-racial está presente no Ocidente. Entretanto, na sociedade brasileira, tem uma força imensa, também pelo legado social, econômico e cultural deixado pelas populações africanas e por seus descendentes em nossa história e sociedade, considerando-se o fato de que nosso país recebeu milhões de africanos escravizados[4].
Essa questão também me parece fundamental na formação de cada professora e professor. O resgate da própria história das professoras e professores negros como elemento essencial para que possamos repensar as práticas pedagógicas cotidianas na escola podem nos ajudar na formação permanente que os encontros e desencontros ocorridos no interior das escolas impõem a cada um/a de nós.
REFERÊNCIAS

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. 3. ed., 1. reimp. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.

QUIJANO, Anibal. Colonialidade, poder, globalização e democracia. Novos Rumos, ano 17, n. 37, p. 4-28, 2002.

______. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: ______. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Edgardo Lander (org). Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Set. 2005, p. 227-278.

______. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. (Orgs.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010, p. 84-130.

SALLES, Ricardo Henrique; SOARES, Mariza de Carvalho. Episódios de história afro-brasileira. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2005.


SANTOS, B. S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, B. S.; MENESES, M.P. (Orgs) Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010, p. 31-83.
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se Negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascenção social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. (Coleção Tendências, V. 4)




[1]O termo escravo reafirma a condição do ser de naturalmente dotado à condição de dominado e servil. Entretanto, ao se mergulhar nos processos históricos, sociais e culturais que sustentam o sistema colonial, incluindo a escravidão (elemento fundamental para essa estrutura), compreende-se que não há escravos, mas escravizados.
[2] Nesse sentido, o conceito de Colonialidade como elemento fundante dessa sociedade que impõe não apenas um modelo de comportamento, mas também de saberes válidos para a sociedade, se faz muito significativo para ampliar nossos sentidos acerca da escola que cotidianamente construímos.
[3] No livro de Neusa Santos Souza, um dos relatos mais marcantes é de uma orientação dada a uma de suas entrevistadas pela avó: “Minha avó não gostava de negro. Dizia que crioulo, sobretudo o negro, não prestava: ‘se você vir confusão, saiba que é o negro que está fazendo; se vir um negro correndo é ladrão. Você tem que casar com um branco pra limpar o útero” (Luísa) (SOUZA, 1983, p. 30). De certa forma, a avó sugere uma assepsia do corpo da neta através de uma união com um homem branco.
[4] Estudos estimam que o número de escravizados trazidos para o Brasil entre os séculos XVI e XIX gira em torno de 3.500.000 e 3.600.000 (SALLES; SOARES, 2005).