Rosa Miranda
Integrante do Grupo de Pesquisa ALFAVELA/IEAR-UFF
Estudante da Graduação em Cinema-UFF
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O conteúdo deste relato não é exaltar ou depreciar
o universo escolar. São impressões vividas empiricamente pela autora, que não pode
se eximir dos fatos que ocorreram na unidade escolar onde trabalhou. Tomando o
cuidado de não revelar nomes, sem uma visão romântica da função do professor ou
de uma escola perfeita, o objetivo é fazer uma análise sobre o espaço escolar
em contato com as novas tecnologias.
Certa noite, tomei conhecimento sobre o
Programa Mais Educação. Achei muito interessante e queria saber mais sobre o
mesmo, mas como meu tempo era curtíssimo, protelei, pesquisei na internet. Soube
que, a partir de oficinas de diferentes campos, inclusive cineclube, vídeo etc,
o Programa era uma iniciativa do Governo Federal que pretendia transformar o
ensino público em um ensino de tempo integral
Um dia cansada do meu antigo trabalho, trabalho
este que não me dava tempo para fazer nada do que eu gostava e que também não
tinha nada a ver com o que eu estava estudando, fiquei entusiasmada me
imaginando dando aulas.
Com o tempo, decidi
saber mais sobre o Programa. Era uma forma de ganhar dinheiro e fazer algo que
eu realmente gosto. Fui à Secretaria de Educação de São Gonçalo (cidade que eu
residia na época) armada com meu currículo e minha declaração de escolaridade.
Conversei com a responsável e a mesma me
disse que ligaria assim que tivesse alguma escola com meu perfil, que era muito
difícil pedirem algo relacionado a minha área. Jornal e teatro era coisa comum,
mas cinema nunca pediram.
Uma semana e nenhuma ligação. Decidi ir até
lá, mas ela não estava. Peguei o número e ligava, dia sim e dia sim, sempre
perguntando e querendo saber de alguma novidade. Um dia, ao ligar, ela disse: "Você
veio aqui! É a garota do cinema! Tem uma escola, mas é longe. Vai querer
mesmo?" Eu respondi: "Claro!". Ela avisou para eu ir até lá,
pegar o número, o endereço da escola e o nome da diretora. Em 15 minutos eu estava
na Secretaria para pegar um papel, um pequeno papel que mudou a minha vida!
Cheguei em casa e fui logo ligando e
marcando uma reunião para segunda feira à tarde. Era uma sexta-feira, nem
preciso dizer o quão ansiosa fiquei para acabar o fim de semana. Quando chegou
segunda-feira, estava em cólicas. Ao meio dia já estava pronta e querendo que
chegasse logo às 14 horas, porém, já estava dando a hora e o ônibus não
chegava. Liguei para a escola avisando que estava à caminho, a diretora disse
que me esperaria.
Cheguei na escola esbaforida às 15 horas.
Na minha cabeça, como cheguei um pouco atrasada, achei que não conseguiria o
trabalho. A diretora me recebeu sorrindo, se apresentou e pegou meu currículo.
- Já deu aulas para crianças? -
questionou a diretora, de forma simpática.
- Sim, cursei o antigo curso normal, mas
não o concluí. Montei na varanda da casa do meu pai uma creche na comunidade em
que ele morava. Respondi, tentando parecer calma.
- Ótimo! Vou te mostrar a escola.
(E eu sorria, muito feliz).
- Você gosta de crianças?
Ela me fez essas perguntas enquanto
andávamos pelos corredores da escola vazia. Os estudantes não estavam mais. Ela
abriu a porta de uma sala pequena onde pude ver várias coisas entulhadas.
- Sim, adoro! – respondi, acompanhando e
olhando o espaço pequeno onde ela disse que seriam as minhas aulas, muito
diferente do que eu imaginei.
- Você deve ficar com essa sala aqui. Estamos
em obra, vamos mudar, depois terá uma outra sala onde hoje é a de professores,
mas não agora. Vai demorar, no momento é o que temos para vocês. Aqui são 25 alunos por turma no máximo e são 4
turmas. o pessoal da secretaria já te passou o valor?
- Sim. R$ 240 reais, certo?
- Isso. Outra coisa: aqui você vai pegar
os piores alunos, os indisciplinados, os violentos, com mau comportamento, mau
rendimento e apáticos. Você vai ter que ter voz ativa!
Não falei nada, mas a minha cara disse
algo que ela respondeu:
- Qualquer problema é só falar comigo que
eu resolvo.
Fiquei pensando como ela resolveria, Voltamos
a sala da direção.
- Você começa na segunda-feira, tudo bem?
E preciso de outra pessoa na quarta-feira também, pode ser?
- Pode, sem problemas.
- Então fica assim: segunda e quarta o
dia todo, ok?
- Ok!
No final de semana planejei uma aula de
apresentação e uma dinâmica de apresentação. Eles teriam que dizer o nome, a
idade, mais um filme que já assistiram e gostaram. Depois eles iriam escrever
em um papel 5 coisas que eles gostavam muito de fazer e 5 coisas que eles não
gostavam nem um pouco de fazer.
Cheguei na escola às 9 horas, a aula
seria às 10 horas. Arrumei as cadeiras em um círculo enquanto ouvia os gritos
deles do lado de fora. Eu estava com um vestido retrô azul e um sapato preto,
levemente maquiada, cabelos soltos. Queria causar uma boa impressão aos meus
alunos. Saí para o pátio e eles estavam formando e orando ao Senhor, fiquei
extremamente incomodada com a forma como eram tratados com gritos e deboche por
parte dos inspetores e professores e pensei: “se o Estado é laico, porque na
escola tem que rezar?” Entrei novamente para a sala e aguardei aquele ritual
acabar.
Me apresentei falando meu nome, idade e
filme que gostei de assistir, um filme compatível com a idade deles. Eles
sorriam e não pareciam nada com o que a diretora havia dito, até chegar a
segunda turma da manhã.
A segunda turma da manhã estava eufórica.
Eles gritavam e brincavam. Através de nomes que não consigo mencionar aqui, dois
estudantes começaram a se xingar porque, na folha que eu havia entregue com a
atividade sugerida, um deles havia colocado o nome de uma das meninas daquela
turma. Percebi claramente naquela discussão que havia uma espécie de “casta”
dentro da favela. Dependendo do lugar em que se mora, você é de uma classe
diferente e, com isso, acontecia o bullying
dentro daquela escola. Fiquei atônita olhando para aquelas crianças, até que
resolvi intervir e mandar eles pararem imediatamente. O sinal tocou e eles
foram dispensados. Fiquei incomodada vendo a sala vazia e pensando no que tinha
acontecido. Nada funcionou! Eles rasgaram o papel, não queriam sentar, uma
loucura.
Veio a turma da tarde que era dos mais
velhos e as injúrias eram piores. Ainda assim, consegui desenvolver atividades
com eles, mas estava tão abalada com o que havia acontecido pela manhã que me
desanimei na parte da tarde.
Fui para casa me recusando a acreditar no
que tinha presenciado. Comecei a reler minha monografia que falava sobre O
cinema na educação como formador de um novo público para o cinema nacional.
Nela fazia uma discussão a partir de uma visão de mercado, pensando no
crescimento do mercado audiovisual caso, desde a primeira infância, fôssemos
acostumado a assistir filmes não pedagógicos. Tive vontade de rasgá-la.
Foi-se o primeiro dia. No segundo dia, pedi
o aparelho DVD para exibir um filme na TV, já que o projetor ainda não havia
chegado na escola. O DVD estava sendo usado numa turma em que a professora
faltou e colocaram um filme para os alunos assistirem. Exibi os filmes num
monitor de computador. Eram curtas do youtube.
Eles reclamaram, mas, ao final, gostaram, apesar de eu ter uma certa
dificuldade para fazê-los prestar atenção nos filmes e não nos computadores que,
mesmo estando desligados, eles cismaram em teclar e colocar os fones.
Duas semanas depois de tentativas frustradas
de fazê-los entender os filmes exibidos, comecei a alugar filmes de longa
metragem para eles. Eles gostavam, mas o bate-boca continuava. Fiquei sabendo
que haveria um encontro de educadores de cinema e vídeo na UFF no horário das
minhas oficinas, pedi que a diretora trocasse meus dias naquela semana para que
eu pudesse ir ao encontro. Avisei aos estudantes que eles ficariam com outra
professora nos meus dias, mas que eu retornaria. Foi a melhor coisa que eu fiz!
Não me arrependo!
Tive diversos insights com relatos de
futuros colegas de profissão. Tive acesso a informações e materiais desconhecidos
para mim até então. Depois de três dias de encontro, decidi que mudaria minhas
aulas e minha postura diante dos educandos. Estava radiante, confiante e
empolgada.
Resolvi começar do zero, coloquei as
mesmas roupas do meu primeiro encontro com eles, cheguei na escola com outras
atividades, levei minha câmera, filmes, 4 papéis 40 kg e pilot. Pedi para eles
que fizessem o "estatuto da turma". Eles não sabiam o que era um
"estatuto", daí então pegamos o dicionário. Eles entenderam que eram
as regras do jogo daquela sala.
Para minha surpresa eles decidiram as
mesmas regras que já estavam estabelecidas na escola, com poucas alterações,
como o uso de celular, por exemplo. Eu mesma fui avisada pela diretora que
havia uma lei federal onde dizia que não se pode usar celular nos espaços
escolares. Essa regra foi mantida escondida, porque a turma mesmo questionou: "as
professoras usam celular!".
Sem procurar dar repostas, e sem divulgar
à direção propus continuar com o uso do celular. Acredito que o fato de eles terem
autonomia de dizer SIM ou NÃO mudou a concepção deles de regras. Eles passaram
a se policiar mais, foi muito interessante fazer eles perceberem que têm poder
de decisão e mudar a visão deles de escola.
Em casa, fiquei pensando um jeito de acabar
com as agressões entre eles. Decidi levar uma caixa de sapato que seria
confeccionada por eles. Quando eles quisessem gritar, brigar ou xingar outro
colega ou qualquer pessoa da escola, sugeri que escrevessem, desenhassem, enfim, desabafassem, sem colocar
o nome, depositando na caixa o desabafo. Essa caixa seria chamada de
"Caixa de Pandora". Coloquei algumas folhas e lápis ao lado da caixa.
Levei apenas uma caixa pequena, não sabia que eles queriam escrever tanto!
Na semana seguinte, tive que passar no
shopping e coletar mais caixas, pois percebi que aquela caixa era muito pequena
para eles. Levei então uma caixa para cada turma e eles decidiram que
deveríamos abrir a caixa uma vez por semana. Decidiram também que algumas
coisas ficariam na caixa, outras seriam descartadas para sempre.
Achei ótimo vê-los às vezes irem para o
fundo da sala pegar um papel e rabiscar até esgotar, depois colocar na caixa e
voltar pro seu lugar, pensei que iria ler eles se xingando, mas para minha
surpresa eles depositavam ali todas as angústias deles, não só da escola como
também da família, medos, colegas de fora…
Em outro encontro, eu levei feijões,
copos descartáveis e algodão. Pedi pra eles plantassem e fotografassem a cada
dia, dessa forma registrariam a evolução daquela planta. Infelizmente não deu
certo, pois, como a sala ficava fechada quando não tínhamos aula, eles eram
proibidos de entrar e não tinha como fazer. Eles ficaram frustrados e eu
também. Tentamos então fazer em casa, porém, nem todos os pais deixavam as
crianças usarem as câmeras. Tentamos novamente na escola, mas as faxineiras
jogaram os copos fora. Ao fim, conversamos e chegamos à conclusão que nem
sempre tudo vai dar certo, mas que tínhamos que tentar. Eles, apesar de
chateados, seguiram em frente e uma das estudantes me disse: "Pelo menos
tentamos, né, tia?". Respondi que sim e propus outra atividade.
Percebi que eu e aqueles estudantes estávamos
mudando a forma como nos relacionávamos: eu confiava neles e eles confiavam em
mim. Viramos cúmplices uns dos outros, nos meus almoços eles ficavam comigo.
Em outra ocasião, fizemos uma experiência
com o som em um filme. Coloquei o som de uma propaganda do youtube para eles e pedi para eles criassem uma estória a partir
dos sons ouvidos. Em seguida, pedi que eles assistissem a mesma propaganda sem
o som e escrevessem quais sons eles imaginariam ouvir naquele vídeo. Depois, os
alunos assistiram a mesma propaganda com som e ficaram intrigados com a
diferença que fazia entre o que eles tinham escrito e o que estavam vendo. Muitas
perguntas foram feitas e conclusões tiradas.
Em outro encontro, falei sobre os filmes
mudos. Exibi um curta- propaganda de guerra do Chaplin, um filme raro. Depois
exibi um curta de animação extra do DVD “Up - Altas Aventuras”, também mudo.
Fiz algumas perguntas sobre qual a diferença entre um e outro e eles falaram
sobre um ser preto e branco e o outro ser colorido; que um era antigo e o outro
novo; que um era desenho e o outro pessoas de verdade. Alguns falaram que
conheciam o Chaplin e o associaram ao Chaves, porque ele também era atrapalhado
como o herói mexicano.
Durante a exibição, uma professora entrou
na sala no momento em que Chaplin martelava um soldado nazista com um grande
martelo. Neste mesmo dia, fui chamada à direção. Senti um frio na barriga como
quando eu era estudante e era repreendida. A coordenadora ir na minha sala me
chamar durante aquele encontro me incomodou. Fiquei pensando se havia ocorrido
alguma coisa com algum educando meu. Neste meio tempo, deixei com os estudantes
dois sacos de brinquedos doados por filhos de amigos. E também deixei com eles
a câmera. Pedi para que eles pegassem os brinquedos e fizessem um filme mudo
ou, no máximo, com o som de algum celular.
Na sala da direção, fui chamada a atenção
por exibir um filme violento. Ouvi da diretora que eles não sabiam o que era
Chaplin e que eu tinha dado pérolas aos porcos. Ouvi também que, a partir de
então, ela teria que ver os filmes que eu estava exibindo porque um filme que
diminui o policial não é bom para eles. Dizia ela que o filme tinha que ser
condizente com a idade. Não respondi nada. Fiquei aborrecida e voltei a sala
quieta, mas louca para dar uma resposta.
Ao chegar na sala, eles estavam filmando
ainda. Fiquei quieta para não atrapalhar a filmagem. Um grupo colocou até
música do celular. Fizeram uma briga de bonecos e um deles recriou uma parte do
filme de Chaplin com os brinquedos. Eu não tinha ideia do que eles iriam fazer,
mas peguei aquele material e pedi para eles não saírem por um momento que eu
colocaria na TV para assistirem o que eles tinham acabado de fazer. Fui na
direção e mostrei o que eles fizeram e a diretora. Ela então disse que não
interromperia mais as minhas aulas e nem interferiria nos meus métodos, apesar
de não concordar com eles.
Na semana seguinte, havia poucos
estudantes devido à falta de uma das professoras da tarde. Assim, nos sentamos
no chão e fizemos aviões de papéis e balões. Peguei a câmera e dei a eles o tema
“liberdade”. Perguntei o que eles queriam filmar naquele dia. Eles quiseram ir
a quadra e pediram para eu filmar eles pulando, correndo, se pendurando na
trave do gol, estrelinha, cambalhota e rindo muito. Perguntei o que era para
eles aquilo e eles gritaram: "Liberdade! Tô livre!".
Para a turma seguinte dei o tema "sonho".
Enquanto sentávamos no chão, perguntei a eles: "qual é o seu sonho?".
Os meninos queriam ser jogadores de futebol, um queria ser desenhista. Entre as
meninas, uma queria ser médica, outra modelo e outra "cuidadora" de
cavalo. Falei veterinária e ela concordou. Perguntei então: "qual desses
sonhos vamos filmar hoje?".
Eles pediram para eu sair da sala e
voltar quando eles decidissem. Eu concordei. Fui beber água e, quando voltei,
eles queriam ir para a quadra. Gravaram 2 sonhos, o da médica e dos jogadores
de futebol. A médica atendia um jogador que se machucava durante o jogo.
Para a primeira turma da tarde o tema foi
"observação". Eles ficaram na sala porque a quadra estava ocupada e
brincaram do jogo do "detetive". Eles sorteavam o papel e, em roda, o
assassino piscava e matava as vítimas. Por sua vez, o detetive tinha que
prender o assassino. Segundo eles, a câmera passava e observava o detetive e,
por vezes, as vítimas.
Para a última turma do dia o tema foi
"prisão". Decidiram brincar de "polícia e ladrão". Se
dividiram em dois grupos, um sendo carcereiro e outro prisioneiros. Os
prisioneiros se rebelaram e os policiais tentavam controlá-los com palavrões e
agressões. Essa foi bem complicada
porque, quando estava muita algazarra e eu pedia para parar, eles diziam que
eram atores e que estavam em uma cena.
Em alguns momentos, quando eles pediam,
eu filmava. Achava muito interessante as associações feitas com os temas propostos,
desde reação dos carcereiros e dos carcerários, como a relação que fizeram do
sonho do jogador com a médica.
Neste período, precisei dar aulas nas
segundas e terças. Eles reclamaram pois não foram avisados anteriormente. Mais
uma vez, os estudantes foram deixados à margem das informações administrativas.
Eu acordei com a direção a mudança dos meus dias, mas a informação não foi
repassada a eles. Depois fui perceber que esta era uma problemática recorrente
naquele e em outros espaços escolares.
Em outro encontro, passei a falar sobre
documentários. Tentei utilizar filmes brasileiros e exibi "Ilha das flores",
do diretor Jorge Furtado. Eles passaram a se cumprimentar com os polegares e
indicadores como no filme. A discussão sobre o filme foi muito interessante,
eles começaram a refletir um pouco mais sobre a realidade deles e a problematizar
a escola.
Para contextualizar, devo dizer que nossa
sala não tinha ventilador, muito menos ar condicionado, e que o calor era
absurdo. No entanto, eles começaram a observar que em alguns espaços da escola,
espaços aos quais eles não tinham acesso, havia ar condicionado, internet, água
gelada…
Fiz a proposta de fazerem um documentário
sobre a escola. Perguntei o que eles queriam filmar daquela escola. "Tudo",
eles responderam. Perguntei o que eles queriam saber sobre aquele espaço, e eles
responderam "sobre a merenda, sobre a direção, sobre a professora".
Pedi para que eles se dividissem em grupos e escolhessem alguém da escola para
entrevistarem com 5 perguntas previamente discutida entre eles e com a turma.
Um grupo decidiu me entrevistar, outro
decidiu entrevistar a diretora, outros 3 grupos decidiram por 3 professoras
diferentes. A elaboração das perguntas foi uma parte um pouco complicada, pois
muitas delas, pelas polêmicas levantadas, além de me provocar certo desconforto,
podiam me atrapalhar com a direção.
Perguntas como:
- Você come a merenda da escola? Se não,
por quê?
- Porque você grita tanto?
- Você gosta do que você faz?
- Por quê na sala dos professores tem ar
e na nossa não tem ventilador?
- Você se aborrece muito?
- Você acha que é uma boa professora?
- Você ganha muito para estar aqui?
Eu os orientei a falar sobre o
documentário, entregar as perguntas antes, conseguir os entrevistados e fazer a
entrevista no próximo encontro que seria na semana outra semana, ou seja: na
terça eles fariam a produção e na segunda seguinte filmaríamos. Avisei que não
iria me envolver, mas, ao final da aula, conversei com a diretora sobre a
proposta de documentários e disse que eles iriam fazer a produção, conversar
com os possíveis entrevistados, que perguntariam se seria possível na segunda,
qual seria o melhor horário. Afirmei que tudo ficaria sob a responsabilidade
deles.
Naquela mesma terça-feira, antes de sair
da escola, a diretora me chamou de novo na direção. Disse que eu não iria fazer
entrevista nenhuma, que eu parasse com essa história de documentário, que a
minha oficina era de cineclube e não de vídeo, que ou eles mudavam as perguntas
ou ficariam sem filme nenhum.
A maioria dos escolhidos disseram que
responderiam as perguntas, exceto a diretora, por não se sentir à vontade com
as questões. O grupo que entrevistaria a diretora ficou desanimado com o
ocorrido. Perguntei a eles se não queriam entrevistar outra pessoa, mas eles
foram irredutíveis. Sugeri que eles mudassem as perguntas e propusessem a mudança
à diretora, mas eles imediatamente disseram não. Perguntei a eles o que
poderíamos fazer, afinal, já que estava difícil resolver o impasse. Por fim,
eles optaram por mudar as perguntas e eu concordei pra darmos prosseguimento a
atividade.
Foram elaboradas novas perguntas, como:
- Você gosta do seu nome?
- Qual a sua idade?
- Você quer mais filhos?
- Você gosta do que você faz?
- O que você gostaria de ser se não fosse
diretora?
Eles entregaram na direção e aguardaram o
chamado desta. Quase no fim da tarde a diretora foi à sala e disse que poderia
fazer a entrevista naquele momento. Eu estava com outra turma, porém, na mesma
hora fui acompanhar o grupo que entrevistaria a diretora. Levei a câmera mas
deixei a outra turma sozinha por um tempo, enquanto eles assistiam ao que
haviam filmado.
Alguns minutos depois, eles foram
devolver a câmera e riam muito, disse a eles que não poderia assistir naquela
hora, mas que, no próximo encontro, todos assistiríamos juntos. Logo em seguida,
a diretora entrou na sala e me chamou à direção.
Após liberar a turma, fui à direção e a
mesma estava irritadíssima. Disse que foi muito maltratada pelos meus
estudantes, que ela não aceitava o que tinham feito com ela e que eu deveria
repreende-los em sala, do contrário, expulsaria todos. Como ainda não tinha
assistido a filmagem deles, não pude debater, só afirmei que conversaria com
eles assim que entendesse o que havia acontecido de tão ruim. Ela disse que
eles haviam modificado as perguntas.
Em casa, assisti ao vídeo e me preparei
para uma conversa que estava marcada para a semana seguinte com a diretora. Pensei
em me eximir da culpa, dizer que foi responsabilidade deles, que eu não tinha
nada a ver com isso, mas achei, no mínimo, inescrupuloso da minha parte fazer
isso. Assumi minha posição como mediadora daquela turma e responsável por
propor esta atividade. Conversei com a diretora sem me desculpar e resisti para
que nenhum deles fosse criminalizado pela ação espontânea de ter as respostas que
eles queriam. Apesar de contrariada por eu ter me colocado a favor deles, a
diretora não me dispensou da escola.
A conversa com a turma foi a pior parte
para mim. Eles estavam muito apreensivos. Fiz um circulo no chão com eles e
falei que a atitude que eles tiveram não havia tido um resultado positivo. Eles
não conseguiram obter as respostas que queriam e ainda causaram um desconforto
entre eu e a diretora. Sugeri que eles fossem conversar com a diretora e serem
verdadeiros ao expor os motivos que os levaram a fazer o que fizeram. Analisei
a técnica, disse que constranger o entrevistado não era o ideal, eles assim o
fizeram e depois desse incidente não houve mais embate da direção comigo.
Após a exibição de um filme, percebendo
que alguns deles tinham muita dificuldade de se expor, resolvi fazer um
questionário com perguntas técnicas sobre a obra. Quem respondesse corretamente
receberia uma paçoca, já que o programa não permitia avaliações pedagógicas. Atualmente
considero problemática essa adestração, mas como na época ainda não tinha os debates
que tenho hoje sobre o assunto, consegui obter resultados. Mas, devo admitir,
ainda hoje questiono-me se os bons resultados foram pela paçoca ou pelo real
interesse em saber do filme.
A diretora não mais entrou em embate
comigo, mas tempos depois, um dos meus colegas foi expulso do programa por mal
comportamento e, enquanto todas as professoras diziam "ainda bem!",
eu dizia "que pena, é menos um aqui comigo".
Em outro encontro percebi o quanto eles
adoravam histórias de terror. Fiz uma pesquisa de curtas-metragens desse gênero
e exibi na parede da sala com datashow, que foi cedido com muito medo pela
direção, pois acreditavam que eu não conseguia operar o equipamento. Depois de
muita insistência, consegui não só provar que sabia operar o aparelho bem como
ensinar as professoras que se interessavam em aprende a operá-lo.
Alugava filmes em uma locadora próxima à
escola com meu próprio dinheiro, depois descobri que a escola poderia me
ressarcir. Passei a dar as notas para a professora e ela sempre me reembolsava
o valor.
O resultado de um ano de aprendizado
naquele universo é a certeza que na sala de aula me sinto realizada, que
naquele espaço, mesmo com todas as suas problemáticas e contradições, ainda é
um local de formação e autoafirmação, de criação, de identidades e de
manifestações culturais das mais diversas.
Tive um contato mais próximo, empírico, em
uma unidade educacional dentro de uma comunidade carente. Consegui, mesmo com
meu "olhar de fora", ter uma visão diferente daquela romantizada nos
filmes que falam de escolas.
A minha visão de escola é que esta é uma instituição
que não faz uma reflexão da sua prática e tem uma visão muito “idebizada”, se é
que posso dizer isso desta maneira, muito mais preocupada com resultados irreais
e nem tampouco coerentes, do que com o resultado real que faz o indivíduo
refletir sobre a sua realidade.