terça-feira, 28 de outubro de 2014

CINEDUCAÇÃO NO MAIS EDUCAÇÃO


Rosa Miranda

Integrante do Grupo de Pesquisa ALFAVELA/IEAR-UFF
Estudante da Graduação em Cinema-UFF

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O conteúdo deste relato não é exaltar ou depreciar o universo escolar. São impressões vividas empiricamente pela autora, que não pode se eximir dos fatos que ocorreram na unidade escolar onde trabalhou. Tomando o cuidado de não revelar nomes, sem uma visão romântica da função do professor ou de uma escola perfeita, o objetivo é fazer uma análise sobre o espaço escolar em contato com as novas tecnologias.
Certa noite, tomei conhecimento sobre o Programa Mais Educação. Achei muito interessante e queria saber mais sobre o mesmo, mas como meu tempo era curtíssimo, protelei, pesquisei na internet. Soube que, a partir de oficinas de diferentes campos, inclusive cineclube, vídeo etc, o Programa era uma iniciativa do Governo Federal que pretendia transformar o ensino público em um ensino de tempo integral
Um dia cansada do meu antigo trabalho, trabalho este que não me dava tempo para fazer nada do que eu gostava e que também não tinha nada a ver com o que eu estava estudando, fiquei entusiasmada me imaginando dando aulas.
Com o tempo, decidi saber mais sobre o Programa. Era uma forma de ganhar dinheiro e fazer algo que eu realmente gosto. Fui à Secretaria de Educação de São Gonçalo (cidade que eu residia na época) armada com meu currículo e minha declaração de escolaridade.
Conversei com a responsável e a mesma me disse que ligaria assim que tivesse alguma escola com meu perfil, que era muito difícil pedirem algo relacionado a minha área. Jornal e teatro era coisa comum, mas cinema nunca pediram.
Uma semana e nenhuma ligação. Decidi ir até lá, mas ela não estava. Peguei o número e ligava, dia sim e dia sim, sempre perguntando e querendo saber de alguma novidade. Um dia, ao ligar, ela disse: "Você veio aqui! É a garota do cinema! Tem uma escola, mas é longe. Vai querer mesmo?" Eu respondi: "Claro!". Ela avisou para eu ir até lá, pegar o número, o endereço da escola e o nome da diretora. Em 15 minutos eu estava na Secretaria para pegar um papel, um pequeno papel que mudou a minha vida!
Cheguei em casa e fui logo ligando e marcando uma reunião para segunda feira à tarde. Era uma sexta-feira, nem preciso dizer o quão ansiosa fiquei para acabar o fim de semana. Quando chegou segunda-feira, estava em cólicas. Ao meio dia já estava pronta e querendo que chegasse logo às 14 horas, porém, já estava dando a hora e o ônibus não chegava. Liguei para a escola avisando que estava à caminho, a diretora disse que me esperaria.
Cheguei na escola esbaforida às 15 horas. Na minha cabeça, como cheguei um pouco atrasada, achei que não conseguiria o trabalho. A diretora me recebeu sorrindo, se apresentou e pegou meu currículo.
- Já deu aulas para crianças? - questionou a diretora, de forma simpática.
- Sim, cursei o antigo curso normal, mas não o concluí. Montei na varanda da casa do meu pai uma creche na comunidade em que ele morava. Respondi, tentando parecer calma.
- Ótimo! Vou te mostrar a escola.
(E eu sorria, muito feliz).
- Você gosta de crianças?
Ela me fez essas perguntas enquanto andávamos pelos corredores da escola vazia. Os estudantes não estavam mais. Ela abriu a porta de uma sala pequena onde pude ver várias coisas entulhadas.
- Sim, adoro! – respondi, acompanhando e olhando o espaço pequeno onde ela disse que seriam as minhas aulas, muito diferente do que eu imaginei.
- Você deve ficar com essa sala aqui. Estamos em obra, vamos mudar, depois terá uma outra sala onde hoje é a de professores, mas não agora. Vai demorar, no momento é o que temos para vocês. Aqui são 25 alunos por turma no máximo e são 4 turmas. o pessoal da secretaria já te passou o valor?
- Sim. R$ 240 reais, certo?
- Isso. Outra coisa: aqui você vai pegar os piores alunos, os indisciplinados, os violentos, com mau comportamento, mau rendimento e apáticos. Você vai ter que ter voz ativa!
Não falei nada, mas a minha cara disse algo que ela respondeu:
- Qualquer problema é só falar comigo que eu resolvo.
Fiquei pensando como ela resolveria, Voltamos a sala da direção.
- Você começa na segunda-feira, tudo bem? E preciso de outra pessoa na quarta-feira também, pode ser?
- Pode, sem problemas.
- Então fica assim: segunda e quarta o dia todo, ok?
- Ok!
No final de semana planejei uma aula de apresentação e uma dinâmica de apresentação. Eles teriam que dizer o nome, a idade, mais um filme que já assistiram e gostaram. Depois eles iriam escrever em um papel 5 coisas que eles gostavam muito de fazer e 5 coisas que eles não gostavam nem um pouco de fazer.
Cheguei na escola às 9 horas, a aula seria às 10 horas. Arrumei as cadeiras em um círculo enquanto ouvia os gritos deles do lado de fora. Eu estava com um vestido retrô azul e um sapato preto, levemente maquiada, cabelos soltos. Queria causar uma boa impressão aos meus alunos. Saí para o pátio e eles estavam formando e orando ao Senhor, fiquei extremamente incomodada com a forma como eram tratados com gritos e deboche por parte dos inspetores e professores e pensei: “se o Estado é laico, porque na escola tem que rezar?” Entrei novamente para a sala e aguardei aquele ritual acabar.
Me apresentei falando meu nome, idade e filme que gostei de assistir, um filme compatível com a idade deles. Eles sorriam e não pareciam nada com o que a diretora havia dito, até chegar a segunda turma da manhã.
A segunda turma da manhã estava eufórica. Eles gritavam e brincavam. Através de nomes que não consigo mencionar aqui, dois estudantes começaram a se xingar porque, na folha que eu havia entregue com a atividade sugerida, um deles havia colocado o nome de uma das meninas daquela turma. Percebi claramente naquela discussão que havia uma espécie de “casta” dentro da favela. Dependendo do lugar em que se mora, você é de uma classe diferente e, com isso, acontecia o bullying dentro daquela escola. Fiquei atônita olhando para aquelas crianças, até que resolvi intervir e mandar eles pararem imediatamente. O sinal tocou e eles foram dispensados. Fiquei incomodada vendo a sala vazia e pensando no que tinha acontecido. Nada funcionou! Eles rasgaram o papel, não queriam sentar, uma loucura.
Veio a turma da tarde que era dos mais velhos e as injúrias eram piores. Ainda assim, consegui desenvolver atividades com eles, mas estava tão abalada com o que havia acontecido pela manhã que me desanimei na parte da tarde.
Fui para casa me recusando a acreditar no que tinha presenciado. Comecei a reler minha monografia que falava sobre O cinema na educação como formador de um novo público para o cinema nacional. Nela fazia uma discussão a partir de uma visão de mercado, pensando no crescimento do mercado audiovisual caso, desde a primeira infância, fôssemos acostumado a assistir filmes não pedagógicos. Tive vontade de rasgá-la.
Foi-se o primeiro dia. No segundo dia, pedi o aparelho DVD para exibir um filme na TV, já que o projetor ainda não havia chegado na escola. O DVD estava sendo usado numa turma em que a professora faltou e colocaram um filme para os alunos assistirem. Exibi os filmes num monitor de computador. Eram curtas do youtube. Eles reclamaram, mas, ao final, gostaram, apesar de eu ter uma certa dificuldade para fazê-los prestar atenção nos filmes e não nos computadores que, mesmo estando desligados, eles cismaram em teclar e colocar os fones.
Duas semanas depois de tentativas frustradas de fazê-los entender os filmes exibidos, comecei a alugar filmes de longa metragem para eles. Eles gostavam, mas o bate-boca continuava. Fiquei sabendo que haveria um encontro de educadores de cinema e vídeo na UFF no horário das minhas oficinas, pedi que a diretora trocasse meus dias naquela semana para que eu pudesse ir ao encontro. Avisei aos estudantes que eles ficariam com outra professora nos meus dias, mas que eu retornaria. Foi a melhor coisa que eu fiz! Não me arrependo!
Tive diversos insights com relatos de futuros colegas de profissão. Tive acesso a informações e materiais desconhecidos para mim até então. Depois de três dias de encontro, decidi que mudaria minhas aulas e minha postura diante dos educandos. Estava radiante, confiante e empolgada.
Resolvi começar do zero, coloquei as mesmas roupas do meu primeiro encontro com eles, cheguei na escola com outras atividades, levei minha câmera, filmes, 4 papéis 40 kg e pilot. Pedi para eles que fizessem o "estatuto da turma". Eles não sabiam o que era um "estatuto", daí então pegamos o dicionário. Eles entenderam que eram as regras do jogo daquela sala.
Para minha surpresa eles decidiram as mesmas regras que já estavam estabelecidas na escola, com poucas alterações, como o uso de celular, por exemplo. Eu mesma fui avisada pela diretora que havia uma lei federal onde dizia que não se pode usar celular nos espaços escolares. Essa regra foi mantida escondida, porque a turma mesmo questionou: "as professoras usam celular!".
Sem procurar dar repostas, e sem divulgar à direção propus continuar com o uso do celular. Acredito que o fato de eles terem autonomia de dizer SIM ou NÃO mudou a concepção deles de regras. Eles passaram a se policiar mais, foi muito interessante fazer eles perceberem que têm poder de decisão e mudar a visão deles de escola.
Em casa, fiquei pensando um jeito de acabar com as agressões entre eles. Decidi levar uma caixa de sapato que seria confeccionada por eles. Quando eles quisessem gritar, brigar ou xingar outro colega ou qualquer pessoa da escola, sugeri que escrevessem,  desenhassem, enfim, desabafassem, sem colocar o nome, depositando na caixa o desabafo. Essa caixa seria chamada de "Caixa de Pandora". Coloquei algumas folhas e lápis ao lado da caixa. Levei apenas uma caixa pequena, não sabia que eles queriam escrever tanto!
Na semana seguinte, tive que passar no shopping e coletar mais caixas, pois percebi que aquela caixa era muito pequena para eles. Levei então uma caixa para cada turma e eles decidiram que deveríamos abrir a caixa uma vez por semana. Decidiram também que algumas coisas ficariam na caixa, outras seriam descartadas para sempre.
Achei ótimo vê-los às vezes irem para o fundo da sala pegar um papel e rabiscar até esgotar, depois colocar na caixa e voltar pro seu lugar, pensei que iria ler eles se xingando, mas para minha surpresa eles depositavam ali todas as angústias deles, não só da escola como também da família, medos, colegas de fora…
Em outro encontro, eu levei feijões, copos descartáveis e algodão. Pedi pra eles plantassem e fotografassem a cada dia, dessa forma registrariam a evolução daquela planta. Infelizmente não deu certo, pois, como a sala ficava fechada quando não tínhamos aula, eles eram proibidos de entrar e não tinha como fazer. Eles ficaram frustrados e eu também. Tentamos então fazer em casa, porém, nem todos os pais deixavam as crianças usarem as câmeras. Tentamos novamente na escola, mas as faxineiras jogaram os copos fora. Ao fim, conversamos e chegamos à conclusão que nem sempre tudo vai dar certo, mas que tínhamos que tentar. Eles, apesar de chateados, seguiram em frente e uma das estudantes me disse: "Pelo menos tentamos, né, tia?". Respondi que sim e propus outra atividade.
Percebi que eu e aqueles estudantes estávamos mudando a forma como nos relacionávamos: eu confiava neles e eles confiavam em mim. Viramos cúmplices uns dos outros, nos meus almoços eles ficavam comigo.
Em outra ocasião, fizemos uma experiência com o som em um filme. Coloquei o som de uma propaganda do youtube para eles e pedi para eles criassem uma estória a partir dos sons ouvidos. Em seguida, pedi que eles assistissem a mesma propaganda sem o som e escrevessem quais sons eles imaginariam ouvir naquele vídeo. Depois, os alunos assistiram a mesma propaganda com som e ficaram intrigados com a diferença que fazia entre o que eles tinham escrito e o que estavam vendo. Muitas perguntas foram feitas e conclusões tiradas.
Em outro encontro, falei sobre os filmes mudos. Exibi um curta- propaganda de guerra do Chaplin, um filme raro. Depois exibi um curta de animação extra do DVD “Up - Altas Aventuras”, também mudo. Fiz algumas perguntas sobre qual a diferença entre um e outro e eles falaram sobre um ser preto e branco e o outro ser colorido; que um era antigo e o outro novo; que um era desenho e o outro pessoas de verdade. Alguns falaram que conheciam o Chaplin e o associaram ao Chaves, porque ele também era atrapalhado como o herói mexicano.
Durante a exibição, uma professora entrou na sala no momento em que Chaplin martelava um soldado nazista com um grande martelo. Neste mesmo dia, fui chamada à direção. Senti um frio na barriga como quando eu era estudante e era repreendida. A coordenadora ir na minha sala me chamar durante aquele encontro me incomodou. Fiquei pensando se havia ocorrido alguma coisa com algum educando meu. Neste meio tempo, deixei com os estudantes dois sacos de brinquedos doados por filhos de amigos. E também deixei com eles a câmera. Pedi para que eles pegassem os brinquedos e fizessem um filme mudo ou, no máximo, com o som de algum celular.
Na sala da direção, fui chamada a atenção por exibir um filme violento. Ouvi da diretora que eles não sabiam o que era Chaplin e que eu tinha dado pérolas aos porcos. Ouvi também que, a partir de então, ela teria que ver os filmes que eu estava exibindo porque um filme que diminui o policial não é bom para eles. Dizia ela que o filme tinha que ser condizente com a idade. Não respondi nada. Fiquei aborrecida e voltei a sala quieta, mas louca para dar uma resposta.
Ao chegar na sala, eles estavam filmando ainda. Fiquei quieta para não atrapalhar a filmagem. Um grupo colocou até música do celular. Fizeram uma briga de bonecos e um deles recriou uma parte do filme de Chaplin com os brinquedos. Eu não tinha ideia do que eles iriam fazer, mas peguei aquele material e pedi para eles não saírem por um momento que eu colocaria na TV para assistirem o que eles tinham acabado de fazer. Fui na direção e mostrei o que eles fizeram e a diretora. Ela então disse que não interromperia mais as minhas aulas e nem interferiria nos meus métodos, apesar de não concordar com eles.

Na semana seguinte, havia poucos estudantes devido à falta de uma das professoras da tarde. Assim, nos sentamos no chão e fizemos aviões de papéis e balões. Peguei a câmera e dei a eles o tema “liberdade”. Perguntei o que eles queriam filmar naquele dia. Eles quiseram ir a quadra e pediram para eu filmar eles pulando, correndo, se pendurando na trave do gol, estrelinha, cambalhota e rindo muito. Perguntei o que era para eles aquilo e eles gritaram: "Liberdade! Tô livre!".
Para a turma seguinte dei o tema "sonho". Enquanto sentávamos no chão, perguntei a eles: "qual é o seu sonho?". Os meninos queriam ser jogadores de futebol, um queria ser desenhista. Entre as meninas, uma queria ser médica, outra modelo e outra "cuidadora" de cavalo. Falei veterinária e ela concordou. Perguntei então: "qual desses sonhos vamos filmar hoje?".
Eles pediram para eu sair da sala e voltar quando eles decidissem. Eu concordei. Fui beber água e, quando voltei, eles queriam ir para a quadra. Gravaram 2 sonhos, o da médica e dos jogadores de futebol. A médica atendia um jogador que se machucava durante o jogo.
Para a primeira turma da tarde o tema foi "observação". Eles ficaram na sala porque a quadra estava ocupada e brincaram do jogo do "detetive". Eles sorteavam o papel e, em roda, o assassino piscava e matava as vítimas. Por sua vez, o detetive tinha que prender o assassino. Segundo eles, a câmera passava e observava o detetive e, por vezes, as vítimas.
Para a última turma do dia o tema foi "prisão". Decidiram brincar de "polícia e ladrão". Se dividiram em dois grupos, um sendo carcereiro e outro prisioneiros. Os prisioneiros se rebelaram e os policiais tentavam controlá-los com palavrões e agressões. Essa  foi bem complicada porque, quando estava muita algazarra e eu pedia para parar, eles diziam que eram atores e que estavam em uma cena.
Em alguns momentos, quando eles pediam, eu filmava. Achava muito interessante as associações feitas com os temas propostos, desde reação dos carcereiros e dos carcerários, como a relação que fizeram do sonho do jogador com a médica.
Neste período, precisei dar aulas nas segundas e terças. Eles reclamaram pois não foram avisados anteriormente. Mais uma vez, os estudantes foram deixados à margem das informações administrativas. Eu acordei com a direção a mudança dos meus dias, mas a informação não foi repassada a eles. Depois fui perceber que esta era uma problemática recorrente naquele e em outros espaços escolares.
Em outro encontro, passei a falar sobre documentários. Tentei utilizar filmes brasileiros e exibi "Ilha das flores", do diretor Jorge Furtado. Eles passaram a se cumprimentar com os polegares e indicadores como no filme. A discussão sobre o filme foi muito interessante, eles começaram a refletir um pouco mais sobre a realidade deles e a problematizar a escola.
Para contextualizar, devo dizer que nossa sala não tinha ventilador, muito menos ar condicionado, e que o calor era absurdo. No entanto, eles começaram a observar que em alguns espaços da escola, espaços aos quais eles não tinham acesso, havia ar condicionado, internet, água gelada…
Fiz a proposta de fazerem um documentário sobre a escola. Perguntei o que eles queriam filmar daquela escola. "Tudo", eles responderam. Perguntei o que eles queriam saber sobre aquele espaço, e eles responderam "sobre a merenda, sobre a direção, sobre a professora". Pedi para que eles se dividissem em grupos e escolhessem alguém da escola para entrevistarem com 5 perguntas previamente discutida entre eles e com a turma.
Um grupo decidiu me entrevistar, outro decidiu entrevistar a diretora, outros 3 grupos decidiram por 3 professoras diferentes. A elaboração das perguntas foi uma parte um pouco complicada, pois muitas delas, pelas polêmicas levantadas, além de me provocar certo desconforto, podiam me atrapalhar com a direção.
Perguntas como:
- Você come a merenda da escola? Se não, por quê?
- Porque você grita tanto?
- Você gosta do que você faz?
- Por quê na sala dos professores tem ar e na nossa não tem ventilador?
- Você se aborrece muito?
- Você acha que é uma boa professora?
- Você ganha muito para estar aqui?
Eu os orientei a falar sobre o documentário, entregar as perguntas antes, conseguir os entrevistados e fazer a entrevista no próximo encontro que seria na semana outra semana, ou seja: na terça eles fariam a produção e na segunda seguinte filmaríamos. Avisei que não iria me envolver, mas, ao final da aula, conversei com a diretora sobre a proposta de documentários e disse que eles iriam fazer a produção, conversar com os possíveis entrevistados, que perguntariam se seria possível na segunda, qual seria o melhor horário. Afirmei que tudo ficaria sob a responsabilidade deles.
Naquela mesma terça-feira, antes de sair da escola, a diretora me chamou de novo na direção. Disse que eu não iria fazer entrevista nenhuma, que eu parasse com essa história de documentário, que a minha oficina era de cineclube e não de vídeo, que ou eles mudavam as perguntas ou ficariam sem filme nenhum.
A maioria dos escolhidos disseram que responderiam as perguntas, exceto a diretora, por não se sentir à vontade com as questões. O grupo que entrevistaria a diretora ficou desanimado com o ocorrido. Perguntei a eles se não queriam entrevistar outra pessoa, mas eles foram irredutíveis. Sugeri que eles mudassem as perguntas e propusessem a mudança à diretora, mas eles imediatamente disseram não. Perguntei a eles o que poderíamos fazer, afinal, já que estava difícil resolver o impasse. Por fim, eles optaram por mudar as perguntas e eu concordei pra darmos prosseguimento a atividade.
Foram elaboradas novas perguntas, como:
- Você gosta do seu nome?
- Qual a sua idade?
- Você quer mais filhos?
- Você gosta do que você faz?
- O que você gostaria de ser se não fosse diretora?
Eles entregaram na direção e aguardaram o chamado desta. Quase no fim da tarde a diretora foi à sala e disse que poderia fazer a entrevista naquele momento. Eu estava com outra turma, porém, na mesma hora fui acompanhar o grupo que entrevistaria a diretora. Levei a câmera mas deixei a outra turma  sozinha por um tempo, enquanto eles assistiam ao que haviam filmado.
Alguns minutos depois, eles foram devolver a câmera e riam muito, disse a eles que não poderia assistir naquela hora, mas que, no próximo encontro, todos assistiríamos juntos. Logo em seguida, a diretora entrou na sala e me chamou à direção.
Após liberar a turma, fui à direção e a mesma estava irritadíssima. Disse que foi muito maltratada pelos meus estudantes, que ela não aceitava o que tinham feito com ela e que eu deveria repreende-los em sala, do contrário, expulsaria todos. Como ainda não tinha assistido a filmagem deles, não pude debater, só afirmei que conversaria com eles assim que entendesse o que havia acontecido de tão ruim. Ela disse que eles haviam modificado as perguntas.
Em casa, assisti ao vídeo e me preparei para uma conversa que estava marcada para a semana seguinte com a diretora. Pensei em me eximir da culpa, dizer que foi responsabilidade deles, que eu não tinha nada a ver com isso, mas achei, no mínimo, inescrupuloso da minha parte fazer isso. Assumi minha posição como mediadora daquela turma e responsável por propor esta atividade. Conversei com a diretora sem me desculpar e resisti para que nenhum deles fosse criminalizado pela ação espontânea de ter as respostas que eles queriam. Apesar de contrariada por eu ter me colocado a favor deles, a diretora não me dispensou da escola.
A conversa com a turma foi a pior parte para mim. Eles estavam muito apreensivos. Fiz um circulo no chão com eles e falei que a atitude que eles tiveram não havia tido um resultado positivo. Eles não conseguiram obter as respostas que queriam e ainda causaram um desconforto entre eu e a diretora. Sugeri que eles fossem conversar com a diretora e serem verdadeiros ao expor os motivos que os levaram a fazer o que fizeram. Analisei a técnica, disse que constranger o entrevistado não era o ideal, eles assim o fizeram e depois desse incidente não houve mais embate da direção comigo.
Após a exibição de um filme, percebendo que alguns deles tinham muita dificuldade de se expor, resolvi fazer um questionário com perguntas técnicas sobre a obra. Quem respondesse corretamente receberia uma paçoca, já que o programa não permitia avaliações pedagógicas. Atualmente considero problemática essa adestração, mas como na época ainda não tinha os debates que tenho hoje sobre o assunto, consegui obter resultados. Mas, devo admitir, ainda hoje questiono-me se os bons resultados foram pela paçoca ou pelo real interesse em saber do filme.
A diretora não mais entrou em embate comigo, mas tempos depois, um dos meus colegas foi expulso do programa por mal comportamento e, enquanto todas as professoras diziam "ainda bem!", eu dizia "que pena, é menos um aqui comigo".
Em outro encontro percebi o quanto eles adoravam histórias de terror. Fiz uma pesquisa de curtas-metragens desse gênero e exibi na parede da sala com datashow, que foi cedido com muito medo pela direção, pois acreditavam que eu não conseguia operar o equipamento. Depois de muita insistência, consegui não só provar que sabia operar o aparelho bem como ensinar as professoras que se interessavam em aprende a operá-lo.
Alugava filmes em uma locadora próxima à escola com meu próprio dinheiro, depois descobri que a escola poderia me ressarcir. Passei a dar as notas para a professora e ela sempre me reembolsava o valor.
O resultado de um ano de aprendizado naquele universo é a certeza que na sala de aula me sinto realizada, que naquele espaço, mesmo com todas as suas problemáticas e contradições, ainda é um local de formação e autoafirmação, de criação, de identidades e de manifestações culturais das mais diversas.
Tive um contato mais próximo, empírico, em uma unidade educacional dentro de uma comunidade carente. Consegui, mesmo com meu "olhar de fora", ter uma visão diferente daquela romantizada nos filmes que falam de escolas.
A minha visão de escola é que esta é uma instituição que não faz uma reflexão da sua prática e tem uma visão muito “idebizada”, se é que posso dizer isso desta maneira, muito mais preocupada com resultados irreais e nem tampouco coerentes, do que com o resultado real que faz o indivíduo refletir sobre a sua realidade.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

(IM)POSSÍVEIS RELAÇÕES ENTRE CULTURAS E LINGUAGENS NA ESCOLA E PARA ALÉM DELA


Vilson Sebastião Ferreira

Professor da Rede Pública Municipal de Niterói 
Doutorando em Educação na UFF






Ela sempre está onde está o horizonte
Se me aproximo dois passos,
Ela avança dois passos.
Se caminho dez passos,
Ela se apressa em deslocar-se dez passos mais adiante.
Mesmo que eu continue caminhando
Não consigo alcançá-la jamais.
Então, para que serve a utopia?
Só para isto, nada mais.
Para caminhar.



(Um olhar sobre a utopia - Eduardo Galeano)






Iniciar a sistematização de uma ideia, de um pensamento, seja ele complexo ou simples, nem sempre é um momento dos mais promissores e tranquilos. Principalmente se o que tentamos articular é algo que vai na contra mão de muito do que aprendemos a saber, a crer e a dizer.
Às vezes o que temos é só o som do silêncio que disfarça nosso trabalho mental, monológico, que se põe a articular frases dogmáticas, que em breve sujarão a folha em branco e porão fim à mudez inicial. O grande desafio nesse caso é enfrentar e tentar superar o monológico próprio do discurso dogmático que nos atravessa, quase que invariavelmente.
Outras vezes, as vozes que nos habitam travam uma batalha pela primazia do olhar que atravessará as leituras e escolhas que faremos, determinando aquilo que virá a constituir-se no produto de nossas muitas reflexões em torno do conhecimento. Nesse processo, muitas vezes se anunciam promessas e projetos cuja declaração de intenções resulta numa dupla frustração: a do leitor, que esperava ver cumpridos os anúncios que despertaram seu interesse; e a de quem escreve, posto ter acreditado num roteiro que parecia tão fecundo, mas que resultou numa espécie de ficção pouco verossímil. A verossimilhança, nesse caso, não convence nem a quem ler nem ao dono da pena.
Diante e apesar de tamanho impasse, que se estabelece quando o corpo que escreve se vê confrontado pelos limites de uma razão que tudo pretende perscrutar, mas que muitas vezes se mostra raquítica e impotente frente às incertezas do ainda por pensar, do improvável, da distante utopia, é preciso materializar em forma de texto o que nos incomoda, mobiliza e nos faz caminhar. No entanto, já não poderíamos fazê-lo sozinhos, desacompanhados das muitas vozes que nos atravessam e fazem da caminhada um “ato bilateral do conhecimento-penetração” (Bakhtin, 2011), num exercício que permite conhecer e exprimir-se no conhecido, no encontro de duas consciências que se combinam e se completam, onde existir só faz sentido para o outro, com a ajuda do outro.
Ora, dizer isso é mais que apontar um caminho que justificaria as escolhas metodológicas assumidas pelo pesquisador também implicado na pesquisa. No nosso caso é principalmente assumir o compromisso ético-estético do ato responsável (Bakhtin, 2010). O ato na acepção bakhtiniana deve ser compreendido como iniciativa, movimento, ação arriscada, uma tomada de posição, compromisso que nos torna parte consciente de um coletivo dinâmico e complexo, fazendo-nos cúmplices dos sujeitos que constroem esse coletivo.
Tal compromisso uma vez assumido (em sua radicalidade) pode provocar/produzir, pelo menos em quem o assume, aquilo que Milton Santos chama de solidariedade de preocupações, promovendo links entre projetos, sonhos, esperanças, e entre medos, frustrações e até a ausência de perspectivas em relação ao presente e ao futuro.
No entanto, vale destacar, nem sempre esse compromisso está muito claro. Por isso, buscar compreender melhor seus possíveis sentidos e significados precisa ser nosso mais urgente desafio, principalmente se acreditarmos que também estamos imbricados e implicados nas questões que as nossas preocupações trazem à tona. Nosso compromisso, então, residiria em assumir, ser responsável por aquilo que pensamos e acreditamos, dialogando com outras vozes e correndo os riscos de, quem sabe, revelar ou adivinhar o que se esconde nas dobras dos nossos discursos sobre o eu e sobre o outro.
Falar de solidariedade de preocupações, compromisso, responsabilidade, compreensão, de vozes que ressoam e, mais que nos habitam, nos incomodam e desestabilizam, é falar de alteridade. Nesse sentido, talvez a principal questão sobre a qual nos debruçaremos é o outro, que também inclui nosso controvertido “eu” e nossos outros “eus”, suas possibilidades, aprendizagens e suas formas múltiplas de comunicar-se e comunicar o mundo à sua volta. Mas também suas crenças e modos de pensar e agir que, via de regra, não coincidem com os nossos.
Viver essa empreitada de adentrar em terreno alheio, mas que também te constitui, requer cuidados e posturas que incluem deslocamentos, flexões e novas acuidades, movimentos que possibilitem desaprender coisas para aprender outras. Requer ainda uma disposição sensível para ouvir as vozes que nos são estranhas, que quase sempre soam como meros ruídos que nada poderiam significar e que, muito por tomá-las assim, não conseguimos entender.
Então, é preciso admitir que apostar em possibilidades que são tomadas e se transformam em potências vivas para nós – vozes com cara, cor, nome, idade, suor, no tempo e no espaço – é abrir-se para aquilo que ainda estamos aprendendo a ouvir, a ver, a pensar sobre. Por isso, embora muito do que aqui se ensaia, em alguma temporalidade já tenha sido ensaiado, dito, redito, desdito, acreditamos que, na sua ressurreição, ao reencarnar-se nos sujeitos como unicidades irrepetíveis, novas perguntas são enunciadas, possibilitando outras respostas para nossos assombros e inquietações.
Porém, o que fazer quando não conseguimos pronunciar o que nos interroga? Como fazer para narrar o que se enviesa, que sai da linha, que foge dos enquadramentos, que ri do sério, que se faz inominável e por isso mesmo desnorteia nossa capacidade de dizer? Por outro lado, devemos admitir que muitas vezes, de muitas maneiras, noss@s alun@s nos mostram enquanto tentamos explicar.
Neste caso, talvez fosse desnecessário discutir a questão da delimitação do foco de pesquisa. Talvez. No entanto, a formação do nosso pensamento é algo que orienta os juízos de valor que fazemos, determinando nossa capacidade de reflexão e expondo a resistente veia cartesiana que nos atravessa. Por isso, como pesquisador@s, precisamos constantemente rever e por em questão o que sabemos, o que nos constitui e constitui nossa racionalidade.  Afinal, muito da nossa crise de compreensão e de sentido pode estar ligada, entre outras coisas, a um certo desejo (in)confessável de fixar-nos em algo que já sabemos ver, algo que nos dê segurança para avançar, para, quem sabe, chegar a um topòs, a um lugar definido, que possa ser reconhecido como um ou o lugar. O contrário disso é a utopia, o não-lugar, o não-saber, o não-ser.
 Estamos, portanto, apostando na utopia como combustível que, além nos fazer caminhar, nos aproxima dos muitos outros com quem nos damos cotidianamente, que  nos ensinam a aprender, a ensinar, a viver; que nos ajudam a acreditar que não é por que as coisas são do jeito que nos acostumamos a vê-las que precisarão continuar sendo.
Apostar na utopia nos faz tensionar as críticas implacáveis que a escola brasileira do nosso e de outros tempos tem sido alvo. E a escola pública em especial é, sem sombra de dúvidas, aquela que mais sofre com as avaliações negativas, não apenas da sociedade em geral, mas principalmente daqueles que habitam e operam no cotidiano dos múltiplos espaços educativos do nosso país; ou seja, @s pedagog@s, professor@s, estudantes, pais e responsáveis por esses estudantes. Essas críticas dão conta e a apontam principalmente como o lugar (im)provável para se aprender/ensinar.  Ora, ao optarmos pelo uso do prefixo im – e seu sinônimo des – entre parênteses, aqui e em outros momentos, nossa intenção não é enfatizar o significado da presença desse elemento na palavra que o sucede, determinando o seu contrário, o que caracterizaria invariavelmente uma dicotomia improdutiva; ao contrário, pretendemos construir e chamar atenção para a semântica dupla e simultânea de afirmação e negação, em presença e ausência.
Assim, entre as muitas coisas que não podemos ignorar está o fato de que aquel@s que se movem e se formam no dia a dia das escolas e da vida cotidiana comum são sujeitos sociais, culturais, de pensamento e de aprendizagens, processos esses inseparáveis dos contextos e das relações sociais de poder dominação/subordinação. Afinal, não podemos simplesmente esquecer do grande empreendimento histórico de produção dos outros como subalternos, oprimidos, colonizados, daqueles que, segundo Spivak, (2010),  não podem falar por si, uma vez que são invariavelmente representados, bem como do constante esforço de apagamento de suas culturas e memórias coletivas que o padrão de poder/saber impingiu. Ainda assim, mesmo que falte quem os ouça, não param de falar.
Além disso, reconhecemos, como bem nos ensinou Paulo Freire, em sua Pedagogia do Oprimido, que apesar das experiências de dominação/subalternização os sujeitos lutam para produzir saberes, (re)lendo e (re)escrevendo o mundo. Diante disso, no entanto, surge como desafiadora e necessária a pergunta de Arroyo (2012, p. 14): “O que pode haver de formador, humanizador nas vivências da opressão desumanizante?”
Ora, essa indagação soa como provocação para que venhamos a considerar e “afirmar a (in)surgência de outras histórias” (Garcia, 2003), de outras formas de narrar as inquietações que o capitalismo produziu, principalmente aquelas decorrentes do não cumprimento de muitas das promessas anunciadas pela modernidade. 
Nesse sentido, nos propomos a empreender uma reflexão que busca investigar as (im)possibilidades de produção de saberes em meio às experiências de dominação/subalternização a que são submetidos cotidianamente, na escola e na vida, os filhos e filhas das classes populares, partindo de algumas das questões que têm mobilizado nosso pensamento e esforço de mediação como professor, que se assume e se vê como pesquisador, uma vez que compartilhamos o que aprendemos com Freire (1996) de que ser pesquisador é um atributo que faz parte da natureza do ato de ensinar, não uma qualidade ou forma de ser e de agir que se acrescente à prática docente. Afinal, o que se espera e do que precisamos é de que todo professor assuma uma constante atitude de indagação, de busca questionadora, uma vez que “não há ensino sem pesquisa” (FREIRE, 1996, p. 29).
Dentre essas questões, queremos refletir sobre as possibilidades da linguagem constituir-se como instrumento de luta na desconstrução das subalternidades. Em termos mais específicos, procuraremos nos deter sobre algumas resistências cotidianas ao ensino da língua de poder e como elas podem vir a configurar outras formas de aprender e de produzir conhecimentos.
Embora me utilize dessa denominação esteriotipada e cristalizada – língua de poder –, não temos a alienação nem a pretensão de ignorar que a língua como código que legisla sobre a linguagem possa ser, por si só, o grande inimigo que combatemos. Nossa luta é contra um determinado poder que se expressa através da língua que, como queria Barthes (2007), obriga os sujeitos a dizerem e a pensarem de uma única forma.
Assim, ao nos determos para ouvir e compreender as (im)potentes vozes dos sujeitos subalternizados, na escola, nas ruas, nas redes sociais, buscaremos refletir sobre alguns dos movimentos que poderiam vir a ser incitados por essas vozes, principalmente os questionamentos que elas poderiam suscitar ao pensamento discursivo hegemônico e às praticas pedagógicas que tratam a linguagem como um campo de questões resolvidas e consolidadas.


Caliban: resistência e sobrevivência através da linguagem


“A falar me ensinastes, em verdade. Minha vantagem nisso é ter ficado sabendo como amaldiçoar. Que a peste vermelha vos carregue, por me terdes ensinado a vossa linguagem.” (SHAKESPEARE, 1999, p.18)


O trecho em epígrafe nesta seção é um protesto. O que pode parecer estranho, ao primeiro olhar, é que ele é dirigido a um professor em um tom que poderia ser interpretado como expressão de ingratidão daquele a quem foi ensinado algo de grande valor e utilidade. O professor em questão é Próspero e o aprendiz Caliban, personagens de The Tempest, (A Tempestade), última peça de Shakespeare, escrita em 1611.
Caliban, anagrama forjado por Shakespeare a partir de canibal, cujo sentido é o de antropófago (RETAMAR, 2005), é habitante de uma ilha caribenha conquistada por Próspero, que o escraviza, obrigando-o a aprender a expressar-se à maneira do seu mestre e senhor. Afinal, para Próspero, Caliban não possuía língua nem cultura. Seria, portanto, a personificação do selvagem desprovido de qualquer intelecto e racionalidade, e que teria sido elevado à condição de homem por Próspero, quando este o ensina a falar.
Nesse sentido, ao ensinar sua linguagem a Caliban, Próspero o faz como quem presenteia o outro com uma dádiva. Essa dádiva da linguagem não significa um idioma em especial – no caso aqui, o inglês –, mas a fala como expressão de uma determinada forma de pensar, como um método de pronúncia do mundo (SHAKESPEARE, 1999, p.17)

Quão difícil me foi ensinar-te a falar!
Antes de o aprenderes, selvagem,
Nem o teu próprio pensamento entendias.
Balbuciavas como uma besta, e eu ensinei-te
As palavras que traduziam teus pensamentos.


            Porém, para Caliban, aprender a língua e a estrutura do pensamento de Próspero, tanto na acepção da palavra como figuradamente, é um meio de rebelar-se contra toda impossibilidade de expressão a partir do seu lugar. Portanto, aprender a língua do seu senhor significa empoderar-se para amaldiçoá-lo e para lutar por sua liberdade. A liberdade para poder dizer-se, para afirmar-se nas possibilidades de sua radicalidade. Em outras palavras, a língua usada como instrumento de poder pelo colonizador, e imposta ao colonizado, transforma-se em arma de luta para o colonizado. Esta via dupla por onde a língua circula é um dos aspectos mais controvertidos e por isso mesmo objeto de discussão daqueles que se interessam pelas questões ligadas à linguagem: o fato dela ser instrumento, ao mesmo tempo, de dominação ou manutenção do poder, como também de libertação. Afinal, no discurso pós-colonial, a linguagem é um dos espaços de luta mais potentes, uma vez que o processo de colonização começa com a imposição da língua do colonizador.
Na trama de Shakespeare,  Caliban é o ser condenado a aprender uma linguagem que não é a sua. Que linguagem é essa? Caliban aprende a linguagem do seu opressor. Porém, mais que a aprender a linguagem do seu opressor, ela terá de fazê-lo imerso no mundo de significações que não é o seu. Ou seja, ele terá de habitar a linguagem pelo discurso do outro. Porque, para Próspero, que pronuncia o mundo a partir do logos, não há sentido nem legitimidade em nenhuma outra forma de linguagem que não seja a sua. Assim, mesmo aprendendo a linguagem de Próspero, Caliban continuará sendo de outra ordem, continuará balbuciando tal linguagem.
Então, o que restaria a ele?  Amaldiçoar, praguejar. Substitua-se praguejar por protestar, denunciar, reivindicar, questionar e temos em Caliban o primeiro contestador de impérios coloniais, o primeiro nativo a falar de igual para igual com o senhor branco, o primeiro a rogar pragas contra a sua situação e a pedir justiça. E a usar o vocabulário do dominador contra ele próprio.
Passando por todas as adversidades históricas, do preconceito ao extermínio, Caliban é o nosso símbolo maior – aquele que resiste e sobrevive. Neste sentido, além de propormos Caliban como nosso símbolo, propomos também algumas reelaborações conceituais impostas a nós. É a dialética de Caliban – assimilar como honra aquilo que o colonialismo considerava como injúria. Conforme afirma Roberto Fernández Retamar (2005), em seu livro Todo Caliban: “Assumir nuestra condición de Caliban implica repensar nuestra historia  desde el otro lado, desde el otro protagonista” (p. 37).
Nossa empreitada, então, seria pensar sobre alguns movimentos que reeditam e atualizam o drama shakespeareano, em relação ao ensino e aprendizado da língua portuguesa entre nós brasileiros, depositários de uma herança histórica que continua a nos assombrar. Nesse sentido, caberia perguntar: o que os muitos Calibans com quem nos damos cotidianamente poderiam estar afirmando, questionando e nos ensinando através de sua voz que nos chega como balbucios, muitas vezes inaudíveis ou incompreensíveis, na escola, nas ruas, nas redes sociais? Quais os possíveis movimentos que poderiam vir a ser incitados por essa voz?
Um deles seria o de questionar o pensamento e o saber hegemônico, utilizando-se de ambos de forma subversiva e reverberando a possibilidade da presença de outros sujeitos de conhecimento, podendo submeter o estabelecido à dúvida.
Ora, quando quem aprende desconfia de um conhecimento consolidado historicamente, o ato de desconfiar proporciona a abertura, a possibilidade da dúvida e a suspeita em relação aos processos que estabeleceram o estabelecido. Por exemplo, quando quem aprende deposita mais confiança e credibilidade em uma ferramenta do mundo internauta, caso do Google, do que nos livros didáticos, deveríamos ser levados a pensar que conhecer deveria ser, entre outras coisas, a possibilidade de dialogar com diferentes olhares sobre o conhecimento. Nesse caso, não é duvidar por duvidar, questionar por questionar, mas principalmente para expor-se mais e, quem sabe, vir a saber mais. Para aprender com quem desconfia.
Viver tal experiência nos ajudaria a entender e a dar consequência à lição que Guimarães Rosa nos ensina através da voz do narrador de Grande Sertão: Veredas, de que mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. Mais que isso, nos ajuda a enfrentar o que Garcia (2003) reconhece como “desafio do mútuo conhecimento e da necessária aprendizagem em comum”, desafio que não é menor do que o proposto por Bateson, de compreender o compreender do outro. Nesse sentido, precisaríamos acreditar e empreender um esforço que venha a socializar outras formas de conhecer, compreender e produzir conhecimento.
Assim, enquanto ensinamos, vamos aprendendo. Embora a fluidez dos lugares de quem ensina possa, em um primeiro momento, causar estranheza ou insegurança para quem aprendeu a colocar-se na posição de sempre ensinar, aprendemos a acreditar no intercâmbio entre diferentes experiências de conhecer. Ora, esse conhecimento é mais da ordem do desaprender do que do saber. Então, para aprender o que ainda não sabemos com aqueles a quem ensinamos, precisaríamos desejar conhecer outros roteiros epistemológicos, que inclui o perigo, a troca de posições, o reconhecimento do outro como aquele cujo saber me completa (Bakhtin, 2011).
Enveredando por esses caminhos, lembro-me de uma ocasião em que, ao informar à turma que a vogal é a base de uma sílaba, podendo haver sílabas sem consoantes, mas não sem vogal, fui questionado por um aluno nesses termos:

-- Ué, mas eu escrevo uma palavra inteira sem vogais e todo mundo entende.
Surpreso, perguntei-lhe:
-- Qual palavra?
Triunfantemente gaiato, ele sorri dizendo:
-- Vc.

O tom jocoso com que o aluno me confrontou fez a turma inteira rir, numa declaração de assentimento ao que ele afirmava. O riso é um deslocamento que não pede autorização, ele é acompanhado do ato de dar (Bakhtin, 2011), principalmente se for coletivo. O riso d@s alun@s me deu a oportunidade de lembrar o que esquecera. Lembrei de que os primeiros sons da fala a serem representados foram os consonantais. Quando a escrita ainda era ideográfica, as dificuldades de comunicação e compreensão das ideias eram muitas, fazendo surgir a necessidade de uma maior precisão. Os egípcios, por exemplo, chegaram a utilizar 26 sinais, todos para representar os sons das consoantes – para facilitar a compreensão dos hieróglifos. Mais tarde vieram a perceber que esses símbolos poderiam ser usados independentes dos pictogramas. Estava criada a escrita alfabética. Em algum momento, entre 1650-1550 AC, várias comunidades que viviam na área que compreende atualmente Líbano, Síria e Israel já tinham assimilado o conceito de que era possível representar a linguagem humana com alguns poucos símbolos; ou seja, usando apenas consoantes e sem prejuízo para a compreensão.
Então, ser questionado pelo aluno me fez reaprender algo que já sabia, mas até aquele momento não havia incorporado à minha prática nem utilizado para compreender o compreender e o saber utilizados por meus/minhas alun@s cotidianamente nas redes sociais, sem prejuízos para a semântica dos seus encontros nada virtuais.
Hoje me pergunto sobre o que me motiva a escrever e a pensar sobre isso. Seria a manifestação sincera de quem acredita que esses conhecimentos são potentes e podem contribuir não só para o ensino e aprendizagem das linguagens na escola, mas para uma maior aproximação com outra ordem de conhecimentos, além do justo reconhecimento do seu valor e relevância para aqueles a quem tentamos ensinar? Nesse caso específico, o foco e o mérito são exclusivos d@s alun@s, que ocuparam um lugar que seria o do professor, desestabilizando a posição e as certezas de quem ensina. Quem sabe trazer para o debate esses elementos não seria enfatizar mais a astúcia do professor na condução do processo do que a intervenção d@s alun@s na afirmação dos seus saberes? Mas, se o que nos mobiliza, para além disso tudo, é a busca por uma cooptação desses conhecimentos para enquadrá-los e utilizá-los como meros conteúdos escolares? Prossigamos na caminhada, apesar dos encruzos.
Em outra ocasião, uma aluna do 9º ano, numa aula de colocação pronominal, questionou-me:

-- Pra que precisamos aprender a mesóclise se não vemos ninguém usá-la, nem nós, nem nossos pais, nem nossos professores, ninguém?

Eu até tentei explicar que os conhecimentos não são necessariamente para serem utilizados na sua materialidade direta, embora ajude a complexificar nossa capacidade de resolver problemas de várias naturezas, mas me dei conta de que ela pôs em questão a ideia da linguagem como instrumento de comunicação e de encontro de sentidos com quem interagimos. Porque se aprendemos a conhecer a estrutura da língua para poder comunicar com mais propriedade nossas ideias e sentimentos, não haveria muito sentido em conhecer aspectos linguísticos que não serão necessariamente comunicados. Por outro lado, há conhecimentos relativos à linguagem que sequer são tratados como relevantes no ensino da língua, tais como os atos de fala, os sentidos do silêncio, os sentidos improváveis do uso dos sinais de pontuação consagrados, por exemplo, pela própria literatura brasileira, sem falar dos dinâmicos e criativos processos que formam novas palavras para comunicar expressões lexicais até então impensadas.
Isso tem me feito pensar nos processos de consolidação histórica no Brasil dos saberes linguísticos que mereceram reconhecimento e legitimação. Partindo dos mesmos pressupostos e da lógica dos processos ocorridos na Europa, partiram sempre de modelos considerados científicos, descartando aqueles tidos como não-científicos, como os falares consagrados por falantes de extratos sociais sem prestígio, os quais foram ignorados como possibilidade.
Ora, estamos falando quem sabe do que Foucault defende em Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings como "conhecimento subjugado", ou seja, "todo um conjunto de conhecimentos que foram desqualificados como inadequados ou insuficientemente elaborados: conhecimentos ingênuos, colocados em uma posição inferior na hierarquia dos conhecimentos, abaixo do nível exigido pela cognição e pela cientificidade" (FOUCAULT, 1980, p. 82).
Desqualificados, tratados como ingênuos, ignorados por aquilo que Spivak chama de violência epistêmica, cuja tática de neutralização do Outro, seja ele subalternizado ou colonizado, consiste em inviabilizá-lo, expropriando-o de qualquer possibilidade de representação, silenciando-o.  No entanto, eles falam. Às vezes, gritam. Porque se falar é da ordem do discurso e, portanto, do poder, o grito, o deboche, o palavrão, surgem como alternativas de expressão da rebeldia do sujeito colocado à margem desse poder.
Diante do que temos tentado pensar até aqui, não me preocupa discutir se devemos ou não ensinar a gramática normativa, consagrada e de prestígio, a noss@s alun@s, principalmente quando El@s são oriundos das classes populares. Até porque não seria justo negar tais conhecimentos a quem busca na escola saber mais do que já sabe. Nossa preocupação e interesse se assentariam na busca por espaços onde El@s possam articular-se, falar e serem ouvidos, dizerem-se e afirmarem-se a partir da elaboração própria com que constroem seus conhecimentos.

Entre Caliban e Próspero

Pensar sobre o que nossos calibans nos propõem é enfrentar desafios e questões de várias naturezas: ética, estética e epistemológica. Eles fazem perguntas para as quais talvez ainda não tenhamos as respostas. Que representam problemas para os quais não temos solução, que ainda não tratamos nem consideramos quando nos propomos a ensinar. Que nos interrogam de muitas formas: de que ordem são esses conhecimentos e o que eles podem ensinar?
Em meio a tais reflexões, vou me dando conta que muito por nos colocarmos do lado de lá da linha abissal que separa os sujeitos e seus saberes (SANTOS, 2010), nos desapontamos com o aquilo a que somos apresentados por noss@s alun@s. De alguma forma, esperamos que, ao nos deparar com o que ainda  não entendemos, necessariamente é lidar com uma outridade alienígena, produzida num vácuo à parte dos processos a que são submetid@s cotidianamente, como se fosse possível produzir conhecimento fora das relações culturais. Cada ser é portador de uma visão de mundo única e seus conhecimentos dialogam com a cultura na qual ele está inserido.  Então é relação e unicidade. Pensar epistemologicamente com esses sujeitos é perceber uma epistemologia concreta da existência, plural e dialógica. Sempre outra porque cada um é outro. Eles tecem a multidão de fios ideológicos e nos ensinam como ensinar.
 Para aprender com eles, talvez fosse preciso admitir que, ao invadir as cercas que protegem alguns saberes e segregam outros, os sujeitos e suas experiências contestam o estabelecido e abrem caminho para se pensar o que ainda não fomos capazes de compreender, de ver com outros olhos o que nos acostumamos a reconhecer como o mesmo e, quem sabe, aprender o que ainda não sabemos.
Para tanto, nunca é demais relembrar o que Freire (1996, p. 17) nos ensina como atitude ética a ser adotada em relação ao conhecimento: “Não podemos nos assumir como sujeitos da procura, da decisão, da ruptura, da opção, como sujeitos históricos, transformadores, a não se assumindo-nos como sujeitos éticos”.
Por assim compreender, o que aqui tentamos comunicar é uma tentativa de diálogo com vozes que nos ajudam a fazer perguntas que ainda não fizemos, a pensar o que ainda não sabemos, a ver com outros olhos o que pensamos já saber ver e a ouvir o que até então nossos ouvidos não conseguiram atentar. É enfrentar o desafio entendendo que ele faz parte da luta de muit@s professor@s que, como nós, portamos angústias e inquietações coletivas, histórias que precisam ser narradas, esperanças e sonhos que precisam ser compartilhados.



BIBLIOGRAFIA
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BARTHES, Roland. Aula. 3ª Ed. São Paulo: Cultrix, 2007.
FOUCAULT, Michel de. Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings. New York: Pantheon, 1980.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 29ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
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SANTOS, B. de Souza. Conhecimento prudente para uma vida decente. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2006.
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____________________. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, B. de Souza, MENEZES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 31-83.
SHAKESPEARE, W. A tempestade. Tradução Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999.
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