quinta-feira, 5 de novembro de 2015

OS IMPACTOS SOCIAIS DA LÓGICA CRIMINALIZADORA NA ESCOLARIZAÇÃO DAS CLASSES POPULARES

Revista de Direito da Cidade
vol.07, nº 03. ISSN 2317-7721
DOI: 10.12957/rdc.2015.18843

Trabalho enviado em 22 de junho de 2015.
Aceito em 26 de julho de 2015.




 OS IMPACTOS SOCIAIS DA LÓGICA CRIMINALIZADORA NA ESCOLARIZAÇÃO DAS CLASSES POPULARES

SOCIAL IMPACTS OF THE CRIMINALIZING LOGIC AT THE EDUCATION OF POPULAR CLASSES

                                                                                                                         Rodrigo Torquato da Silva

RESUMO

O objetivo do artigo é apresentar os resultados de uma pesquisa de campo cuja proposta  expõe uma reflexão crítica e analítica acerca das interfaces existentes entre as lógicas e discursos oriundos da Criminologia, e os seus rebatimentos nas práticas discursivas pedagógicas que se desenvolvem nas escolas públicas que atendem, predominantemente, os estudantes das classes populares. A hipótese fundamental é de que os tipos de justificativas presentes nas narrativas pedagógicas que tentam explicar o fracasso escolar desses estudantes apoiam-se, sobretudo, no uso de argumentos migrados do Campo jurídico-penal. A pesquisa mostrou que o exercício da linguagem audiovisual, bem como a operacionalização dos equipamentos disponíveis, possibilitou aos estudantes em questão, supostamente avaliados com problemas de aprendizagem, demonstrarem competência no uso desses instrumentos, utilizando, funcionalmente, o raciocínio lógico e o pensamento conceitual. O artigo traz consigo uma relação estreita com outros trabalhos realizados pelo Grupo de Pesquisa ALFAVELA-UFF/CNPq, destinando-se a operadores do Direito e Educadores, ainda que não exclusivamente, visto o entrelaçamento e impacto de tal assunto no cotidiano e nas nossas rotinas.

PALAVRAS-CHAVES:  Direitos Sociais –  Educação fundamental – Criminologia - Tecnologias



ABSTRACT

The objective of this article is to present the results of a research that exposes a critical and analytical reflection about the interfaces between the logics and discourses originated from the Criminology, and its repercussions in the teaching discursive practices on the public schools serving students from the popular classes. The fundamental hypothesis is that the justification present in the pedagogical narratives attempting to explain the school failure of the students is supported by the use of arguments from the legal and criminal fields. The research has shown that the exercise of the audiovisual language, as well as the operationalization of the available equipment, made it possible for the students, supposedly evaluated with learning problems, to show competence in the use of those instruments, exercising, functionally, logic thinking and conceptual thinking. The article brings a close relationship with other works conducted by the Research Group ALFAVELA-UFF/CNPq and is intended for the Law operators and Educators, although not exclusively, due to the intertwining and impact of such matters in our daily life and routine.

KEYWORDS: Social Rights – Fundamental Education - Criminology - Technology






INTRODUÇÃO

Diante do que se tem vivenciado, recentemente, em nossa sociedade – populações fazendo justiça com as próprias mãos, amarrando ladrões em postes e espancando-o até a morte, rebeliões em presídios com decapitações aos moldes da justiça medieval, proposta de redução da maioridade penal sendo justificada por roubos de bicicleta, supostamente realizados por crianças pobres, armadas com facas – justifica-se um estudo que ouse estabelecer uma interlocução entre o campo da Criminologia e as pesquisas que investigam o cotidiano escolar? Em que medida as questões levantadas no campo da Criminologia podem ajudar a entender melhor o suposto fracasso escolar dos estudantes das classes populares[1]?
Estabelecendo uma reflexão acerca da lógica criminalizadora e seus impactos sociais sobre o sistema educacional brasileiro, pode-se trazer à tona elementos indispensáveis para uma análise crítica. Um desses elementos fundamentais são os discursos que tipificam o crime, qualificando os diversos comportamentos transgressores da norma (normalidade).
Resulta daí um importante ponto de observação que mostra a omissão de alguns debates oriundos da Criminologia, em alguns processos de análise pedagógica, no estabelecimento dos nexos de causalidades entre o fracasso escolar e os estudantes das classes populares. Na maioria das vezes, os discursos oficiais das escolas públicas (sejam os transcritos nos boletins ou nos relatórios anuais de avaliação) não assumem, de forma aberta e transparente, a questão da possível relação existente entre os discursos criminalizadores e o fracasso escolar, muitas vezes porque existem “melindres” que envolvem o medo das consequências possíveis para aqueles ou aquelas que decidem expor os problemas.
 Lógico está que as questões levantadas pertencem a um conjunto de problemas sociais que não se esgotam apenas nas reflexões de um artigo, dada, inclusive, as próprias limitações das exigências relativas ao sistema de publicação acadêmico (limitação do número de páginas, de caracteres etc). Em função disso, delimitou-se o presente trabalho num recorte de uma pesquisa de campo, realizada numa escola municipal da Rede de Ensino de Niterói que atende predominantemente a estudantes oriundos das classes populares, e que serve, aqui, como base empírica para a análise.
O propósito fundamental deste artigo é demonstrar como os discursos criminalizadores não somente circulam no ambiente escolar, mas, sobretudo, reforçam os preconceitos e estigmatizam os comportamentos dos estudantes das classes populares, contribuindo para a subtração dos Direitos Sociais que são sustentáculos da Constituição de 1988 e condição sine qua non para a construção de um Estado Democrático de Direitos.
            Cabe ressaltar que não se trata apenas de trazer um rol de soluções metodológicas aos graves problemas sociais e históricos enfrentados ao longo de décadas pela educação pública brasileira. Nem tampouco ditar inexoravelmente como deveriam ser descritas ou tratadas discursivamente as atitudes dos estudantes que praticam atos típicos de delinquência nas escolas públicas ou aqueles enquadrados nos índices do fracasso escolar.
            A ideia é apresentar um estudo crítico e analítico que vise o aprofundamento nessa temática e que faça um esforço para romper com as obviedades  dos discursos pedagógicos ou midiáticos no tratamento do tema. Para tanto, fundamenta-se a interlocução proposta aqui entre os campos da Educação e da Criminologia, acreditando-se que os tipos de justificativas presentes nas narrativas pedagógicas que tentam explicar o fracasso escolar desses estudantes apoiam-se, sobretudo, no uso de argumentos migrados do Campo jurídico-penal.
            A pesquisa em que se baseia o presente estudo contou com o apoio da FAPERJ, pois foi contemplada no Edital de Apoio à melhoria ao Ensino nas escolas públicas no Estado do Rio de Janeiro.  Seu objetivo inicial era apresentar aos estudantes o universo do audiovisual e tentar aproximá-los não somente de uma linguagem tecnológica, mas também do desenvolvimento de uma perspectiva crítica. Os estudantes selecionados encontravam-se nas séries iniciais do Ensino Fundamental e apresentavam, pelo menos, um dos três tipos de problemas mais frequentes dentro de um quadro de dificuldades traçados pela escola: a) comportamentos violentos; b) apatia ou c) dificuldades de apreensão dos conteúdos ensinados. 
            Dessa forma, para uma melhor estrutura deste artigo, a análise foi desenvolvida a partir de dois pilares. O primeiro, apresentando a exposição detalhada da pesquisa de campo que, embora não tivesse num primeiro momento a intencionalidade de desvelar fatos que dialogassem diretamente com a Criminologia, visto ser o objetivo primeiro tratar de questões pedagógicas, o fluxo dos acontecimentos durante o desenvolvimento da pesquisa, tais como conversa sobre violência e crimes entre os alunos, indagações das professoras sobre práticas sexuais precoces entre as meninas, agressões físicas, comentários nos corredores sobre tráfico de drogas nas adjacências, tudo isso provocou uma inquietude que direcionou o estudo para a questão da Criminologia. Já o segundo pilar, opera dando suporte a uma reflexão crítica na qual são postos em diálogo alguns conceitos centrais do campo da Criminologia e do Direito Penal, no intuito de fundamentar a tese aqui sustentada.
            Acredita-se que a contribuição do presente estudo encontra-se no compromisso político de aprofundar a discussão acerca dos Direitos Sociais, Democracia e Políticas Públicas, para que estejam a serviço da desconstrução dos discursos fatalistas que acirram as injustiças sociais e criminalizam as classes populares não somente no contexto em que se produz o fracasso escolar, como também nos reflexos que extrapolam os muros da escola pública.  

ACERCA DA METODOLOGIA DA PESQUISA[2]

Concretamente, no que tange à exposição da metodologia, a pesquisa tomou forma a partir do atendimento a grupos focais, formados por estudantes ligados às séries iniciais do Ensino Fundamental e se desenvolveu a partir de quatro planos de ação:

1° plano: Reflexões sobre a profundidade do problema e a historicidade da questão das violências na/da escola, promovendo exibições de filmes consagrados e referenciais relacionados ao que chamamos de “alunos-problema”, de forma a problematizá-los;
2° plano: intervenção direta no processo de produção textual e de uso social da escrita, promovendo a elaboração e produção de roteiros autobiográficos produzidos pelos próprios educandos;
3° plano: ampliação da gama de recursos de processos de significação e no universo cultural e tecnológico dos educandos, promovendo a instrumentalização na linguagem audiovisual;
4° plano: debates e reflexões com os educandos para que eles compreendam a importância do resgate das memórias e da valorização da história de vida de cada um e utilizem os conhecimentos aprendidos para a produção dos filmes a partir dos roteiros autobiográficos selecionados, exibindo-os de forma paralela aos debates na culminância do projeto.
As metas estabelecidas tiveram como foco o caráter  analítico-investigativo, objetivando construir estratégias de combate ao suposto fracasso escolar e, ao mesmo tempo, acompanhar (para melhor compreender, e, assim, denunciar), as consequências e os impactos da violência no/do cotidiano escolar, que se fazem presentes nos processos de ensino-aprendizagem de algumas escolas públicas. Para tanto, investimos em quatro aspectos:
a) Na promoção, no estudante, de um ímpeto de análise e crítica ao assistir uma produção audiovisual e, ao mesmo tempo, estabelecimento, por parte dele, de conexões com sua realidade;
b) Na apropriação e construção de diversos textos escritos e gêneros literários a partir dos roteiros, dando sentido ao uso social da língua;
c) Na ampliação do leque de informações alternativas ou de domínio técnico para operar em diferentes áreas da produção audiovisual, enriquecendo, desta forma, a capacidade de expressão e comunicação dos estudantes.
d) Na consolidação das ideias de que todo cidadão tem o direito de aprender a ler e escrever na escola pública e, como consequência, pleno exercício da liberdade de expressão.
Esperava-se com isso que, ao findar de um ano, fosse possível não somente contribuir para que os estudantes envolvidos apresentassem resultados significativos no que tange ao domínio da leitura e da escrita, mas, sobretudo, após uma avaliação coletiva envolvendo a escola e os professores integrantes do projeto, compreender melhor os processos que desencadeavam algumas violências cotidianas na escola.
Assim, fica claro que a escolha e o objetivo com a qual a metodologia estava comprometida (a pesquisa de Campo, a análise documental e os grupos focais, incluindo, ainda, as entrevistas-conversas informais) vinculava-se estritamente à ideia de coparticipação e intervenção no cotidiano escolar, através de registros e filmagens com as professoras e estudantes da referida escola pública.

BREVE RELATO DA EMPIRIA

A chegada na escola do projeto de pesquisa "Imagem, Som e Alfabetização" se deu em 2011. Em uma reunião pedagógica ordinária, nos turnos da manhã e da tarde, apresentamos aos professores, à equipe técnico-pedagógica e à Direção a síntese desse projeto.
No início de 2012,  já contemplados pelo edital FAPERJ, fizemos uma reunião para apresentar como se daria a operacionalidade do Projeto e como dialogaríamos com a rotina da escola. A nossa proposta, de certa forma, delineava-se cartesianamente em três movimentos: a) de um horário para estar regularmente com os estudantes (algo em torno de 3 horas) em um dia na semana, nos dois turnos; b) de uma sala que comportasse com qualidade os equipamentos, os estudantes e nós (pesquisadores e bolsistas, que na soma éramos nove – o coordenador, os dois bolsistas de treinamento e capacitação técnica – professores da escola, os dois bolsistas de iniciação científica, as três bolsistas "jovens talentos", vindas do Ensino Médio de uma escola parceira, e um jornalista – que esteve todo tempo como voluntário); e c) da parceria das professoras que apontariam 30 alunos (sendo 15 estudantes por turno), que apresentassem três tipos de “problemas” com os quais a escola admitisse não estar conseguindo lidar: 1- dificuldades de aprendizagem; 2- histórico de violência na escola; e 3- apatia.
Nosso objetivo inicial de trabalho com os estudantes era bem simples: exibir trechos de filmes e problematizá-los a partir da trocação de ideias[3]. Paralelamente à exibição dos filmes e após as conversas, conduzimos os processos sugerindo que os estudantes manuseassem os equipamentos disponíveis (câmeras, fones, microfones, tripés) e fossem se familiarizando com os primeiros códigos da linguagem tecnológica do audiovisual, como "focar/desfocar", "dar o zoom", "dar o rec", segurar a câmera e movimentá-la lentamente, montar e desmontar o tripé etc.
Foi possível perceber que os filmes que não abordavam diretamente temas atrelados ao dia a dia dos estudantes e que se passavam em contextos longe de suas realidades não eram capazes de mantê-los concentrados e, por consequência, potencializar as discussões em sala, por mais que provocássemos os debates. Por sua vez, os filmes que traziam como cenários as favelas, escolas públicas e nuances das tensões e dos códigos desses contextos (como, por exemplo, as disputas territoriais entre facções) eram mais potentes nesse sentido, com uma participação mais intensa dos estudantes que, com clareza e segurança, demonstravam verbalmente conhecimentos acerca dos assuntos tratados.
 Pode-se constatar que os recursos audiovisuais favoreceram uma ampliação para outras expressividades possíveis, para além da necessidade de uso das habilidades de decodificação da língua escrita. Permitiram, com isso, chegar ao que poderíamos denominar de registros imagéticos, ou seja, um conjunto de possibilidades imagético-discursivas das experiências vividas nos cotidianos e nos contextos de inserção socioculturais, bem como o registro-denúncia da dramaticidade existencial das crianças, por elas mesmas.
Para melhor exemplificar, serão apresentadas a seguir duas situações da empiria, vivenciadas e registradas no Relatório de Pesquisa.

Situação – 1

            Trabalhávamos com a preparação do plano de filmagens no qual eram apresentados aos estudantes três tipos de filmes-registros possíveis que eles poderiam fazer assim que fôssemos para a rua realizar as filmagens externas:
             1 - Ficção – Quando o autor inventa uma história ou roteiro da sua imaginação sem necessariamente ter compromisso em mostrar a realidade, como por exemplo, histórias de extraterrestres, etc;
             2 - Documentário – No qual é possível realizar uma denúncia de um fato que esteja ocorrendo, por exemplo, um esgoto na iminência de trazer doenças para a comunidade;
                   3 – Biografia – Registro no qual a pessoa pode contar a sua própria história ou a história de alguém a quem se dê importância.
O menino Tales, de aproximadamente 12 anos, estudante do 5º ano, que desde o primeiro encontro conosco mostrou-se reticente a permanecer na sala, não só afirma rapidamente que o conjunto de estudantes que ali se encontram “são os burros da escola”, como certifica que ali não quer estar porque “não gosta de escola e não gosta de fazer dever”.
Percebemos logo que se tratava de alguém que, embora selecionado pela escola para estar no projeto porque era tido como um estudante com dificuldades de aprendizagens, de forma inteligente e sagaz fez a análise de conjuntura e a leitura daquele contexto, e, de pronto, nos encosta na parede e diz: E aí? O que é que vocês têm de diferente aí pra mim? Tal provocação leva a uma indagação: quais são as matrizes que imprimem no estudante o estigma de que ele tem problemas para aprender?
Propusemos a confecção de roteiros que incluíssem também o registro de narrativas orais. Nesse momento, para nossa surpresa, indo de encontro a tudo o que esperávamos, Tales disse que queria filmar uma experiência própria, e passou a narrá-la:

- (Tales) Tio, eu quero filmar minha égua!
- (Pesquisador) Quer filmar o quê? Uma régua?
- (Tales) Minha égua, tio! Éeeegua!...           

            A surpresa do pesquisador que forçou Tales a repetir pausadamente o que queria filmar mostra que mesmo cercados de todos os cuidados para não reproduzirmos estigmas oriundos da lógica criminalizadora ou preconceituosa, admitimos, esperávamos que ele sugerisse filmar, a bem da verdade, algo que permeasse o contexto que está fortemente presente no nosso imaginário do que seja o cotidiano desses estudantes: conflitos de facções, cenários de extrema pobreza, dramas com mortes precoces etc. No entanto, Tales, o mesmo que não gostava de escola e de fazer dever, propõe filmar sua égua e  escolhe o caminho do bucólico. Será que ele estava pensando em fazer poesia usando os recursos audiovisuais que estavam ali disponíveis?
Ao analisarmos atentamente esse acontecimento, por mais nobre que fosse a nossa intenção de oferecer aos estudantes daquela escola uma possibilidade de registrarem suas experiências cotidianas, a margem de manobra para o uso dos recursos audiovisuais já estava traçada por nós, para eles.  Estávamos, ainda que com "boa intenção", induzindo-os nas criações possíveis dos seus próprios registros de experiências cotidianas. Ou seja, os discursos que naturalizam a violência como parte dos contextos sociais desses estudantes também nos induzia à expectativa de uma vida estereotipada de crianças faveladas que, necessariamente, seriam "completamente" marcadas por opressão e violências cotidianas.
No fundo, já estava dado, para nós, que as crianças, inclusive Tales, não nos surpreenderiam com nenhuma temática que fugisse ao balizamento demarcado pela tríade violência-apatia-desesperança. O ato criativo de buscar um tema bucólico, em um município distante, onde morava um tio, e filmar a própria égua (impensável, para nós, uma criança de favela ter uma égua!) é uma explosão no conjunto de possiblidades nas quais os discursos da violência cotidiana e da lógica criminalizadora predominam.

Situação – 2

            Participávamos de uma reunião de avaliação em que estavam presentes os integrantes do projeto, professores, diretora e Equipe Técnico-Pedagógica (ETP) da escola. Muitos foram os assuntos abordados e pontos de reflexão sobre o projeto. Falou-se sobre uma reunião na qual as professoras tiveram com os pais dos estudantes e que estes estavam gostando do projeto, pois viam ali uma oportunidade de se revelarem grandes talentos entre os estudantes, ao realizarem aquelas filmagens. Uma professora revelou que uma das suas alunas estava melhorando depois do projeto, pois estava mais atenta e fazia as tarefas com mais interesse. No entanto, houve um ponto de tensão cujo tema é de abordagem extremamente delicada não somente para a escola, mas para a sociedade em si, principalmente à luz do Direito Penal.
            Foram levantadas pelas professoras e também pela Equipe Técnico Pedagógica algumas questões conflitantes que perpassavam o cotidiano da escola, relativo aos estudantes que compunham o projeto, e que, geralmente, não eram expostas de forma tão explícitas em reuniões oficiais. Queriam saber como estávamos lidando com os constantes comentários que ouviam daqueles estudantes, já que elas eram professoras deles e, portanto, sabiam que ocorriam.
            Segundo elas, era comum ouvirem dentro de sala de aula, por exemplo, conversas em que as crianças expunham questões complexas das suas sociabilidades como, por exemplo, uma suposta iniciação precoce na prática sexual, que, para as professoras, eram ditas de forma exacerbada e que preocupavam visto que eram perigosas para estudantes de tão tenra idade (crianças ainda). Atentaram para falas em que os estudantes relatavam frequentarem bailes funk. Uma dessas crianças expunha, inclusive, que tinha um “conhecimento técnico sobre armas” (de fato ouvimos, certa vez, no projeto, um estudante conversando com outro, insinuando que sabia montar e desmontar uma pistola). As professoras queriam saber se também ouvíamos esses assuntos, ainda que de forma informal, quando os estudantes conversavam entre si, sobre o cotidiano da favela. E se isso ocorria mesmo nas favelas. Se havia algo de verdadeiro sobre isso.
            Chegamos a conclusão, depois de conversar com muitos melindres, de que não tínhamos competência para aprofundar o debate e que era prematuro afirmar algo dessa natureza, visto que ficava muito difícil levantar uma hipótese apenas pelas narrativas, com um público ainda, em sua maioria, na fase infantil. Uma pedagoga da escola, por fim, sugeriu que fosse então criado um espaço em sala de aula, para que os alunos pudessem mostrar os seus trabalhos e registros filmados. E falou também da importância de trabalharmos trocando informações e dialogando sobre a pesquisa.

            As duas situações descritas acima possibilitam constatar que a escola é um espaço potente tanto para consolidar discursos criminalizadores quanto para criar estratégias que os desconstruam. Nesse sentido, a possibilidade de uso de equipamentos que tornou possível a expressão audiovisual, permitiu aos estudantes, tachados profeticamente como meninos que não têm jeito, “ajeitarem-se” desajeitando o modelo de escola que os profetiza como aqueles que têm problemas de aprendizagem. Há, no domínio da técnica e dos conhecimentos acerca da operacionalização dos equipamentos, uma possibilidade de demonstração factual de que os “conteúdos” ensinados durante as “trocações” de ideias são mais significativos e possibilitam retratar melhor a dura e complexa realidade em que os estudantes vivem. Com isso, fica claro que os mesmos não têm problemas de aprendizagens de “conteúdos complexos e/ou técnicos”, ao contrário, a sua capacidade de aprender e de demonstrar o uso do conhecimento aprendido é convertido, diante de todos, em ação-comprovação da expressão daquilo que querem filmar (“Quero filmar minha égua!”). Essa demonstração, feita por cada estudante, do uso daquilo que apreendeu, tanto na operacionalização dos equipamentos quanto no planejamento das filmagens, desconstrói, portanto, a profecia da escola (“eles têm problemas de aprendizagem”).
            Fato importante, também, nesse processo é que todos podem se ver (e demonstrar isso ali) aprendendo a lidar com os “conteúdos” complexos e sistematizados de elaboração dos roteiros de vários tipos. Mesmo aqueles que não dominavam plenamente a habilidade de decodificação do código linguístico escrito (não eram alfabetizados a contento) aprenderam a elaborar roteiros em modelos storyboard[4] e a organizar o planejamento das sequências de filmagens externas. Demonstraram aí uma enorme capacidade criativa na construção das suas narrativas, principalmente quando criaram seus próprios roteiros e planos de filmagens para as suas histórias de vida.
A partir daí, o alijamento que até ali predominou na relação com a escola passou a ser tensionado pela possibilidade de denúncia que o recurso audiovisual lhes oferecia. Suas culturas e “valores comunitários”, construídos nas relações necessárias de solidariedade que o viver nas favelas impõe, puderam ser não somente elaborados e exibidos na escola, mas ressignificados e compreendidos por ela. A origem social dos estudantes bem como a dramaticidade das condições existenciais podiam então ser vistas e contempladas pelas filmagens das crianças, e, fundamentalmente, problematizadas e tematizadas como elemento curricular.
Isso permitiu sugerir um currículo com tematizações contextualizadas, que envolvem temas sobre as múltiplas infâncias encontradas na escola, no bairro, no país, por exemplo. Compreende-se que as imagens registradas pelas próprias crianças nos seus contextos podem ser tensionadas com as que predominam no cinema, nas novelas e nos comerciais das infâncias propagadas como universais. O principal objetivo neste caso seria fazer com que a escola e as crianças compreendessem, indagassem e debatessem a complexidade da sociedade de classes em que estão inseridas e que não naturalizassem de forma fatalista os “fenômenos” econômicos e a crueldade social que as atingem diariamente.
Para que se possa alcançar algum êxito na escolarização desses estudantes não se pode descartar a sua condição existencial. Um estudante que passa a maior parte do seu tempo interagindo com sociabilidades, linguagens, conceitos, nos espaços onde mora, considerados, pela escola, de menor valor, está fadado não só ao fracasso escolar, mas à estigmatização. Assim, fica claro que o que se tem é uma injustiça tanto social quanto cognitiva, na medida em que se quer atribuir ao estudante o seu fracasso escolar, sem levar em conta que a capacidade de aprender conteúdos, conceitos, etc, está diretamente ligada à oportunidade de estar inserido num meio que seja farto daquilo que é exigido pela escola.   Exige-se que os estudantes pensem, compreendam a partir de um tipo de racionalidade imposta pela escola, sem considerar as ferramentas ou os instrumentos conceituais que eles trazem, que são frutos das suas interações e experiências no meio onde habitam, e que envolvem discursos de classes, ideologias, conceitos, conteúdos, formalidades e informalidades para a execução de tarefas, além de violências cotidianas de policiais/milícias/traficantes. Pior que isso, encontra-se uma clara transferência de discursos criminalizadores bastante comuns no universo do Direito Penal que surgem nos discursos pedagógicos usados como justificativas do fracasso escolar. Essa é uma motivação que justifica uma pesquisa visando a compreender melhor a relação entre a expansão da lógica criminalizadora do Direito Penal e a escolarização das classes populares.

RELAÇÃO DA LÓGICA CRIMINALIZADORA COM O DIREITO PENAL

De acordo com Vera Malaguti (BATISTA, 2012), é possível afirmar que todas as definições da criminologia são atos discursivos.
Segundo a referida autora:

[Os] atos de poder com efeitos concretos, não são neutros: dos objetivos aos métodos, dos paradigmas às políticas criminais. [...] A criminologia se relaciona com a luta pelo poder e pela necessidade de ordem. A marcha do capital e a construção do grande Ocidente colonizador do mundo e empreendedor da barbárie precisaram da operacionalização do poder punitivo para assegurar uma densa necessidade de ordem. (BATISTA, 2012: 19)

Nesse sentido, é possível estabelecer uma relação entre os discursos positivados no Direito Penal e as atitudes criminalizadoras daqueles agentes públicos (sejam eles policiais, juízes ou professoras) que têm o poder  de rotular os comportamentos “inadequados” de alguns sujeitos, em alguns contextos, tipificados na norma jurídica. Isso não apenas expande os vetores que criam (e/ou reforçam) os preconceitos sociais e estigmas criminalizados daqueles que não se enquadram na “ordem”, mas, sobretudo, criam um campo de legitimação e naturalização para a circulação de tais discursos-atitudes.
Isso permite pensar se não seria plausível afirmar que a “fratura exposta” do “Estado Democrático” não seria o próprio Direito Penal. É possível perceber, sem muito esforço, que essa é a esfera jurídica na qual o Estado melhor consegue criar uma áurea mistificadora das relações oriundas das desigualdades sociais e dos conflitos de classes. Ou seja, o Estado capitalista, sob a égide do Direito Penal,  transforma os elementos fundantes da sociedade capitalista em discursos-normas transformando as contradições do próprio sistema em algo fatalista, mágico, místico, dado pela natureza ontológica humana.
Para isso, esse Estado sustenta um tipo de narrativa cuja metodologia tenta criar uma ideia falsa de linearidade histórica do Direito Penal, principalmente no que tange ao Direito Penal brasileiro. Mesmo dentro dessa lógica linear de narrativa, esconde, por exemplo, o fato de que o direito Penal, na sua origem europeia, teve como principal propósito, atender aos interesses da burguesia e, portanto, foi criado para ser um sistema de mediação política (e também pedagógica) para lidar com os conflitos sociais tais como os oriundos da Revolução Francesa, por exemplo.    
O Brasil passou por um processo, denominado por alguns estudiosos de Colonialidade do Poder e do Saber[5] (MIGNOLO, 2005; QUIJANO, 2005), no qual foi marcado a ferro e fogo pela colonização eurocêntrica. Hoje, no que tange à justiça criminal, há um forte reflexo disso somado às recentes reformas neoliberais tanto no Direito Penal quanto na Política Criminal.
Para o diálogo que se pretende fazer entre o Direito Penal e a Educação Pública das classes populares, fundamentalmente no que diz respeito à tese de fundo aqui defendida, faz-se mister, à guisa de reflexão, discutir um pouco acerca do processo e a lógica que levou à criação da Lei dos Crimes Hediondos, Lei 8.072/90.
Surge aí um marco, o início de um processo que instaura não somente a manutenção de antigas crenças, mas, sobretudo, a criação de novas crenças, tais como as de que a expansão e o recrudescimento do Direito Penal traz progresso para a sociedade. O resultado prático de tais ideias consubstancia-se nos infindáveis processos penais que resultam no esgotamento do sistema carcerário que, de alguma forma, traz à tona um paradoxo, visto que implode a premissa fundante do Direito Penal que é a promessa da ressocialização do cidadão-infrator. 
Uma consequência disso foi a criação de um “contrassistema” penal, dentro das inúmeras e superlotadas carceragens do país, que não apenas desafia o Direito Penal, mas, fundamentalmente, o próprio Estado Brasileiro.  Também coloca em xeque a segurança e o conforto da burguesia brasileira, que o criou e o mantém através dos seus aparelhos de pressão política e de controle da opinião pública. 
No que se refere ao progresso esperado, promessa central do Estado Moderno em todos os campos – educacional, social, econômico, político, jurídico, etc. – o Direito Penal não contribuiu em nada que desse motivo de festejos para as classes populares, quiçá para a sociedade brasileira. Longe disso, o que se vivencia no cotidiano é um sistema de opressão forte para com os mais precarizados, os alijados do próprio sistema capitalista. Isso reflete novamente o paradoxo sugerido acima: o de que o sistema penal, à medida que se expande, caminha para sua autodestruição, pois, enquanto eficácia sistêmica, não é autorrealizável. Dessa forma, fica claro que o Direito Penal, como possibilidade de normatização socializadora e justiça social, não é sinônimo de eficiência como fazem crer os discursos conservadores. O que se tem, em vez de justiça social, é um controle para a manutenção da ordem vigente, leia-se, manutenção do status quo.
De acordo com Juarez Cirino:

A prisão é o aparelho disciplinar exaustivo da sociedade capitalista, constituído para exercício do poder de punir mediante de privação de liberdade, em que o tempo exprime a relação crime/punição: o tempo é o critério geral e abstrato do valor da mercadoria na economia, assim como a medida de retribuição equivalente do crime do Direito. Portanto, esse dispositivo do poder disciplinar funciona como aparelho jurídico econômico, que cobra a dívida do crime em tempo de liberdade suprimida, e como aparelho técnico disciplinar, programado para realizar a transformação individual do condenado. (SANTOS, 2010)   

Como foi exposto, o Direito Penal nasce como instrumento legal de limitação e controle visando à manutenção dos privilégios e a permanência das prerrogativas do status quo.  Por isso, não é contrário à sua natureza que ele se transforme ou se transmute em direito bélico, focado na segurança pública dos bens e das riquezas privadas. Em vez de Estado Democrático de Direito, focado na educação-formação humana das gerações futuras, temos um estado de garantias dos privilégios, logo, das desigualdades socioeconômicas e, consequentemente, das injustiças sociais e cognitivas.
Direcionando para a problematização e aprofundamento do tema, voltemos à Lei dos Crimes Hediondos, Lei 8.072/90. Esta Lei, ou mesmo o sistema penal, não define conceitualmente, principalmente no que diz respeito à adjetivação, o que são ou como definiremos aqueles que cometem tais crimes. Alberto Silva Franco discutindo a questão da reincidência assevera que

(...) No baú dos trastes penais, num canto de entretecidas teias de aranha, o legislador de 90 descobriu o conceito já tão dilapidado de reincidência específica e cuidou de reanimá-lo. Ao dar-lhe nova vida, não se preocupou, contudo, em redefini-lo para efeito de alargar ou restringir sua conhecida área de significado. (Apud. GRECO, 2012: 220)

Se a Lei não os definem claramente, a cargo de quem ficam as construções discursivas que adjetivam tais criminosos? Ao senso comum, denominando-os de bandidos porcos, sanguinários, X-9, alemão? À mídia, qualificando-os de repugnantes, perversos, desumanos, inimigos? Quanto a este último adjetivo, Zaffaroni provoca quando sugere que

A essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o direito lhe nega a sua condição de pessoa. Ele só é considerado sob o aspecto de ente perigoso ou daninho. Por mais que a ideia seja matizada, quando se propõe estabelecer a distinção entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não-pessoas), faz-se referência a seres humanos que são privados de certos direitos individuais, motivo pelo qual deixaram de ser considerados pessoas, e esta é a primeira incompatibilidade que a aceitação do hostis, no direito, apresenta com relação ao princípio do Estado de direito. (ZAFFARONI, 2013: 18)

Vemos uma fenda aberta para a “liberdade” de criação de constructos discursivos[6], aqueles verbetes que qualificam, requalificam e desqualificam os que praticam crimes. Assim, não é a discursividade formal normativa do Direito Penal que tem o poder total de criar e produzir os termos adjetivos daqueles que cometem crimes hediondos, mas sim outros veículos ao seu modo. Está posta aí a ponte que estabelece a ligação entre estilos de vida e modos comportamentais (estes últimos não nascem do nada, mas do conjunto de possibilidade de socialização disponibilizados nos espaços de interações em que estão inseridos) e os estigmas criminalizadores atribuídos, por outrem, aos que praticam qualquer desvio.
Cabe ressaltar, porém, que a difusão dos estigmas e estereótipos é um movimento diferente da adesão voluntária aos modelos que surgem e são propagados. A adesão e o uso de adjetivos estigmatizadores são incorporados não somente aos discursos predominantes e corriqueiros das classes populares, mas também passam a fazer parte do vocabulário daqueles que os criaram. Esses discursos são difundidos como verbetes universais de enquadramento adjetivo, e as classes que são atingidas diretamente pelos malefícios e preconceitos muitas vezes aderem ao uso desses adjetivos em função dessa capacidade que os meios de controles e de difusão têm de transformar criações políticas em invenções mágicas, naturais, que surgem sem autores e sem intencionalidade. Resultam daí movimentos de adesão distintos: de um lado estão os que podem difundir e aderir, caso lhes interesse; do outro, aqueles que só podem aderir, visto que estão submetidos ao poder-controle das Leis e dos mecanismos.
Um exemplo recente é o caso da professora universitária da PUC-RIO e também do reitor da UNIRIO que se envolveram, por via das redes sociais, num caso típico de estigmatização de um modelo-estilo supostamente característico das classes populares. O caso foi o de um passageiro que aguardava seu voo num aeroporto, vestido de forma espontânea, com bermuda e camiseta (numa temperatura  de 40 graus, é bom que se diga), e que teve sua foto publicada, pela referida professora, em sua rede de relações, em que a mesma insinuava que um aeroporto não era lugar para aquele tipo de gente (leia-se; portador daquele estigma, o de classe popular ou, como nas palavras do reitor da UNIRIO, um estilo sem o “glamour” que os daquele meio supostamente apresentam). Isso revela, claramente, como se dá, no cotidiano, a propagação dos estigmas.
Retomando o debate, o Direito Penal e a Reforma de 1990 definiu de forma turva como devem ser as normas penais, ou os conceitos qualificadores, para os agentes que praticam as ações enquadradas no Crimes Hediondos. Portanto, a definição dos agentes tornou-se uma questão política e de luta (resistências) de classes.
A concepção técnica dos legisladores, à época, para definir os elementos conceituais dos Crimes Hediondos (tráfico, tortura) não incluiu o homicídio simples, por exemplo. O homicídio é a pedra angular que fez nascer o Direito Penal. Não poderia ser desconsiderado, ou mesmo esquecido, na primeira formulação de Lei dos Crimes Hediondos de 1990.
Segundo Rogério Greco:

De todas as infrações penais, o homicídio é aquele que, efetivamente, desperta mais interesse. O homicídio reúne uma mistura de sentimentos – ódio, rancor, inveja, paixão etc. – que o torna um crime especial, diferentemente dos demais. Normalmente, quando não estamos diante de criminosos profissionais, o homicida é autor do único crime do qual, normalmente, se arrepende.  (GRECO, 2012: p.130)

            Dessa forma, pode-se sugerir que tal desconsideração com o homicídio demonstra o quanto a elaboração, a expansão e a consolidação da nossa legislação está refém das grandes empresas de mídia, dos seus apelos e da capacidade de impor diretrizes normativas, legisladoras, fazendo pressão e conduzindo a opinião pública a pressionar o juiz togado, quiçá o Júri Popular.
            Ficou muito evidente (e quem vivenciou esse período deve lembrar bem disso) que a expansão dos elementos que caracterizam os crimes hediondos teve uma forte influência da empresa Rede Globo de televisão, visto que concomitante ao período de elaboração e fixação da Lei 8.072/90, aconteceu um crime que chocou a opinião pública, envolvendo a filha da escritora e novelista, Glória Perez, a jovem Daniela Perez. É inegável a influência deste episódio, que conseguiu transformar um crime passional, bárbaro, em crime hediondo. Isso demonstra o quanto o nosso Direito Penal é subsidiário da pressão e dos apelos midiáticos que com seus aparelhos ampliam exponencialmente o tamanho do fato impondo a lógica do medo e do terror, sem dar margens para as garantias de defesa e de direito de todos os Réus, condenados a priori.

IMPACTOS DA LÓGICA CRIMINALIZADORA

Pelo que foi apresentado até aqui, é possível sugerir que as crianças das classes populares já chegam na escola pública marcadas, a priori, sob os estigmas de uma “marginalidade” (tanto no sentido de estarem à margem da sociedade formal quanto no sentido de estarem também à margem da sociedade legal). Estamos falando de crianças que, em sua maioria, são moradoras de favelas[7] e, portanto, vistas por muitos professores/professoras e por agentes educacionais (e isso é frequentemente constatado em nossas pesquisas), em função apenas de seus comportamentos peraltas, ou até mesmo violentos, como criminosos em potencial. Em alguns casos até mesmo como criminosos em miniaturas.
Diante de tais constatações, vem a questão: quais os processos de sociabilidades incorporadas que impactam o cotidiano escolar e que permitem originar e/ou reforçar esse imaginário social, acerca das crianças-estudantes das classes populares? Outra questão igualmente pertinente é: em que medida o Direito Penal teria alguma relação com esse imaginário, propagado nos contextos escolares através dos discursos de professores, professoras e outros agentes da escola, já que os discursos do Direito Penal têm um contexto específico de difusão e de uso conceitual e prático, que se dá predominantemente na esfera do Direito propriamente dito?
Relacionado a isso, Ratto aponta que

Muito dessa lógica judiciária pode ser encontrada nos livros de ocorrências, cujo próprio nome remete a uma associação imediata aos corriqueiros boletins de ocorrência das delegacias de polícia. Tal qual foi mostrado no conjunto das ocorrências citadas até aqui, seus registros são geralmente estruturados em torno de três partes centrais, não necessariamente naquela ordem. Apresentam os dados de identificação dos alunos(as), ou seja, dos acusados(as); narram a situação ocorrida, essa espécie de crime cometido, muitos vezes registrando os indícios ou provas que o atestariam (marcas físicas das agressões, testemunhos, confissões, acareações, dentre outros); e explicitam as consequências, uma espécie de veredito final com a decorrente “pena”, seja na forma de tudo o que já foi feito para resolver o problema, como parte das justificativas para as providências tomadas, ou como prova dos esforços da escola para o encaminhamento de soluções, seja na forma de uma ameaça do que futuramente será feito, em caso de reincidência, seja ainda na forma da providência presente, isto é, da medida que a escola efetivamente toma, diante da situação narrada. (RATTO, 2007:  91) 

Essas crianças já estão, ao nascer, inscritas subjetivamente como infratores, em função da própria condição existencial já que, enquanto moradores de favelas, vivem em terrenos sem documentação de propriedade, em espaços abandonados pelo poder público, onde o “Estado de Direito” só chega com uso desmedido da força ainda que sob o discurso de “pacificação”. Discurso este que perde totalmente a credibilidade e reforça ainda mais a histórica desconfiança das classes populares na ação do Estado infringente de Direitos: “Cadê o Amarildo?[8]
É bom ressaltar que a definição conceitual de Estado de Direito é complexa e demanda uma longa discussão política e filosófica, que extrapolaria os limites deste trabalho. Porém, mesmo reconhecendo que o sentido predominante do conceito tem uma forte marca da colonialidade eurocêntrica, apresenta-se uma concepção que, de certa forma, é a mais plausível, no momento, para fundamentar o sentido aqui exposto. Portanto, justifica-se a citação da concepção defendida por Danilo Zolo.

Nos países ocidentais, os direitos subjetivos podem ser defendidos e promovidos não só dentro do ordenamento do Estado de Direito, mas também fora do seu âmbito formalizado, com instrumentos políticos, informáticos, culturais, educativos, econômicos.  (...) Os direitos são (preciosíssimas) próteses sociais que permitem reivindicar com maior possibilidade de sucesso, e sem recorrer novamente ao uso da força, a satisfação de interesses e de expectativas socialmente compartilhadas. Mesmo a limitação do poder arbitrário e a proteção institucional dos direitos subjetivos – os dois serviços específicos do estado de Direito – são o resultado histórico de “lutas pela defesa de novas liberdades contra antigos poderes”: são a outra face do conflito social, estão e caem com ele. (ZOLO, 2006, p. 93-94).

Outra questão importante, diz respeito à sociabilidade dos estudantes. Constantemente são postos na pauta dos conselhos de classes escolares problemas de ordem comportamental que indicam o que se pode denominar de ambivalência existencial (necessária à sobrevivência das classes populares), que se consubstancializa no debate sobre convivência e/ou conivência com os bandidos, ou com um tipo de sociabilidade violenta.
O fato de muitas dessas crianças compartilharem um território, como o de muitas favelas que, muitas vezes, estão submetidas ao controle de traficantes, milícias ou mesmo policiais da UPP, cuja regra geral é o uso desmedido da força, não é tarefa fácil ou simples. Requer o desenvolvimento de um tipo de inteligência-malícia-astúcia (quem sabe uma “Inteligência bandida[9]) que não cabe nos padrões cognitivos almejados pela escola. Há outras questões, como a corrupção tantas vezes publicizada pela mídia jornalística, que contribuem para uma vida de silêncios forçados aprendidos desde a idade mais tenra (é o famoso ver, ouvir e calar). Isso é suficiente para a estigmatização dessas crianças-estudantes? Ou seja, o fato de nascer em famílias pobres que compram naturalmente mercadorias sem o devido registro ou legalização (ainda que entre tais produtos esteja o pão de cada dia, comprado nas padarias dos becos), que participam de um capitalismo informal porém de forte impacto na cultura econômica do país (vide o turismo nas favela, hoje), reforça o imaginário dos/das professoras que lidam diretamente com essas crianças nas escolas públicas?
É possível verificar, a partir da pesquisa inicial, que as políticas de ensino público do Estado, que deveriam cumprir-se como um Direito, na verdade contribuem para o processo de manutenção da desigualdade educacional. Assim, não se cumpre o dever de ensinar, na escola, o que é o fundamento da existência institucional dela mesma, como, por exemplo, ensinar a ler e a escrever. Ou seja, ainda no século XXI a educação brasileira convive com graves problemas que a desafiam. A aprendizagem das classes populares, por exemplo, é, entre muitos outros, um desses problemas. Muitas foram (e são) as tentativas que visam a resolvê-lo. Várias instâncias vêm, historicamente, comprometendo-se com essa temática. Projetos e propostas educacionais, teóricas e pedagógicas têm ocupado os debates nas universidades com o intuito de compreender melhor o que acontece nos cotidianos das escolas públicas desse enorme e complexo país. A atual realidade mostra também que vários elementos oriundos dos conflitos sociais e das relações citadinas confluem para ampliar a complexidade dessa temática, dentre as quais se destaca a violência urbana.
Claro está que as classes populares, oriundas dos locais mais precarizados, principalmente no que diz respeito aos instrumentos e dispositivos citadinos (de urbanidade e socioculturais), são preteridas nas opções de quem deveria disponibilizar tais recursos, o Estado, tal como é disponibilizado para os bairros de população mais abastada. Os preteridos, diante da situação em que se encontram, constroem estratégias de sobrevivências riquíssimas, mesmo estando submetidos a grupos armados que impõem ordens de sociabilidades violentas. Quem sabe, a partir do conhecimento dessas estratégias, seja possível construir uma educação pública mais eficaz e, consequentemente, uma justiça social mais democrática. Nesse sentido, cabe a proposição de Boaventura Santos:

Estou convencido de que, para a concretização do projeto político-jurídico de refundação democrática da justiça, é necessário mudar completamente o ensino e a formação de todos os operadores de direito: funcionários, membros do ministério público, defensores públicos, juízes e advogados. É necessário uma revolução. Em relação aos profissionais, distingue-se entre a formação inicial e a formação permanente. Ao contrário do que sempre se pensou, a formação permanente é hoje considerada mais importante. Dou-vos um exemplo. Na Alemanha, não há nenhuma inovação legislativa sem que os juízes sejam submetidos a cursos de formação para poderem aplicar a nova lei. O pressupôs é que, se não houver uma formação específica, a lei obviamente não será bem aplicada. Temos que formar os profissionais para a complexidade, para os novos desafios, para os novos riscos. As novas gerações vão viver numa sociedade que, como eu dizia, combina uma aspiração democrática muito forte com uma consciência da desigualdade social bastante sólida. E, mais do que isso, uma consciência complexa, feita de dupla aspiração de igualdade e de respeito da diferença. (SANTOS, 2011: 82)

Reafirma-se aqui que a luta contra a estigmatização e a criminalização dos estudantes das classes populares é uma luta política contra-hegemônica. Luta contra os que causam a condenação dos seus “estilos” de vida, dos seus comportamentos, fora dos padrões impostos – cabe lembrar que tais comportamentos não “brotam” do vazio, mas da própria condição circunstancial de existência, do meio societário que lhe está disponível. A condenação dos conhecimentos que emergem da luta de classe calcada nas resistências e nos contra-ataques das experiências cotidianas mostra-se nos corpos marcados pelas cicatrizes de todos os tipos de injustiças da sociedade em que vivem. 
Para corroborar essa discussão, torna-se pertinente, embora longa, a citação de Alessandro Baratta, de suma importância para a fundamentação do debate aqui exposto,  que vai ao âmago da questão quando diz:

Enquanto a classe dominante está interessada na contenção do desvio em limites que não prejudique a funcionalidade do sistema econômico-social e os próprios interesses e, por consequência, na manutenção da própria hegemonia no processo seletivo de definição e perseguição da criminalidade, as classes subalternas, ao contrário, estão interessadas em uma luta radical contra os comportamentos socialmente negativos, isto é, na superação das condições próprias do sistema socioeconômico capitalista, as quais a própria sociologia liberal não raramente tem reportado os fenômenos da “criminalidade”. Elas estão interessadas, ao mesmo tempo, em um decidido deslocamento da atual política criminal, em relação a importantes zonas de nocividade social ainda amplamente deixadas imunes do processo de criminalização e de efetiva penalização (pense-se na criminalidade econômica, na poluição ambiental, na criminalidade política dos detentores do poder, na máfia etc.), mas socialmente muito mais danosa, em muitos casos, do que o desvio criminalizado e perseguido. Realmente, as classes subalternas são aquelas selecionadas negativamente pelos mecanismos de criminalização.  As estatísticas indicam que nos países de capitalismo avançado, a grande maioria da população carcerária é de extração proletária, em particular dos setores do subproletariado e, portanto, das zonas sociais já socialmente marginalizadas como exército de reserva do sistema de produção capitalista. Por outro lado, a mesma estatística mostra que mais de 80% dos delitos perseguidos nestes países são delitos contra a propriedade. Estes delitos constituem reações individuais e não políticas às contradições típicas do sistema de distribuição da riqueza e das gratificações sociais próprias da sociedade capitalista: é natural que as classes mais desfavorecidas desse sistema de distribuição estejam mais particularmente expostas a esta forma de desvio. (BARATTA, 2011: 197-198)



CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ficou claro que, concomitante ao enriquecimento dos recursos tecnológicos nas escolas públicas, é crucial, para que se alcance uma sociedade mais justa e democrática, uma luta política. A disponibilização de ferramentas tais como os recursos audiovisuais, possibilita uma autoafirmação dos estudantes das classes populares, pois materializa a possibilidade de, como cidadãos submetidos a diversas formas de opressão, tornarem-se capazes de denunciar sua condição existencial, bem como a perversidade da lógica criminalizadora.
Com isso, em vez de criminosos em potenciais, outras lógicas seriam criadas para que se revelasse a potência de artistas, poetas, políticos ou simplesmente cidadãos de direitos, num Estado de Direito legítimo e de fato. Para isso, ter-se-ia como possibilidade concreta o cumprimento de, pelo menos, três dos princípios da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – (Lei n. 9.394, de 20-12-1996):
Art. 3°
            I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
            II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;
            III – pluralismos de ideias e de concepções pedagógicas;

O objetivo deste trabalho foi analisar criticamente em que medida há rebatimentos e impactos dos discursos criminalizadores, normativos do Direito Penal, nas escolas públicas que atendem predominantemente estudantes oriundos das classes populares. A ideia foi a de identificar e problematizar os indícios de criminalização dos comportamentos e das sociabilidades expostas pelos estudantes de origem já mencionada acima. Infelizmente, o tema tratado aqui não é fato novo. Batista, há muito tempo, vem chamando a atenção para essa problemática. Segundo ele:

Quando alguém fala que o Brasil é “o país da impunidade”, está generalizando indevidamente a histórica imunidade das classes dominantes. Para a grande maioria dos brasileiros – do escravismo colonial ao capitalismo selvagem contemporâneo – a punição é um fato cotidiano. Essa punição se apresenta implacavelmente sempre que pobres, negros ou quaisquer outros marginalizados vivem a conjuntura de serem acusados da prática de crimes interindividuais (furtos, lesões corporais, homicídios, estupros, etc.). Porém essa punição permeia principalmente o uso estrutural do sistema penal para garantir a equação econômica. Os brasileiros pobres conhecem bem isso. Ou são presos por vadiagem, ou arranjem rápido emprego e desfrutem do salario mínimo (punidos ou mal pagos). Depois que já estão trabalhando, nada de greves para discutir o salario, porque a polícia prende e arrebenta (punidos e mal pagos). (BATISTA, 1990: 38-39)

Os resultados da pesquisa (ainda que em caráter provisório) constatam que muito do que foi dito acima, pelo professor Nilo Batista, há décadas atrás, permanece em atualmente, como feridas que não cicatrizam. As conclusões apontam para uma forte influência, ainda hoje, dos argumentos criminalizadores na composição das justificativas pedagógicas, na escola pública, para o “fracasso” dos estudantes das classes populares.
            A fundamentação discursiva criminalizadora difundida no cotidiano escolar, para a visível impotência na não resolução das dificuldades pedagógicas, cria uma falsa realidade do que de fato tal instituição realiza com relação ao que seria a sua função social. Ao se ancorarem numa confusão argumentativa que torna turva a transparência das ações pedagógicas, os discursos criminalizadores passam, então, a justificar as impotências da escola pública em não saber lidar com a complexa diversidade das culturas, das sociabilidades e dos conhecimentos que se forjam numa sociedade marcada pela desigualdade social.
Além disso, constatou-se que há uma prática de vincular os discursos que naturalizam as violências supostamente oriundas de sociabilidades forjadas nos contextos das classes populares à justificativa da escola de não explicar pedagogicamente o porquê dos seus estudantes não aprenderem o que deveriam aprender. Discursos como “são violentos”, “apáticos” ou “têm problemas de aprendizagem” formam uma tríade de possibilidades explicativas obtusas (e porque não dizer perversas).
Isso, de certa forma, coaduna com o que vem apontando a pesquisadora Vera Malaguti, no sentido de que os discursos que predominam nas perspectivas de política criminal (como, por exemplo, os argumentos que legitimam a ampliação do tempo de internação-punição dos jovens infratores, ou aqueles que sustentam a perspectiva da redução da maioridade penal) tendem a criar inimigos sob medida.
Segundo a pesquisadora:

As questões políticas colocadas hoje na América Latina são questões de política criminal, da politização da violência (...) A violência naturalizada, as cátedras do medo, a confecção de inimigos sob medida se liga às técnicas de obediência obrigatória que poderão funcionar contra as multidões em desemprego. Para os novos impuros, o discurso e as políticas de “lei e ordem”, a nova cruzada a justificar torturas e execuções de negros e pobres. (BATISTA, 2003: 104)

 Tal lógica criminalizadora do Campo do Direito Penal se retroalimenta, constantemente, em diversos contextos, entre os quais, o cotidiano escolar, – em reuniões de conselhos de classes ou nos momentos livres da recreação etc. Com a difusão desses discursos como justificativas para os “fracassos escolares” dos estudantes das classes populares que não aprendem o que deveriam aprender, além das instituições de ensino público não assumirem de forma eficaz o seu dever político e institucional com a “coisa pública”, não se comprometem de fato com a mudança desse quadro.
Percebe-se que algumas dessas instituições deixam subentendida uma concepção de que tais seres humanos (os estudantes em questão) não carregam em si (ou, quem sabe, não herdaram do Ser Supremo), um “ânimo” para crescer em conhecimentos complexos, científicos. Com isso, justifica-se o fato (ou a profecia) de que já nascem sem o “Espírito Científico”[10]. Ou seja, “não têm jeito!” Mais grave ainda é o fato de que essa lógica cria discursos turvos e ambíguos que não apontam diretamente qual é a questão nuclear do problema que impede a escola de realizar-se na sua função institucional (o ensino público). E, com isso, não oferece uma resposta plausível à sociedade, quanto a sua impotência. Ao contrário, deixa implícito a ideia de que ninguém, e todos, ao mesmo tempo, têm e não têm “culpa” (ou culpabilidade), a não ser, claro, “deus”, que não foi justo com os estudantes das classes populares e não lhes concedeu a dádiva de um espírito científico matricial.
Logo, ao não se submeterem aos ordenamentos que tentam ajudá-los a alcançarem a condição de civilizado, a instituição escola muitas vezes os consolida como a casta dos sem “espírito científico”. Dessa forma, o que resta para essas instituições é criar estratégias discursivas criminalizadoras que a isentem de assumir a própria impotência institucional, até que eles (os estudantes das classes populares) passem dessa (...) para “a Melhor”(...).   











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NOTAS

[1] Acerca da expressão “classes populares”, nossos estudos e pesquisas têm apontado para uma polissemia no que tange à definição conceitual em si. Existem, consagrados nos discursos sociológicos, nas teorias economicistas e no próprio campo do Direito Penal, alguns ancoradouros que margeiam os limites das definições de classes populares. Essas definições operam tanto com elementos concretos, tais como condições econômicas, tipos de moradias, informalidades e/ou ilegalidades da organização dos espaços de habitação e suas instalações/equipamentos estatais, quanto com discursos românticos e/ou folclóricos que remetem a imaginários de poetas, músicos populares, além daqueles estigmatizantes e preconceituosos, que trazem a ideia de bandidos perigosos, ameaça ao Estado, famílias desestruturadas, entre outros termos. A nós, fica evidente que a pluralização do conceito faz-se necessária na medida em que constatamos uma enorme heterogeneidade oriunda principalmente das origens regionais, culturais, étnicas dessas classes populares, que se configuram como resultantes das constantes interações, sejam para a própria sobrevivência aos processos de opressão, em que historicamente foram submetidas em nosso país, sejam para a resistência às injustiças sociais que se perpetuam no Brasil.
  
[2] Cabe ressaltar aqui que tanto este tópico do texto quanto o que vem a seguir (“Breve relato da empiria”) podem causar uma impressão no leitor de que estão desconectados do tema central do artigo. No entanto, faz-se necessária a exposição detalhada da pesquisa, na medida em que possibilita constatar que os processos criminalizadores operam exatamente nas entranhas do cotidiano. Ou seja, uma pesquisa que tratava de linguagem audiovisual e fracasso escolar acabou revelando uma estreita aproximação com o campo da Criminologia.

[3] É uma noção de cunho conceitual e metodológica que estamos desenvolvendo no Projeto, diferente da noção de roda de conversas, pois, aqui, os estudantes se agrupam livremente, em quantos grupos quiserem, sentados ou em pé, em qualquer canto da sala, e falam sobre quaisquer assuntos (as ideias trocadas). Não há, necessariamente, direcionamentos unilateral e nenhum ponto de partida fixo (seja ele do professor ou dos estudantes).

[4] Storyboard é um modelo sintético de roteiro cinematográfico muito semelhante a uma história em quadrinhos, recorrentemente utilizado para orientar pequenos filmes publicitários e institucionais.

[5] Alguns dos autores aos quais me filiei teoricamente defendem uma distinção entre colonialismo e colonialidade, sendo o primeiro conceito entendido como o controle das formas de trabalho, dos recursos e dos produtos, fruto de uma especificidade histórica que foi a colonização. E o segundo, a colonialidade, como um processo que se estende para além do colonialismo, na medida em que cria modelos para um sistema-mundo eurocêntrico, hierarquizando as relações humanas a partir do conceito de raça, promovendo, com isso, as classificações que submetem as formas de estar no mundo daqueles que não se enquadram em tais modelos. Esses intelectuais defendem que fomos levados a cometer equívocos na compreensão política e histórica do sistema-mundo em que vivemos. Esses processo de colonialidade do poder e do saber nos condicionou, durante muito tempo, a enxergar a nossa história e as nossas questões sob as lentes do eurocentrismo. A base da colonialidade e do eurocentrismo é o uso da força como elemento fundamental para garantir os processos de subalternização. 

[6] É bom frisar que tal prerrogativa, a de criar os adjetivos e propagá-los, não é para quem quer, mas para quem pode, ou seja, aqueles que, munidos dos veículos de difusão de ideias e ideologias, expandem seus adjetivos ao bel-prazer.

[7] O termo ‘favela’ aqui, enquanto conceito sociológico e do próprio IBGE, remete à ideia de localidades irregulares e subnormal de habitação, como também, no que tange às referências do Direito Penal, a um lócus de criminalidades onde todos e todas estão submetidos a suspeição, inclusive, com decisões recorrentes de juízes que inscrevem liminares de efeito coletivo, inconstitucional, diga-se de passagem, para que policiais tenham o salvo conduto de invadir qualquer residência destas localidades, a qualquer hora e dia.

[8] A pergunta  “Cadê o Amarildo?” faz referência ao caso ocorrido na favela da Rocinha, Rio de Janeiro, que ganhou repercussão nacional, no qual o pedreiro Amarildo, após ter sido preso e levado para a sede da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), desapareceu e, até a data de fechamento deste artigo (JUL/2015), o corpo ainda não havia aparecido.

[9] Inteligência bandida é um conceito que venho amadurecendo e que provavelmente será apresentado em trabalhos posteriores, porém não será aqui aprofundado.

[10] Cf. BACHELARD, G. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.