quinta-feira, 24 de novembro de 2011

ESBOÇO DE UMA CARTOGRAFIA DAS AÇÕES DE ALGUNS SUJEITOS DAS CLASSES POPULARES DE ANGRA DOS REIS PROJETADOS EM CONTEXTOS E SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA


Rodrigo Torquato da Silva[1]
Danielle Tudes Pereira Silva[2]

Co-autoras[3]: Maria Margarida Ferreira
Aline Pereira Silva

Introdução

O presente texto visa a apresentar os resultados preliminares de uma pesquisa em andamento realizada pelo grupo ALFAVELA – Alfabetização, Classes Populares e o Cotidiano Escolar, coordenada pelo professor Dr. Rodrigo Torquato da Silva, do Instituto de Educação de Angra dos Reis, da Universidade Federal Fluminense. O grupo ALFAVELA é o resultado de um conjunto de experiências de pesquisas, realizadas ao longo de dez anos, que propiciaram os atuais desdobramentos de estudos, abrangendo a relação entre as classes populares, principalmente as oriundas de favelas e periferias, e suas interlocuções com as escolas públicas que as atendem. Pretende-se, neste trabalho, consolidar pesquisas que se fundem em metodologias qualitativas, tendo o cotidiano escolar e os espaços de conformação de sociabilidades diversas das classes populares como lócus principal de investigação. Já foi feito um levantamento bibliográfico das monografias produzidas a partir das primeiras turmas formadas no Curso de Pedagogia da UFF em Angra dos Reis, entre os anos de 1995 e 2007. Tal levantamento permitiu não somente estabelecer o foco dessa linha de pesquisa, mas um preliminar mapeamento das populações que podem ser identificadas como as classes populares de Angra dos Reis, ramificando-se em pelo menos quatro troncos mais evidentes: os quilombolas, os índios Guarani Mbya, os caiçaras que habitam as ilhas da Baía da Ilha Grande e os trabalhadores que vieram de muitas regiões do Brasil, principalmente do Nordeste, para se empregarem nas usinas e estaleiros da cidade.
Referenciando-se na linha de pesquisa Territórios e Territorialidades das Classes Populares, iniciamos um estudo analítico, de longo prazo, acerca dos contextos e das características em que se constituem os territórios e as respectivas territorialidades em que estão inseridos os estudantes das classes populares atendidos pelas escolas públicas de Ensino Fundamental. Dessa forma, torna-se relevante destacar uma das filiações teóricas que orientam as definições conceituais, norteadoras, dessa linha de pesquisa, através da não tão breve citação:

Entendendo território no sentido amplo, percebemos que essa “necessidade territorial” ou de controle e apropriação do espaço pode estender-se desde um nível mais físico ou biológico (enquanto seres com necessidades básicas como água, ar, alimento, abrigo para repousar), até um nível mais imaterial ou simbólico (enquanto seres dotados do poder da representação e da imaginação e que a todo instante re-significam e se apropriam simbolicamente do seu meio), incluindo todas as distinções de classe socioeconômica, gênero, grupo etário, etnia, religião etc. (COSTA, 2004)  

Nesse sentido, para que pudéssemos apropriarmo-nos minimamente dos contextos que podem sugerir uma interpretação do nível mais imaterial ou simbólico das classes populares em questão na pesquisa, propomos a análise dos periódicos locais mais populares para ver de que forma eles possibilitam leituras e mapeamentos dos contextos e das ações dos grupos pesquisados e a representação dessas ações, bem como o rol de infrações e delitos relatados a partir de narrativas que constroem contextos de representações.

Metodologia

 Inicialmente, trabalhamos com a tabulação do periódico A CIDADE desde o mês de maio de 2011 até sua edição mais recente, muito embora outros dois periódicos estejam também sendo analisados. Porém, para inscrição deste trabalho, apenas o já mencionado foi utilizado como fonte de análise. Ressaltamos, ainda, que esses são os primeiros levantamentos de uma pesquisa de longo prazo. É de nossa pretensão desenvolve-la com mais dados relevantes, oriundos das outras linhas de pesquisas investigadas pelo Grupo ALFAVELA. Cabe mencionar que não interessa tratar a fonte dos dados, o periódico “A cidade”, como narrativa e/ou fonte qualificada cientificamente e neutra de intenções, até porque nosso entendimento é de que toda narrativa tem como autor um sujeito dotado de intenções e de subjetividade construída nas interações sociais e políticas. No entanto, nos debruçamos sobre o referido periódico durante um período de seis meses, analisando os sujeitos, os contextos e os lugares através das fotografias e das narrativas apresentadas. Devemos lembrar inclusive que o próprio jornal faz uma seleção dos casos que serão divulgados e que alguns não são acompanhados por fotos, logo, não sendo considerados nas nossas interpretações fenotípicas a respeito das pessoas apresentadas.
 Desse universo, realizamos alguns recortes entre os quais, para esta linha de pesquisa mencionada acima, um dos focos é a questão racial. Cabe abrirmos um parêntese para considerar que o emprego do termo ‘raça’ é controverso, motivo de discussão em diferentes meios e que dadas as dificuldades de diferenciação entre ‘raça’ e ‘etnia’, grande parte da literatura utiliza os dois termos. O conceito de ‘raça’ opera a partir de uma classificação que toma a cor da pele como critério, constituindo uma divisão em raça branca, amarela e negra que ainda hoje persiste nas relações sociais, permeando o imaginário coletivo. Esse mesmo conceito se solidifica no século XIX com argumentos pseudocientíficos, que sustentariam as raízes do racismo baseado na hierarquização. Hoje, as ciências biológicas demonstraram que não há critérios científicos que justifiquem seu uso. Porém, enquanto construção histórica, a eliminação do vocábulo não garante que o mesmo seja banido de seu uso social e político, por isso substituir raça por etnia não garante, por si só, a extinção do racismo, embora o último tenha um significado mais abrangente, já que uma etnia é um conjunto de indivíduos que, histórica ou mitologicamente, têm um ancestral comum, têm uma língua em comum, uma mesma religião ou cosmovisão, uma mesma cultura e moram geograficamente num mesmo território. (MUNANGA, 2000)
Nesse momento, não apontamos o uso de metodologias de pesquisa antes do diálogo com os dados e das incursões pelo campo, pois compreendemos que fazer pesquisa não é subordinar a “realidade” a um arcabouço metodológico construído a priori ou mesmo por possíveis “discursos-verdades” teóricos cristalizados. Somente a partir do mergulho nos contextos pesquisados é que buscamos os melhores instrumentos metodológicos e as teorias que nos ajudem a construir as primeiras análises. Assim, estabelecemos os procedimentos, e as ferramentas, que podem nos auxiliar nesse mapeamento. O fato de afirmar a nossa opção de utilização dos métodos e teorias concomitante ao mergulho nos contextos não significa que buscamos o ineditismo. Ao contrário, bebemos em muitas fontes, entre as quais, nos estudos e pesquisas realizados pela professora Ana Clara Torres Ribeiro, do LASTRO-UFRJ, que nos oferece um debate metodológico sobre a teoria da ação a partir de uma metodologia denominada “cartografia da ação”[4].
 Esse movimento inicial da pesquisa tem origem em nossa necessidade de ampliar e qualificar a crítica acerca das opressões historicamente sofridas pelas classes populares, bem como as lutas e táticas subversivas resultantes das resistências, que criam possibilidades de ações políticas e pedagógicas. Concordamos com Sandra Mara Corazza ao afirmar que fazer pesquisa, constituir um problema de pesquisa

é começar a suspeitar de todo e qualquer sentido consensual, de toda e qualquer concepção partilhada, com os quais estamos habituadas/os; indagar se aquele elemento do mundo – da realidade, das coisas, das práticas, do real – é assim tão “natural” nas significações que lhe são próprias; duvidar dos sentidos cristalizados, dos significados que são transcendentais e que possuem estatuto de verdade (seja esta verdade científica, mágica, artística, filosófica, psicanalítica, religiosa, biológica, política, etc.); recear a eternidade, o determinismo, a ordem, a estabilidade, a segurança, a solidez, o rigor, o universal, o apaziguado. Em suma, criar um problema de pesquisa é virar a própria mesa, rachando os conceitos e fazendo ranger as articulações das teorias. (CORAZZA, 1996)


As análises preliminares do periódico referem-se a 70 casos que acompanham fotos a partir das quais realizamos uma classificação racial utilizando as categorias do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que apresenta como opções para cor ou raça no censo 2010: preta, parda, branca, indígena ou amarela. Trabalhamos com a heteroclassificação, ou seja, a partir da observação dos traços fenotípicos, distribuímos os casos entre as categorias disponíveis. Assumimos as limitações que o método de identificação envolve, inclusive considerando a imprecisão de algumas imagens, mas consideramos esse procedimento mais adequado nesse primeiro momento.

Breves considerações à guisa de resultados iniciais

Observamos que o espaço do delito demonstrado pelo periódico analisado é predominantemente masculino, havendo apenas cinco ocorrências envolvendo mulheres. Dentre os casos, pretos e pardos constituem maioria, sendo 22 pretos, 40 pardos e 8 brancos. Se agregarmos as categorias pretos e pardos tomando-os como negros, registramos 62 negros e 8 brancos. A faixa etária abrange de 18 a 58 anos, estando a maioria situada entre os 18 e os 35 anos.
Os dados apontam a vulnerabilidade dos jovens negros nas favelas e periferias, sendo esse contingente vítima de execuções e assassinatos, sofrendo a precariedade dos serviços públicos (transporte, saúde, educação) e as dificuldades nas “áreas duras”, conceito que Livio Sansone (1996) define como aquelas onde as possibilidades de trânsito para os negros é mínima ou inexistente, como o mercado de trabalho, o matrimônio e os contatos com a polícia. Perguntamos-nos como pode uma sociedade democrática se configurar de maneira tão desigual.
As narrativas utilizam muitos termos próprios do universo policial. Nos textos não há pessoas, mas sim indivíduos e elementos e as palavras mais recorrentes para qualificar os acusados são: traficante, marginal, malandro, meliante, bandido, ladrão, tarado e mulherengo. Além desses aspectos, que nos dizem bastante sobre as representações das classes populares presentes nesse periódico e que explicitam uma determinada visão de mundo, temos que enxergar o que não é dito, as entrelinhas e sinais que nos remetem ao Paradigma Indiciário de Ginzburg, pois em alguns casos é preciso não se basear (exclusivamente) como normalmente se faz, em características mais vistosas... Pelo contrário, é necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis. (GINZBURG, 1989)
A partir daí apontamos que o trabalho com uma metodologia que valorize as histórias de vida e as trajetórias dos sujeitos (SILVA, 2010) pode nos permitir estabelecer nexos empíricos, sempre difíceis, entre os múltiplos contextos que se inserem os sujeitos, suas trajetórias e as estruturas a que estão submetidos. Ao mapear as ações e os contextos das classes populares representadas nos periódicos pesquisados é possível conhecer não somente as trajetórias, mas ir em busca dos percursos escolares que cada um deles passaram, explicitando as opções com as quais se deparam e alguns dos conjuntos de alternativas que tiveram. Isso, acreditamos, nos possibilitará compreender melhor suas escolhas e a forma como estas foram construindo os seus perfis de comportamentos, em diálogo com os territórios-territorialidade que os constituíram enquanto sujeitos, estabelecendo, com isso, uma relação entre as biografias e o lugar.
Nos delitos noticiados nos periódicos há uma predominância de narrativas de ocorrências de tráfico de drogas. É interessante perceber que mesmo em casos em que a quantidade de entorpecentes encontrados com os supostos “meliantes” é menor do que aquela que, nos altos da Lei configura tráfico, o texto insinua, na maioria das vezes, que as pessoas tinham “envolvimento com o tráfico”. Observemos, abaixo, alguns números dos delitos-crimes, expresso nos periódicos, oriundos das tabulações já feitas na pesquisa. 

Tráfico 30
Foram executados/assassinados 13
Furto 7
Porte ilegal de armas 5
Tentativa de homicídio 3
Homicídio 2
Roubo 2
Tentativa de suborno 1
Extorsão 1
Assalto a mão armada 1
Invasão de domicílio 1
Desaparecimento 1
Estupro 1
Uso de documentos falsos 1
Pedofilia 1

Os territórios de pertencimento da maioria estão localizados no conjunto de bairros que constituem a Grande Japuíba, sendo 25 domiciliados nessa região, 10 em morros do Centro da Cidade, 3 na Sapinhatuba, 12 do Bracuí ao Perequê, 7 do Camorim à Garatucaia, além de 3 no Morro da Glória, 1 na Serra D’Água, 1 no Ariró e 8 em outros municípios.
A partir desses territórios, pretende-se investigar as escolas das adjacências e refletir sobre as propostas que permeiam o cotidiano dessas escolas que atendem as classes populares, que carregam esses territórios em seus corpos, em sua forma de ser e atuar. Embora a escola constitua um lócus de reprodução das desigualdades e estereótipos raciais, esse mesmo espaço é o centro de implementação de políticas que têm como objetivo eliminar as práticas racistas. Como nos esclarece Siss, a educação é uma arena mestra para as iniciativas que se propõem a reduzir, senão eliminar os mecanismos que impactam fortemente e de forma negativa, as trajetórias individual e social dos membros dos grupos sociais colocados em posição de subalternização (2003). O mesmo autor afirma que as desigualdades raciais não são criações naturais, mas tem sua gênese na lógica das relações sociais, sendo uma criação humana, são elas mecanismos iníquos e escandalosos de estratificação social. São socialmente criados; podem e devem ser politicamente dirimidos.


Bibliografia

CORAZZA, Sandra Mara. Labirintos da Pesquisa, diante dos ferrolhos. In: COSTA, Marisa Vorraber (org.). Caminhos Investigativos: novos olhares na pesquisa em        educação. Porto Alegre: Mediação,1996.

COSTA, Rogério Haesbaert da. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

GINZBURG, Carlo. Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história.  São Paulo: Cia. das letras, 1989.


MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: BRANDÃO, André Augusto P. (org.).  Programa de Educação          sobre o Negro na Sociedade Brasileira – Cadernos PENESB;5. Niterói, EdUFF, 2000.

RIBEIRO, Ana Clara ; LOURENÇO, Alice; CARVALHO, Laura Maul de. Por uma cartografia da ação: pequeno ensaio de método.”, 2011. (Disponível na página do LASTRO-UFRJ).

SANSONE, Livio. Nem somente preto ou negro: o sistema de classificação racial
no Brasil que muda. AfroÁsia, Salvador, n. 18, 1996. p. 165-187.

SILVA Rodrigo Torquato da.   Escola-favela e Favela-escola: “Esse menino não tem jeito!” (Tese de doutoramento defendida na Universidade Federal Fluminense). – Niterói: [s.n.], 2010.172 f.(S586) 

   

SISS, Ahyas. Afro-Brasileiros, Cotas e Ações Afirmativas: Razões Históricas. Rio de Janeiro: Quartet, 2003.




[1] Doutor em Educação – UFF
Professor Adjunto da Faculdade de Educação da UFF
Coordenador do Grupo de Pesquisa ALFAVELA
[2] Pedagoga da Rede Municipal de Angra dos Reis
Aluna do curso de Pós-graduação em Diversidade Cultural e Interculturalidade: Matrizes Indígenas e Africanas na Educação Brasileira PENESB/UFF
Auxiliar de Pesquisa do Grupo de Pesquisa ALFAVELA
[3] Alunas do curso de Pedagogia do Instituto de Educação de Angra dos Reis – UFF
Inseridas no Grupo de pesquisa ALFAVELA participaram ativamente da tabulação dos dados e dos constantes diálogos realizados pelo grupo, sendo, portanto, vozes presentes nesse texto que é considerado uma elaboração coletiva.
[4] Texto “Por uma cartografia da ação: pequeno ensaio de método.” Disponível na página do LASTRO-UFRJ.

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