Rafael Caetano
É morador da Rocinha
Jornalista formado pela PUC-Rio
Mestrando do Departamento de Filosofia da PUC-Rio
Contato: caetanenado22@yahoo.com.br
RESUMO
O presente texto é fruto de algumas reflexões
sobre posts nas redes sociais que visam atacar os assim chamados “intelectuais
favelados” e também de ataques presenciados contra intelectuais favelados durante
o processo eleitoral de 2014. Os ataques partem tanto de classes tradicionais
ligadas a cultura como de moradores de favelas com objetivos políticos que
visam enfraquecer o espaço público como lugar da fala para torna-lo um lugar da
força. O texto é apenas um panorama da questão com algumas referências para
leitura didática sobre a problemática a pedido de alguns leitores e amigos que
se encontravam sem referências bibliográficas sobre a problemática dos
intelectuais de um ponto de vista da filosofia.
Assim o texto serve como guia de leituras futuras para o leitor sobre a
problemática dos intelectuais e como uma primeira tentativa de formular a
questão: O que é ser um intelectual favelado?
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“Estes são os que vieram da grande tribulação”
A
pergunta: o que é ser um intelectual favelado?
Poderia colocar o dispositivo de poder chamado de intelectualidade apresentado
sobre uma perspectiva diferenciada com a problemática contemporânea− pelo menos
para nós brasileiros− dos intelectuais favelados. Essa questão busca deslocar o
paradigma (modelo) de intelectualidade predominante na nossa cultura. Vale
relembrar que, hoje existem no Rio de Janeiro 513 favelas com aproximadamente
um milhão de moradores. Esses representam 18,8% da população da cidade. Entre esse
um milhão de moradores uma parcela, ainda mínima, participa daquilo que
chamaremos de debate sobre a cultura entendida num contexto amplo.
O que é
um paradigma? Um paradigma é antes de tudo um modelo ou se quisermos uma imagem
tal qual uma foto instantânea de uma determinada época que lhe serve como
modelo ou guia de julgamento sobre uma determinada questão. No nosso caso
trabalhamos com as imagens de intelectual construídas textualmente em
diferentes lugares e épocas. Essa imagem
de intelectual pode sim ser paralisada por nós nesse texto a fim de entendemos
o que é ser um intelectual em diferentes épocas, mas a própria imagem de
intelectual está em constante devir.
A
primeira imagem de intelectual surge na Rússia czarista pela pena de
escritores. O termo intelligentsia é um adjetivo latino usado primeiramente
pelo romancista russo Boborykin e mais tarde difundido pelo também romancista
russo Turgeneev. O termo teria indicado inicialmente um grupo social da Rússia
de então e mais tarde sendo traduzido por diversos idiomas para designar a
classe culta de certos países[1]. O
termo é usado em contextos políticos diferentes e visa separar determinado
grupo sociail dos demais pela relação que esses têm com a política de seus respectivos
países.
O termo
só terá sua oficialidade cerca de 40 anos depois na língua francesa com a
palavra intellectuals no famoso “manifesto
dos intelectuais” publicado em 1898 no diário “Aurore”. O texto é assinado por nomes como Zola, Proust e Le Brum
com o objetivo de conseguir a revisão do processo de Dreyfus. O oficial de
artilharia do exercito, Dreyfus, foi julgado e condenado por traição em um
processo de portas fechadas o que provocou a mobilização de parcela da
sociedade francesa.
É com
D’Alembert e seu “Essai sur les gens de letrres”
[2] (Ensaio
sobre os homens de letras) de 1753 que a imagem do intelectual aparece como
vanguarda de uma classe, no caso a burguesia francesa em acessão. Nesse texto o filosofo aparece como o novo
cínico na medida em que questiona os valores da sociedade de então como o
mecenato dos nobres e coloca os homens de letra como a parcela da burguesia
capaz de consolidar a hegemonia dessa classe na cultura.
É na
Inglaterra com Burke[3]
que teremos uma imagem do intelectual separado da burguesia. No seu texto “Reflexões sobre a revolução na França” de
1790 ele aponta para a separação necessária entre burguesia e intelectuais
devida o risco dos homens de letras se tornarem políticos para terem o
monopólio da opinião pública. Uma vez no poder a burguesia deve, segundo Burke,
controlar e moderar essa ala que é a mais radical e avançada para dar garantias
ao desenvolvimento gradual da economia.
A
separação entre intelectuais e burguesia é acentuada naquilo que a filosofia
marxista nos legou, mais precisamente em Gramsci[4] que
não ver a atividade humana sem intervenção intelectual o que retira dessa
classe suas pretensões de casta privilegiada e a colocar dentro de uma relação
de produção na qual os intelectuais são organizadores da cultura[5].
A
postura de confronto com a burguesia num sistema de produção capitalista é
aprofundada e revista por Walter Benjamin[6] ao
analisar o autor como produtor[7].
Ele escreve: “o lugar do intelectual na luta de classes só pode ser
determinado, ou melhor, escolhido em função de sua posição no processo
produtivo” [8]. Sendo o intelectual
inserido no processo de produção ele poderá viver, segundo Benjamin, o seguinte
conflito: abastecer um aparelho produtivo ou abastece-lo e modificá-lo.
Modificar o aparelho produtivo do qual o intelectual faz parte significaria a
derrubada de barreiras e a superação das contradições que acorrentam o trabalho
da chamada inteligência.
O
intelectual é, assim, um especialista numa linguagem sobre um campo restrito
dentro de uma lógica de produção, aquilo que Deleuze num dialogo profundo com
Foucault [9]
chamou de relações teórico-práticas parciais e fragmentárias. Essa hipótese explicaria
a intensa especialização e subdivisão das ciências e seus campos de pesquisa
nas universidades. Essas relações, segundo Foucault formam um dispositivo de
dominação. Um dispositivo é como uma máquina fotográfica que busca capturar um
acontecimento e paralisá-lo. Mas essa paralização é, antes, dominação por meio
de um discurso positivo acerca dos intelectuais como, por exemplo, o discurso
que fala da autonomia do intelectual como se esse fosse um ser-a-parte do mundo[10].
O intelectual não é assim um agente da consciência e do discurso de uma classe
ou massa sem voz, mas objeto e instrumento numa ordem do saber sobre a verdade,
a consciência e a cultura.
Nesse
momento gostaria de chamar a atenção do leitor para a seguinte questão: em
todos os discursos apresentados a cima sobre o problema do intelectual, esse é
antes na ordem dos discursos citados nesse texto um portador das inquietações
de uma cultura[11], classe ou massa sem voz[12]. Essa
concepção do intelectual como portador estaria na genealogia da formação do intelectual brasileiro na medida em que essa formação excluiu ou simplesmente
esqueceu aqueles sem voz no meio da grande massa, os filhos do Brasil que
passaram por grandes tribulações para poderem ter a possibilidade da fala sobre
a cultura. Como essa fala da favela pode deslocar o paradigma da intelectualidade
para a necessidade de criarmos uma imagem de intelectual que seja já uma luta
localizada desses contra a fala sobre a cultura predominante? Como colocar a
problemática dos intelectuais numa perspectiva que seja fala das existências
que resistem na e com a favela?
Bibliografia
WALTER, Benjamin. Obras escolhidas, volume 1.
8 ed Brasília: Editora Brasiliense . 2012.
FOUCAULT,
Michel. Os intelectuais e o poder in Microfísica do poder. 27ed.São Paulo:
Graal, 2013.
SOUZA, Antônio Cândido de Mello. O portador in
Posfácio de FRIEDRICH Nietzsche, Obras incompletas. 3 Ed. São Paulo: Abril
Cultural, 1983
GRAMSCI,
Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1985.
BURKE,
Edmund. Reflexões sobre a revolução na
França. São Paulo: Edipro, 2002.
DIDEROT,
Dennis. Verbetes políticos da enciclopédia. São Paulo: UNESP, 2011.
PRESLER, Gunter Karl. Benjamin, Brasil: a
recepção de Walter Benjamin no Brasil, de 1960 a 2005, um estudo sobre a
formação da intelectualidade brasileira. São Paulo: AnnaBlume, 2006.
BOBBIO,
Norberto. Dicionário de politica. Brasília: Editora Universidade de Brasília.
13 Ed, 2010.
[1] BOBBIO, Norberto. Dicionário de politica. Brasília: Editora
Universidade de Brasília. 13 Ed, 2010. p 637.
[2] DIDEROT, Dennis. Verbetes políticos da enciclopédia. São Paulo:
UNESP, 2011.
[3] BURKE, Edmund. Reflexões
sobre a revolução na França. São Paulo: Edipro, 2002.
[4] GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.
[5] GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985.p 119.
[6] WALTER, Benjamin. Obras escolhidas, volume 1. 8 ed Brasília: Editora
Brasiliense . 2012.
[7] WALTER, Benjamin. O autor como produtor in Obras escolhidas, volume
1. 8 ed Brasília: Editora Brasiliense . 2012.
p 139.
[8] WALTER, Benjamin. O autor como produtor in Obras escolhidas, volume
1. 8 ed Brasília: Editora Brasiliense . 2012 p137.
[9] FOUCAULT, Michel. Os intelectuais e o poder in Microfísica do poder.
27ed.São Paulo: Graal, 2013. p. 129
[10] FOUCAULT, Michel. Os
intelectuais e o poder in Microfísica do poder. 27ed.São Paulo: Graal, 2013.
p.131
[11] SOUZA, Antônio Cândido de Mello. O portador in Posfácio de
FRIEDRICH Nietzsche, Obras incompletas. 3 Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983
[12] PRESLER, Gunter Karl. Benjamin, Brasil: a recepção de Walter
Benjamin no Brasil, de 1960 a 2005, um estudo sobre a formação da
intelectualidade brasileira. São Paulo: AnnaBlume, 2006.