Heitor Collet
Professor da Escola Técnica Estadual
de Teatro Martins Pena
Professor da Educação Básica da Rede
Municipal de Duque de Caxias
Integrante do Grupo de Pesquisa
ALFAVELA-UFF/CNPq
Doutorando no Programa de Pós-graduação
em Educação da Universidade Federal Fluminense - UFF
Resumo:
O presente artigo trata de
experiências ocorridas durante os anos de 2006 e 2009 no cotidiano do Ciep
Brizolão 120 Municipalizado Monteiro Lobato, localizado no município de Duque
de Caxias, Baixada Fluminense, Estado do Rio de Janeiro. Nele, faço uma breve
análise e debato questões que dialogam com o universo dos campos do
"currículo" e da "avaliação", através de reflexões sobre
conceitos de "tradição", "indisciplina",
"exclusão", "violência", "sociabilização" e
"desempenho". Para tanto, com o objetivo de "materializar" a discussão, trago
também algumas narrativas de períodos em que convivi com o menino Felipe,
apelidado pelos colegas da escola pelo nome de Tabu e tido por alguns professores e funcionários do Ciep 120 como
um aluno "agressivo" e "indisciplinado". A narrativa
central do presente artigo se dá em torno de uma experiência de trabalho no
campo do "cinema" que se tornou possível através do Programa de
Educação Ambiental (PEA), desenvolvido na Rede Municipal de Ensino de Duque de
Caxias em 2008, no qual o Ciep 120 foi contemplado através da formação de um
pequeno grupo de trabalho do qual fizemos parte, dentre outros estudantes e
profissionais, o menino Tabu e eu. Para pensar na figura do Tabu e na sua
relação com a escola, dentre outras questões, aponto para duas que entendo
merecerem atenção especial. A primeira trata da questão que se pergunta em que
"princípios" estão enraizados os modos
de fazer na escola que, por serem naturalmente limitados, conduzem alguns
alunos a um processo cruel que chamo de autoexclusão.
A segunda trata da questão que pergunta em que "bases" estão
enraizados os modos de fazer na
escola que focam a avaliação na perspectiva de compreensão dos conteúdos escolares e das especialidades do professor, e não no
processo de construção do conhecimento do aluno com seu próprio saber. Para
balizar as reflexões, numa breve revisão teórica, são chamados ao debate Eric
Hobsbawn e sua ideias acerca do conceito de "tradição inventada",
Antonio Gramsci e seus pensamentos acerca da "consciência da criança"
e do "consenso social", Silvio Gallo e o conceito de
"microfascismo", além de Michael Apple e seus pensamentos sobre
"currículos idealizados". O objetivo do presente trabalho é provocar
uma discussão sobre a ideia de que talvez não seria incoerente pensar que as
escolas, equilibradas sobre uma perspectiva mais universal e menos especial,
talvez pudessem manter em seu aparelho alunos que frequentemente evadem por não
entenderem este espaço como um espaço seu.
Palavras-chaves: violência; indisciplina;
exclusão; sociabilidade.
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O tabu TABU[1]
Tradição, sociabilização e desempenho
Aula de teatro na escola é
algo complicado. Na maioria das vezes, as salas não são organizadas ou não
estão disponíveis para receber uma aula onde movimentar o corpo – e não
descansá-lo – seja uma premissa. Ainda assim, investi na idéia de que seria possível
trabalhar com teatro na escola partindo do fato de que: 1) a escola possuía uma
sala sem nenhuma mesa e cadeira (o que, de certa forma, já era um grande avanço
para o desenvolvimento daquele tipo de dinâmica) e 2) de que eu era um
professor especializado, logo,
qualquer dificuldade espaçotemporal
seria sanada com um pouco de criatividade e vontade.
Em tempo: fiz questão de
demarcar o termo especializado acima para
denunciar o quão me parece ser sem sentido hoje a tradição inventada (Hobsbawn,
1997) de se organizar os conteúdos e as práticas
escolares em um ensino que se diz fundamental
a partir da perspectiva dos especialismos
e me explico. Não nego que, com certa frequência, os alunos possam se deparar
com questões que mergulham na densidade dos especialismos
e que as necessidades que surgem a partir de suas curiosidades possam ser
supridas através de uma conversa com uma pessoa que, por obrigação, encontra-se
na escola. É de se esperar, por exemplo, que – sendo especializado na área – um professor de Língua Portuguesa possa
colaborar com um aluno que quer mandar uma carta bem escrita para a namorada,
ou que uma professora de Ciências seja capaz de orientar os alunos quanto questões
relacionadas à reciclagem do lixo, ou, ainda, que um professor de Língua
Estrangeira possa ajudar a traduzir o manual de instalação do aparelho de DVD
da escola que se encontra em língua inglesa, porque os alunos e alunas querem
ver um filme e o aparelho não funciona.
Contudo, a meu ver, seja qual
for o quadro, nenhuma dessas ações deveria estar não-articulada com um fim que
seja compreendido ou, pelo menos, escolhido pelo próprio aluno. Dessa maneira,
provavelmente, este viria a se entender como dono do conhecimento que produz e
não como um mero reprodutor de uma ação
que o professor especialista –
guardião do saber disciplinar – o
mandou fazer. A ação da coação dentro do espaço escolar – e, mais
especificamente, aquela que é produzida pelo professor sobre o aluno – acaba por trazer sentidos à escola que se
concretizam a partir de duas práticas que, segundo Apple (1982), estariam
transfiguradas na escola sob a égide de duas tradições inventadas: uma focada na idéia de sociabilização e outra na idéia de eficiência técnica e desempenho (que a partir de agora chamarei apenas de eficiência técnica). Para mim, essas
duas idéias servem perfeitamente para pensarmos a idéia de função social da escola e, portanto, na tentativa de esclarecer
minhas reflexões, avanço a partir de uma pequena construção metafórica.
Em regra, em qualquer jogo de
quebra-cabeças, encontramos peças que já têm suas funções predeterminadas no
conjunto da imagem que será construída. Cada peça tem uma forma específica e é
exatamente essa forma que permite que ela possa se encaixar no coletivo do jogo. No momento em que se molda a forma da
peça, já está decidido que ela tem apenas que aguardar que a linha de montagem lhe convoque para que,
junto de seus pares, possa ocupar o seu devido
lugar, o lugar que fôra predeterminado para ela estar e permanecer.
Pergunto: na escola, quando consideramos a tradição de sociabilizar, estaríamos talvez afirmando que lá é o espaço aonde o
aluno vai se encaixar, aprender a se adequar a certas normas sociais, segundo uma ordem de uma determinada
linha de montagem? Ele não seguirá processos
padronizados que, consequentemente, regularão seus seus processos de
vivência? Não padronizará suas expectativas de experiência, suas possíveis formas
de ver o mundo, a construção dos seus valores, etc? E, paralelamente,
questiono: quando nos pautamos na tradição
da eficiência técnica, afirmamos que
a escola é necessariamente o lugar onde se ensina algo que deve se fazer?
Vejamos. A primeira idéia
traz com ela o sentido de que a escola é lugar onde se ensina a saber como estar no mundo, onde se
ensina que todos devem ter um determinado padrão de conduta. A segunda traz com
ela o sentido de que a escola é lugar onde se ensina a saber fazer algo, onde se
ensina que há coisas que todos devem saber fazer. Ambas são impressas
diretamente sobre leituras que parecem consagrar os conceitos de natureza e cultura como se fossem sinônimos. E natureza e cultura não
são sinônimos, são dois conceitos que tensionam entre si. Portanto, se
consideramos que cultura seria a ação
transformadora do ser humano sobre a natureza, em que sentido (ou com qual
objetivo) empregamos, por exemplo, a expressão natureza da cultura? Essa expressão poderia nos levar a pensar que
cultura, as culturas ou qualquer cultura teria uma só natureza. Não seria essa
uma afirmação que traria uma forma inculcada de pensar o mundo a partir de um
conceito de cultura que aponta para perspectiva de que a cultura dos seres é
uma só? E, partindo deste princípio, não seria incoerente pensar que, se a
cultura é uma só, todas as construções maniqueístas, bem como os juízos ou
qualquer ordem de valor seriam tratados como absolutos e não como uma forma de
se expressar no mundo.
Coagir é uma prática cultural. E quando essa prática surge dialogando
com as tradições da sociabilidade e
da eficiência técnica, podemos
problematizar ao pensar a escola das classes populares como, primeiro, uma
instituição de controle social, e segundo,
como produtora de regulações que servem a uma certa reprodução cultural legitimada pela sociedade (ou por parte dela).
Se retomarmos a metáfora do jogo de quebra-cabeças e ao pensarmos junto das
tradições apontadas acima, poderíamos talvez considerar que a questão não está
no fato da escola ser ou não ser lugar de se ensinar a ser (socialibizar), ou se ela é ou não é
lugar de se ensinar a fazer (eficiência
técnica). A escola é uma coisa e
outra. Ainda que quiséssemos, acredito, seria impossível desmembrar uma função
da outra, porque, a mim, parece que não são desmembráveis. Contudo,
independente de como se dá o papel da escola, talvez fosse mais interessante
perguntar: como se dão as práticas que estabelecem qual é a ordem da linha de montagem de uma suposta idéia
de mundo no mundo de cada escola? Que
operações vinculadas a essas duas idéias de tradição na escola trazem consigo
as marcas da opressão, as armas da repressão, as falas reverberadas do autoritarismo
que operam e servem como meios de perpetuação de lugares de poder, de
reprodução de idéias hegemônicas e de manutenção de sistemas de relação que
investem na exploração do ser humano sobre o ser humano e justificam as
desigualdades como se fosse algo da natureza
da cultura?
Na prática, quando investem
na tradição da eficiência técnica (e
apenas nela ficam), os atores que vivem a escola parecem ignorar que a mesma
está inserida em um contexto micro
que traz, por exemplo, necessidades imediatas dos moradores do bairro, seus
códigos de convivência, suas redes de relação, suas práticas culturais, seus
valores, suas expectativas, etc. Em contrapartida, quando investem na tradição
da sociabilização (e nela estagnam),
os mesmos atores parecem ignorar o contexto macro,
desvinculando possíveis ações de questões que estão organizadas segundo um
sistema maior. A meu ver, uma idéia não exclui a outra, porém, na hora de
organizar o espaçotempo escolar,
parece que não nos damos conta dessa tensão. Portanto, não é de se espantar
que, impressos em uma complexa conjuntura cultural e no seu desenrolar,
determinados valores ou informações transformem-se, por
consequência, em valores sociais e conteúdos fundamentais. E, talvez,
adiante, não seria incoerente pensar que esses mesmos valores sociais e conteúdos
fundamentais poderiam se transformar também nos dogmas inquestionáveis de uma religião qualquer e nas verdades absolutas de uma ciência
possível.
O
"certo" se torna "verdadeiro" na consciência da criança.
Mas a consciência da criança não é algo individual (e muito menos
individualizado), é o reflexo da fração de sociedade civil da qual participa,
das relações sociais tais como elas se concentram na família, na vizinhança, na
aldeia, etc. A consciência individual da maioria das crianças reflete relações
civis e culturais diversas e antagônicas às que são refletidas pelos programas
escolares: o "certo" de uma cultura evoluída torna-se
"verdadeiro" nos quadros de uma cultura fossilizada e anacrônica...
(Gramsci, 1995. Pág 131)
Indisciplina e autoexclusão
A primeira vez que tive um problema com o menino Tabu foi em uma
aula de teatro. Diferente da maioria
das aulas, a aula de teatro faz com que seus praticantes mexam muito com o
corpo. Mais do que isso: frequentemente os coloca em estado de evidência. E essa
dinâmica gerava alguns efeitos que eu não poderia ignorar no processo da aula.
Eu tinha que administrar e regular os
comentários que surgiam através dos alunos referentes ao que acontecia durante
os exercícios. Eram Palmas, risadas, deboches. Muito feio! Sai daí, moleque! Isso é uma bichona! Alguns alunos
adoravam estar em evidência, era um verdadeiro prazer, pediam para ir várias
vezes à frente no nosso proscênio improvisado com uma fita crepe que passava no
chão e dividia a sala multimeios em palco
e platéia. Outros já ficavam
visivelmente desconfortáveis naquela situação. Não me recordo exatamente se o
Tabu ficava confortável ou desconfortável, mas me recordo da reação dele ao ser
criticado por uma colega no meio de uma cena. Ele esbravejou, enfureceu-se,
explodiu ao ponto de eu ter que terminar o exercício, pedir auxílio para que o
inspetor mandasse todos para a sala de aula e ficar apenas com ele para trocar
algumas palavras e tentar entender o que ocorreu. Eu perguntei o que tinha
acontecido e ele ficou em silêncio absoluto. Falei que ele tinha que conversar,
porque, ainda que ele tivesse razão, não poderia reagir daquela maneira
agressiva. Mais silêncio. Expliquei que as coisas não se resolvem na violência,
que acabaria que ele perderia a razão com uma reação agressiva daquela. Mais
silêncio. Ele se mantinha a todo o momento com a cabeça baixa e eu pedi que ele
levantasse o rosto e olhasse nos meus olhos. Ele olhou e eu perguntei: você
entendeu o que eu falei para você? Entendi,
professor. Isso vai se repetir? Não,
professor. Ok, pode ir para sua sala. Esse caso aconteceu quando ele estava
no sexto ano. Ele devia ter uns onze, doze anos. Fui professor do Tabu em todas
as séries que se seguiram após aquele sexto ano, portanto, pude acompanhá-lo
durante mais três anos na escola.
Quando o Tabu estava cursando
o sétimo ano, ele foi alocado na turma Setezerotrês,
que tinham três alunos que eram, digamos assim, meninos rebeldes: o Lulu, o Bê e o Dida. O Tabu, até então, era
considerado indisciplinado por alguns professores. Outros professores achavam
que ele tinha apenas um temperamento difícil. Era um aluno que, vez por outra,
trazia algum tipo de problema.
Contudo, como o Lulu, o Bê e o Dida traziam muito mais problemas, de certa forma, o Tabu acabou tendo anulada sua imagem
de indisciplinado durante aquele período. Nesse ano, por exemplo, o Tabu frequentemente
fazia trabalhos com o Eduardo (que era considerado um excelente aluno, disciplinado,
comprometido) e estava muito participativo nas aulas (no sentido de entregar
trabalhos, tirar dúvidas e não no sentido da bagunça, pois, no fim das contas,
bagunçar também é uma forma ativa de participar. Ou não é?) E, decorreu com
tanta tranquilidade aquele ano, que, no fim, ele foi muito elogiado pelos
professores, que comentavam a todo momento como ele tinha melhorado e como
estava comprometido, interessado, etc.
Acontece que, no ano
seguinte, já sem o Lulu, o Bê e o Dida na escola, o Tabu foi alocado em uma
turma que juntou com ele mais cinco colegas: os dois mais indisciplinados da antiga turma Setezeroum
e os três mais indisciplinados da
antiga turma Setezerodois. Apesar de
causar transtornos, esses alunos indisciplinados
não podiam ser comparados com o Lulu, o Bê e o Dida que, na época, já haviam
sido convidados a se retirar da
escola. Os três últimos, com suas ações, interferiam profundamente nos lugares
de poder da escola. Os cinco primeiros, apesar de causar problemas, não interferiam nas lugares de poder estabelecidos e, logicamente,
não configuravam uma ameaça para desestabilizar o sistema de regulações
consolidado até então.
Começou aí a se configurar um
outro quadro que, num grande esforço de síntese, a meu ver, conduziria o Tabu a
dois caminhos possíveis: 1) ou a um processo de disciplinarização que,
extremamente rígido e desgastante, desaguaria inevitavelmente no seu
silenciamento; 2) ou a um processo sorrateiro de controle que, mais tarde,
justificaria o convite para que ele
também se retirasse da escola como o Lulu, o Bê e o Dida. Não sendo impresso
sobre ele qualquer necessidade especial, o estigma
da diferença, poderíamos dizer
que, na segunda hipótese, ele acabaria por passar por um processo camuflante que
eu chamaria hoje de autoexclusão. E
isso porque, sendo extremamente crítico, já havia convivido com e experenciado
uma espécie de rebeldia bem diferente
daquela com a qual estava convivendo naquele momento através dos seus novos
colegas de turma. Em resumo: o Tabu sabia que o tipo de indisciplina produzida
pelo grupo dos cinco era pouco perto da indisciplina que, como espectador, ele
observou ser produzida por Lulu, Bê e Dida.
Seleção e microfascismo
Cursando pela primeira vez o
oitavo ano, o Tabu foi convidado a participar – junto de mais cinco colegas (o Daniel
e o Eduardo, da turma Oitozeroum, e o
Vítor, a Daiana e a Verônica, da turma Oitozerodois),
dois professores (o professor de Ciências Anderson e eu), duas funcionárias (a
chefe do serviços gerais Dona Bianca e a inspetora Lize) e uma pedagoga (a Tamires)
– de um grupo de trabalho do projeto PEA (Programa de Educação Ambiental),
promovido por uma produtora de cinema em parceria com a Secretaria de Educação
do Município de Duque de Caxias. Nesse projeto, dez escolas produziriam
pequenos filmes de aproximadamente cinco minutos que tratassem de questões
ambientais em geral e, mais especificamente, de como elas se relacionavam com a
escola, com o bairro, etc.
Os seis alunos foram
selecionados a partir de critérios
como rendimento escolar, comprometimento com as atividades e comportamento
adequado durante as aulas. Se esses critérios
fossem realmente critérios, o Tabu muito provavelmente não estaria no grupo de
alunos selecionados, pois, se a considerar os parâmetros, seu rendimento, assim
como seu comprometimento, eram, no mínimo, questionáveis. Seu comportamento não
parecia ser adequado ou, pelo menos, não estava semelhante ao comportamento
adequado dos outros colegas selecionados. E me pergunto hoje: incumbidos de
selecionar os alunos, o que fez então com que o professor Anderson, a pedagoga
Tamires e eu chegássemos ao consenso de que o Tabu era um bom nome para
ingressar naquele projeto?
O PEA era um exercício
bastante interessante. Em primeiro lugar, em equipe, definimos que o roteiro do
filme seria organizado a partir do tema Calombé,
que é um rio extremamente poluído que corta o bairro da escola. Em segundo
lugar, definimos o que faríamos em cada encontro, quem seriam os responsáveis
pelo quê, qual seria a função de cada um em cada encontro, quais seriam as
responsabilidades, etc. Era uma forma diferente de trabalhar e de aprenderensinar. Parecia a mim que a
relação aprendizadoensino distribuía-se
de maneira mais horizontal. Existia
um professor que direcionava o processo, o professor Vieira, que era ligado à
produtora e que nos passava as informações técnicas necessárias para iniciarmos
o processo de roteirização e filmagem. Contudo, a condução do trabalho, a
organização do pessoal e, principalmente, as decisões acerca das filmagens eram
tomadas coletivamente, sem peso maior para os professores ou para a pedagoga.
Tive a impressão de que o Vieira fazia questão de fortalecer essa lógica:
tentar equalizar a distribuição do poder no que dizia respeito às decisões e às
ações, naturalmente, conduzindo os alunos a construir seus saberes através de um
princípio com o qual eles não estavam muito acostumados a lidar: o princípio da
autonomia.
A partir de então, posso
dizer que, deparei-me com duas surpresas. Uma, admito, já intuída, no que se
refere especificamente a relação do Tabu com o seu processo de construção de saber conduzido a partir
de uma perspectiva mais autônoma e a
outra que, como se diz no popular, puxou
o meu tapete, quando me mostrou que três daqueles cinco alunos considerados
excelentes dentro dos padrões esperados
pela escola eram absolutamente incapazes de dar um passo à frente, assumir as
rédeas do projeto, tomar as decisões e, simplesmente, agir, instrumentalizados
e apresentados aos caminhos necessários para que a curiosidade – que eu entendo
como sendo o pontapé inicial para a construção do saber – naturalmente fizesse
o seu papel e os levasse a uma possível emancipação.
Em um dos encontros ficou estabelecido que a Daiana, o Vinicius e o Eduardo
seriam os responsáveis por pesquisar e definir quem seriam os entrevistados do
bairro no filme a partir de alguns critérios, como, por exemplo, residir no
bairro há mais de vinte anos. Eles eram absolutamente capazes de realizar
aquela ação, afinal, eram eles que conheciam o bairro. Pois bem, a função ficou
claramente definida, o prazo ficou acertado, o próximo encontro estava marcado.
Na semana seguinte, no dia do encontro, perguntei se eles selecionaram os
entrevistados e eles disseram que não porque estavam esperando o professor
Vieira para dizer quem seriam os entrevistados. Ora, eu participei da reunião
que definiu as ações, sabia que o professor Vieira não diria para eles quem
seriam os entrevistados, isso era uma função dos três. Para mim ficou claro.
Contudo, a pedagoga Tamires chamou minha atenção perguntando por que você não ficou "em cima"
deles, por que não cobrou? E por sorte (ou por susto), a minha resposta
saiu meio que no automático: porque
não ficou estabelecida essa função para mim. Mas você é professor deles! E você é a pedagoga da escola, porque
você não cobrou deles também? Essa discussão parecia absolutamente sem sentido
para mim. Eu não tinha que cobrar nada deles antes do dia estabelecido para que
trouxessem aquela pesquisa. Eles não me procuraram para pedir ajuda, nem para
dizer que estavam com dificuldades, se tivessem feito isso, com certeza, iria
me prontificar imediatamente e colaborar com a maior atenção possível. Mas não
foi o caso, ou seja, no meu entendimento estava tudo correndo sem maiores problemas.
E agora? O que dizer daqueles
alunos que nós professores e pedagoga selecionamos considerando seus
respectivos rendimentos, comportamentos e comprometimentos? Eles são descomprometidos? Nessa hipótese, de quem seria a responsabilidade
pelo não cumprimento das obrigações? Quem seria avaliado neste trabalho? Nós, os profissionais da educação, ou os
estudantes selecionados? Ficaríamos só no eles
são descomprometidos ou admitiríamos que erramos porque aqueles alunos e
alunas, apesar de excelentes, não
eram sequer bons nomes para participar
daquele tipo de dinâmica? O que significava para cada um de nós um estudante
classificado como excelente? Tínhamos
certeza quase que absoluta de que aqueles estudantes corresponderiam, como explicar então o mau rendimento? E mais perguntas
surgiam. Vamos admitir que desenvolvemos um trabalho na escola a partir de modos de fazer que ignoram por completo ou
não valorizam ações de autonomia dos alunos e alunas, suas opções de escolha, seus
pensamentos e opiniões? Vamos admitir nossos microfascismos? O que vamos
fazer agora? Gallo (2005) remete-nos a uma importante reflexão quando dialoga
com Deleuze e Guattari e desenha o conceito de microfascismo a partir daquilo que identifica como esferas molar (macro) e molecular (micro).
No mesmo encontro, o equipamento
de filmagem foi disponibilizado para que pudéssemos mexer, desmexer, experimentar, etc. Foi surpreendente ver como, junto do
Daniel, o Tabu não largava os equipamentos, perguntava, montava, desmontava,
brincava. Brincava de aprender. E
também foi surpresa quando o Tabu, logo no encontro seguinte, ficou debochando
da minha cara porque eu não sabia montar o equipamento do microfone. E ele
sabia, tanto que o tomou de mim, montou e, não satisfeito, ensinou-me a montar.
Além de montar o equipamento do microfone, pude percebê-lo operando a
filmadora, discutindo a posição das pessoas no set de filmagem, ensinando os
colegas que não sabiam mexer na câmera, etc. Seria incoerente e ingênuo pensar
que poderíamos tirar uma conclusão sobre quem era o Tabu, única e exclusivamente, a partir da sua participação no
projeto do PEA? Eu penso que sim, afinal de contas, o Tabu comportava-se e
atuava daquela maneira durante aquele período que correspondia ao espaçotempo do projeto, junto de um
determinado grupo que definiu formas de trabalhar específicas. Mas, ainda
assim, creio, valeria perguntar ao professor Vieira: você acha que o Tabu é um
menino indisciplinado?
Conclusão lacerante
Ao todo, o projeto do filme
durou um mês e, ao fim deste mesmo ano, o Tabu ficou retido em sua série. Retornou
à escola no ano seguinte com um jeito bem mais agressivo. Parecia a mim que ele
estava magoado, que já tinha tomado sua decisão sobre como se relacionaria com
a escola a partir de então. Talvez, por acreditar que aquela agressividade toda
era uma forma de dizer que ele não estava satisfeito com aquela escola ou, pelo
menos, com a forma como ela estava lidando com ele, fui entrevistá-lo para
tentar entender o que se passava em sua cabeça, o que ele sentia, e, assim,
talvez, confirmar aquilo que minha intuição me dizia: que o Tabu queria
aprender, participar, estar naquele lugar trocando com colegas e professores,
mas de um jeito diferente, porque ele
era diferente. Contudo, minha agonia
e frustração foram imensas porque o Tabu não falava, ou, quando falava, parecia
dar uma resposta preparada, do tipo a
resposta que o professor quer ouvir.
Foi a partir daí também que
comecei a repensar a idéia que eu tinha de função
social da escola. Ao mesmo tempo em que entendia que o Tabu era diferente e precisava de uma atenção diferente, paradoxalmente, compreendia
também que existiam regras preestabelecidas naquele espaçotempo e que, de alguma forma, ele tinha que cumprir e se
enquadrar. Em muitos momentos, por exemplo, fiquei chateado porque, na exposição
de suas inquietações e vontades, ele insistentemente invadia as vontades de
outros colegas, não respeitando os desejos alheios, como, por exemplo, quando
organizamos processo para a eleição dos representantes de sala. Nesse dia, o
Tabu manteve um comportamento extremamente agressivo, coagindo seus colegas,
minimizando o processo de escolha do representante, dizendo isso não serve para nada, ainda que eu,
também insistentemente, explicasse que a escolha do representante de sala era
importante para eles (os estudantes) e, principalmente, para ele que
demonstrava com muita clareza sua insatisfação com determinadas regras da
escola. Mas de nada adiantou. Ele permaneceu minando a construção de uma ação
coletiva em prol de suas necessidades individuais e, assim, estabeleceu um
conflito sobre meu entendimento acerca da idéia de função social da escola.
Aquela postura do Tabu com os
colegas me incomodava. Entendi que ele estava passando por cima de um processo
de construção coletiva. Talvez, um dos papéis da escola em relação a sua "função
social" seja mostrar para a criança e para o jovem que ele não pode fazer
tudo o que quer na hora que quer, que há limites dentro de uma relação onde
duas ou mais pessoas apresentam vontades e que, em muitos momentos, é importante
saber negociar e lidar com as frustrações. Em contrapartida, também em muitos
momentos, a questão crucial é que não existe negociação em virtude da operação
e manutenção de lógicas hegemônicas que se personificam e atuam na figura de
supervisores, diretores, professores, inspetores, pais e, também, por mais
incoerente que possa parecer, na figura dos próprios estudantes. Fazer um fazer
diferente é, no máximo, usar uma sala
diferente, multi, sem cara, sem
identidade. Assim sendo, arrrisco ao afirmar que a diferença, em vez de produzir identidade na escola, em vez de ser aquilo, produz uma negação pura: na
escola só serve isso e se não é isso, não serve.
O Tabu foi convidado a se retirar da escola no
recesso de julho, no ano em que cursava
pela segunda vez o oitavo ano. E não mais retornou para se encontrar comigo
naquele espaçotempo. Talvez, em outra
escola ou nas ruas do bairro, eu tivesse a oportunidade de encontrá-lo
novamente, mas, ainda assim, provavelmente, o diálogo seria muito difícil,
afinal de contas, eu era o professor, um agente que personificava o lugar que não o aceitou, que não o aceitou
da forma como ele era. Eu podia pensar que o lugar não o entendera, mas acho
difícil que ele pensasse igual. Acredito que ele devia pensar que o lugar não o
aceitou ou que ele não era bom o
suficiente para estar ali, mas o lugar, por si só, não constrói as relações.
São as pessoas que nele se encontram que, com menos ou mais esforço, constroem suas
bases, seus princípios e regras de convivência. Será que ele compreenderia que,
durante o tempo em que estive na escola, fiz todo o esforço possível para
colaborar e tentar entendê-lo? E me pergunto: será que fiz todo o esforço
possível mesmo?
Pensando junto com Gramsci
(1995), entendo que um ato de coação é dirigido por uma espécie de mandado social revestido de uma série de
valores e sentidos que, a priori, em
uma instituição escolar, poderia ser entendido como um ato-consequência que estaria respaldado em um suposto consenso social. A questão polêmica que
eclode então – e ela eclode no cotidiano, nas relações conflituosas impressas
pelos atores da e na escola – seria a que afirma que esse consenso,
naturalmente, não é uma unanimidade e, pior, não está sequer justificado a
partir de uma prática que o ratifique como consenso
social. A meu ver, nas escolas das classes populares, essa cortina que
esconde o suposto consenso social é
ainda mais forte e nebulosa e toma forma e força nos microfascismos que empregamos diariamente.
Para pensar na figura do Tabu
e na sua relação com a escola, gostaria de apontar duas questões que, entendo,
merecem toda atenção. Em primeiro lugar, pergunto-me: em que bases ou em que
princípios estão enraizados os modos de
fazer na escola que, por serem naturalmente limitados, conduzem alguns
alunos a um processo cruel de autoexclusão?
Em seguida: em que bases ou princípios estão enraizados os modos de fazer na escola que focam a avaliação na perspectiva de
compreensão dos conteúdos escolares e
dos especialismos (e, por que não, dos
preciosismos) do professor, e não no
processo de construção do conhecimento do aluno com seu próprio saber? Talvez,
o aluno entre em um processo de autoexclusão
porque não se interessa pela forma como se constrói a relação entre a
distribuição de informações e a construção dos saberes na escola. Muito
provavelmente, a indisciplina que ele produz, em maior ou menor grau, é
proveniente de um não se interessar que,
acredito, não pode ser tratado como falta de compromisso. Falta de compromisso
é quando o aluno se interessa e, por outro motivo qualquer, deixa de cumprir
com uma obrigação que foi estabelecida por ele mesmo, ou, ainda, a falta de
compromisso pode estar relacionada com um trabalho coletivo – mas, neste caso, seria
outra questão, que estaria mais relacionada à ordem do saber ser e não à ordem do saber
fazer. Ninguém pode ter compromisso com algo que não valora. É um engano
pensar que o aluno cumpre determinadas obrigações porque é interessado. Cumpre as obrigações porque é obrigado. Tanto que o nome que damos as atividades são obrigações e não interesses. Acho que nunca ouvi alguém dizer para um aluno E aí? Já cumpriu com seus interesses de
hoje? E se ele não é ouvido, se não é chamado a participar, ele, obviamente
não interage e, consequentemente, pode começar a se interessar por outras
coisas que não são os conteúdos escolares.
Por vezes, inclusive, essas outras coisas
são aquelas que ou não podem ser feitas no espaço da escola ou não são
encaradas como coisas corretas e/ou boas de serem feitas. São os delitos.
E pergunto. Mas então terei
que fazer a vontade de cada aluno e planejar as atividades, exclusivamente, a
partir de suas vontades particulares? E respondo: não sei. Não afirmo que a
escola deveria imprimir suas práticas a partir exclusivamente do interesse
individual de cada aluno. Contudo, também não me parece coerente que a escola se
organize exclusivamente sob a perspectiva daquilo que, em uma ordem que se
entende coletiva, eles são obrigados a fazer. Não seria um absurdo
pensar que, equilibrada sobre uma perspectiva mais universal e menos especial,
talvez, alguns alunos como o Tabu pudessem manter-se na escola e transformá-la.
Mas, ao ser colocado contra a parede, a reação é de inconformismo. A sua agressividade,
portanto, poderia ser entendida, ambivalentemente, como um tiro contra a
multidão e um grito de socorro.
Bibliografia
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das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
[1] Trabalho apresentado em 2012, no IV Congresso "Diálogos sobre
Diálogos", na Universidade Federal Fluminense.
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