Fábio Campelo
Professor de História da
Rede Municipal de Angra dos Reis e da Rede Estadual no Rio de Janeiro
Pós-Graduado pela UFF em
Diversidade Cultural
Militante no movimento
sindical - SEPE/RJ
Email para contato:
campelo_teixeira@hotmail.com
Há algum tempo a revista
Veja publicou uma reportagem criticando a instituição de cotas para as
universidades federais, favorecendo estudantes egressos da rede pública de
ensino. O principal argumento defendido pela reportagem é que, ao aceitar
estudantes cotistas na universidade, o mérito deixaria de ser o elemento
preponderante para se definir o acesso ao nível superior, uma vez que as cotas
permitiriam que estudantes não qualificados frequentassem os cursos
universitários. Esse argumento é, na melhor das hipóteses, de um elitismo
excludente, o que é inadmissível em uma sociedade que se pretende justa e
plural tal como a brasileira. Aliás, desejo este expresso no texto
constitucional em seu artigo 3º, o qual reproduzo abaixo:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais
da República Federativa do Brasil:
IV - promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação.
Como fica bem claro,
qualquer instrumento legal que tenha por objetivo universalizar o acesso aos
meios de ascensão social, dirimindo injustiças históricas perpetradas contra
indivíduos de grupos excluídos dentro da sociedade (como é o caso das ações afirmativas),
está de acordo com o texto constitucional e, portanto, as discussões sobre a
legalidade ou não das cotas é inútil. Tendo isso em mente, os detratores da
política de cota começaram então a embasar seus ataques em um aspecto
extremamente subjetivo e pernicioso: a questão do mérito.
Imaginemos, por um breve e
mágico momento, que a qualidade do ensino das escolas públicas atinja o nível
de excelência que consideramos ideal e que não exista mais diferença
perceptível para o ensino oferecido pelas melhores escolas privadas. Ainda assim
isso não seria suficiente para acabar com a vantagem injusta que os filhos da
elite possuem na competição pelas vagas oferecidas nas melhores instituições
públicas de ensino superior, pois a riqueza permite que estes possam se dedicar
exclusivamente aos estudos além de lhes conferir acesso a um arcabouço cultural
que está além do alcance dos egressos das classes populares. Que fique bem
claro: ao afirmar isso, não estou reforçando o argumento igualmente elitista e
excludente que as classes populares “não tem cultura”, estou simplesmente
constatando o fato de que as universidades apenas valorizam um determinado tipo
de bagagem cultural a qual as elites têm mais facilidade de fazer uso.
Cito um exemplo. Por mais
que os egressos das classes populares estudem língua estrangeira na escola
(mesmo que seja nessa escola ideal que citamos acima), eles jamais terão a
mesma desenvoltura com o idioma que um filho das elites, cuja situação
socioeconômica lhe permite, caso deseje, não só complementar sua formação em
escolas de idiomas como também vivenciar experiências de imersão através de
programas de intercâmbio. Nessa perspectiva, ao afirmar que os alunos cotistas
não têm mérito, assume-se que o mérito é uma questão exclusivamente de poder
aquisitivo, pois quanto mais dinheiro, maior o mérito, o que torna mais fácil
ao aluno ser aprovado nos exames de seleção.
Além disso, uma rápida
análise dos dados disponibilizados pelas universidades sobre a vida acadêmica
dos alunos cotistas faz com que qualquer argumento que se baseie na sua falta
de mérito caia por terra completamente pois, de acordo com o acompanhamento feito
pelas universidades que adotaram o sistema de cotas para seus exames de
admissão (e conforme divulgado pela reportagem da Revista Isto é de 05/04/2013)
os alunos cotistas apresentam rendimento igual ou superior ao dos alunos
não-cotistas, além de terem índices de evasão menores. Reproduzo a seguir um
dos trechos da reportagem:
“Segundo dados do Sistema de Seleção Unificada, a nota de corte
para os candidatos convencionais a vagas de medicina nas federais foi de 787,56
pontos. Para os cotistas, foi de 761,67 pontos. A diferença entre eles,
portanto, ficou próxima de 3%. ISTOÉ entrevistou educadores e todos disseram
que essa distância é mais do que razoável. Na verdade, é quase nada.”
Mas, se as ações
afirmativas são amparadas pelo texto constitucional e os dados contradizem os
argumentos dos que são contrários as cotas, por que eles continuam a ter força
junto à opinião pública? Isso ocorre porque o discurso questionador do sistema
de cotas, bem como o mérito dos alunos cotistas, está firmemente ancorado em
três aspectos distintos de nossa sociedade, porém complementares entre si.
Primeiro, pelo receio das
elites historicamente favorecidas de perderem seus privilégios. Se analisarmos
friamente, o sistema de cotas sempre existiu nas universidades públicas
brasileiras e ele era de 90%, ou seja, 90% das vagas eram destinadas aos filhos
das elites. De acordo com essa concepção elitista da educação, estuda medicina
o filho do médico. Os filhos das classes populares devem, quando muito, cursar
as instituições privadas, notadamente inferiores, e com uma formação mais
voltada para o “mundo do trabalho” e, portanto, mais adequadas à sua realidade.
As cotas abrem a possibilidade do fim dessa hegemonia e isso, mais do que
qualquer outra coisa, apavora os donos do poder.
Em segundo lugar, e
dialogando diretamente com o primeiro aspecto, está a crença de que as camadas
populares devem sempre ocupar uma posição de subalternidade em nosso estrato
social. Historicamente, na visão das elites brasileiras, a distinção entre “pobre”
e “inferior” nunca foi muito clara, sendo que essa elite sempre enxergou o
grande contingente de desvalidos como seu exército servil pessoal, embasando e
justificando essa crença no discurso quase medieval da ordem natural do mundo
e, o que é mais trágico, graças ao peso dos meios de comunicação a seu serviço,
essa elite conseguiu introjetar essa visão dentro do imaginário das próprias
classes populares que, em grande parte, passam a se enxergar sob a mesma ótica
de subalternidade.
O terceiro aspecto trata exatamente da criação
desse discurso de subalternidade que, em última análise, gestou a tradição
conservadora do pensamento político brasileiro, que faz com que os estratos
explorados da população se irmanem mais com aqueles que os exploram do que com
aqueles igualmente explorados, sob uma falsa esperança de, um dia, conseguirem
ser alicerçados aos estratos sociais superiores.
Apesar de todo o discurso
político que insistentemente repete que a educação é prioridade, a verdade é
que as políticas públicas de educação voltadas para as classes populares primam
pela adoção de práticas e normas que reforçam o aspecto reprodutor da escola e
esvaziam seu aspecto crítico e libertário. Cria-se assim, geração após geração,
ou legiões de pessoas conformistas, cínicas e sem perspectiva de futuro,
satisfeitas em se manter representando os papeis que lhes foram determinados
pelas oligarquias que historicamente governam esse país ou pessoas furiosas e
revoltadas, que se enxergam em um mundo hostil, reagindo a ele com igual
hostilidade, o que ajuda a entender, por exemplo, o crescente número de casos
de violência nas escolas.
Esse assunto é complexo
demais para se esgotar em um curto artigo de duas páginas e, é claro, apenas instituir
cotas nas universidades públicas não é suficiente para as graves distorções
socioeconômicas e políticas. No entanto, as cotas são uma medida fundamental
para começar a garantir às legiões de excluídos de nossa sociedade, o mínimo de
acesso aos instrumentos de ascensão social, fundamentais para superar séculos
de exclusão e de subalternidade e, dessa forma, começar a concretizar os
objetivos constitucionais de nossa nação.
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