segunda-feira, 1 de setembro de 2014

QUAL É O VALOR DO MÉRITO?


Fábio Campelo

Professor de História da Rede Municipal de Angra dos Reis e da Rede Estadual no Rio de Janeiro
Pós-Graduado pela UFF em Diversidade Cultural
Militante no movimento sindical - SEPE/RJ
Email para contato: 
campelo_teixeira@hotmail.com


Há algum tempo a revista Veja publicou uma reportagem criticando a instituição de cotas para as universidades federais, favorecendo estudantes egressos da rede pública de ensino. O principal argumento defendido pela reportagem é que, ao aceitar estudantes cotistas na universidade, o mérito deixaria de ser o elemento preponderante para se definir o acesso ao nível superior, uma vez que as cotas permitiriam que estudantes não qualificados frequentassem os cursos universitários. Esse argumento é, na melhor das hipóteses, de um elitismo excludente, o que é inadmissível em uma sociedade que se pretende justa e plural tal como a brasileira. Aliás, desejo este expresso no texto constitucional em seu artigo 3º, o qual reproduzo abaixo:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Como fica bem claro, qualquer instrumento legal que tenha por objetivo universalizar o acesso aos meios de ascensão social, dirimindo injustiças históricas perpetradas contra indivíduos de grupos excluídos dentro da sociedade (como é o caso das ações afirmativas), está de acordo com o texto constitucional e, portanto, as discussões sobre a legalidade ou não das cotas é inútil. Tendo isso em mente, os detratores da política de cota começaram então a embasar seus ataques em um aspecto extremamente subjetivo e pernicioso: a questão do mérito.

Imaginemos, por um breve e mágico momento, que a qualidade do ensino das escolas públicas atinja o nível de excelência que consideramos ideal e que não exista mais diferença perceptível para o ensino oferecido pelas melhores escolas privadas. Ainda assim isso não seria suficiente para acabar com a vantagem injusta que os filhos da elite possuem na competição pelas vagas oferecidas nas melhores instituições públicas de ensino superior, pois a riqueza permite que estes possam se dedicar exclusivamente aos estudos além de lhes conferir acesso a um arcabouço cultural que está além do alcance dos egressos das classes populares. Que fique bem claro: ao afirmar isso, não estou reforçando o argumento igualmente elitista e excludente que as classes populares “não tem cultura”, estou simplesmente constatando o fato de que as universidades apenas valorizam um determinado tipo de bagagem cultural a qual as elites têm mais facilidade de fazer uso.

Cito um exemplo. Por mais que os egressos das classes populares estudem língua estrangeira na escola (mesmo que seja nessa escola ideal que citamos acima), eles jamais terão a mesma desenvoltura com o idioma que um filho das elites, cuja situação socioeconômica lhe permite, caso deseje, não só complementar sua formação em escolas de idiomas como também vivenciar experiências de imersão através de programas de intercâmbio. Nessa perspectiva, ao afirmar que os alunos cotistas não têm mérito, assume-se que o mérito é uma questão exclusivamente de poder aquisitivo, pois quanto mais dinheiro, maior o mérito, o que torna mais fácil ao aluno ser aprovado nos exames de seleção.

Além disso, uma rápida análise dos dados disponibilizados pelas universidades sobre a vida acadêmica dos alunos cotistas faz com que qualquer argumento que se baseie na sua falta de mérito caia por terra completamente pois, de acordo com o acompanhamento feito pelas universidades que adotaram o sistema de cotas para seus exames de admissão (e conforme divulgado pela reportagem da Revista Isto é de 05/04/2013) os alunos cotistas apresentam rendimento igual ou superior ao dos alunos não-cotistas, além de terem índices de evasão menores. Reproduzo a seguir um dos trechos da reportagem:



“Segundo dados do Sistema de Seleção Unificada, a nota de corte para os candidatos convencionais a vagas de medicina nas federais foi de 787,56 pontos. Para os cotistas, foi de 761,67 pontos. A diferença entre eles, portanto, ficou próxima de 3%. ISTOÉ entrevistou educadores e todos disseram que essa distância é mais do que razoável. Na verdade, é quase nada.”


Mas, se as ações afirmativas são amparadas pelo texto constitucional e os dados contradizem os argumentos dos que são contrários as cotas, por que eles continuam a ter força junto à opinião pública? Isso ocorre porque o discurso questionador do sistema de cotas, bem como o mérito dos alunos cotistas, está firmemente ancorado em três aspectos distintos de nossa sociedade, porém complementares entre si.

Primeiro, pelo receio das elites historicamente favorecidas de perderem seus privilégios. Se analisarmos friamente, o sistema de cotas sempre existiu nas universidades públicas brasileiras e ele era de 90%, ou seja, 90% das vagas eram destinadas aos filhos das elites. De acordo com essa concepção elitista da educação, estuda medicina o filho do médico. Os filhos das classes populares devem, quando muito, cursar as instituições privadas, notadamente inferiores, e com uma formação mais voltada para o “mundo do trabalho” e, portanto, mais adequadas à sua realidade. As cotas abrem a possibilidade do fim dessa hegemonia e isso, mais do que qualquer outra coisa, apavora os donos do poder.

Em segundo lugar, e dialogando diretamente com o primeiro aspecto, está a crença de que as camadas populares devem sempre ocupar uma posição de subalternidade em nosso estrato social. Historicamente, na visão das elites brasileiras, a distinção entre “pobre” e “inferior” nunca foi muito clara, sendo que essa elite sempre enxergou o grande contingente de desvalidos como seu exército servil pessoal, embasando e justificando essa crença no discurso quase medieval da ordem natural do mundo e, o que é mais trágico, graças ao peso dos meios de comunicação a seu serviço, essa elite conseguiu introjetar essa visão dentro do imaginário das próprias classes populares que, em grande parte, passam a se enxergar sob a mesma ótica de subalternidade. 

 O terceiro aspecto trata exatamente da criação desse discurso de subalternidade que, em última análise, gestou a tradição conservadora do pensamento político brasileiro, que faz com que os estratos explorados da população se irmanem mais com aqueles que os exploram do que com aqueles igualmente explorados, sob uma falsa esperança de, um dia, conseguirem ser alicerçados aos estratos sociais superiores.

Apesar de todo o discurso político que insistentemente repete que a educação é prioridade, a verdade é que as políticas públicas de educação voltadas para as classes populares primam pela adoção de práticas e normas que reforçam o aspecto reprodutor da escola e esvaziam seu aspecto crítico e libertário. Cria-se assim, geração após geração, ou legiões de pessoas conformistas, cínicas e sem perspectiva de futuro, satisfeitas em se manter representando os papeis que lhes foram determinados pelas oligarquias que historicamente governam esse país ou pessoas furiosas e revoltadas, que se enxergam em um mundo hostil, reagindo a ele com igual hostilidade, o que ajuda a entender, por exemplo, o crescente número de casos de violência nas escolas.


Esse assunto é complexo demais para se esgotar em um curto artigo de duas páginas e, é claro, apenas instituir cotas nas universidades públicas não é suficiente para as graves distorções socioeconômicas e políticas. No entanto, as cotas são uma medida fundamental para começar a garantir às legiões de excluídos de nossa sociedade, o mínimo de acesso aos instrumentos de ascensão social, fundamentais para superar séculos de exclusão e de subalternidade e, dessa forma, começar a concretizar os objetivos constitucionais de nossa nação.

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