Danielle Tudes
Mestranda em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Integrante do grupo de pesquisa ALFAVELA (Alfabetização, Classes Populares e o Cotidiano Escolar - IEAR/UFF) e do grupo de pesquisa: Culturas e
Identidades no Cotidiano/UERJ
Minha negritude não é nem torre
nem catedral
Ela mergulha na carne vermelha do solo
Ela mergulha na carne vermelha do solo
Ela mergulha na carne ardente do
céu
Ela rasga a prostração opaca da
paciência sensata...
Frantz Fanon
De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a palavra contexto
significa a inter-relação de circunstâncias que acompanham um fato ou
uma situação e/ou o conjunto de palavras, frases, ou o texto que precede
ou se segue a determinada palavra, frase ou texto e que contribuem para o seu
significado. As circunstâncias que acompanham o texto podem nos fornecer
informações valiosas para a compreensão do mesmo, a complexidade das tramas
tecidas nessa construção nos ajuda a entender as opções realizadas e as
possibilidades apontadas. Nesse sentido, inicio o presente texto narrando o que
move sua produção, narrando o que me move a escrever e compartilhar minhas
perplexidades e indagações.
Para cumprir essa empreitada, faço uso da palavra escrita como um recurso,
como um tradutor, como um meio de expressão para me contar, talvez diferente do
uso estritamente acadêmico em que, muitas vezes, não nos reconhecemos, nos
tornamos outras pessoas e assumimos uma escrita insípida e indolor. Arrisco um
uso mais próximo à literatura, lembrando aquelas obras que por não ter nenhuma
intenção de nos ensinar verdades sobre o mundo, narrando trajetos de vidas tão
humanas quanto as nossas, nos mobilizam a não sermos mais os mesmos.
Concordando com Frantz Fanon (2008, p. 34), um dos mais importantes pensadores
do século XX, considero que “existe na posse da linguagem uma extraordinária
potência”.
Embora esteja atualmente em Angra dos Reis, no estado do Rio de Janeiro,
nasci no Distrito Federal em 1978.
Minha mãe, Dilma, veio da Bahia com meu avô Euclides, barbeiro, minha avó
Risoleta, costureira, e seus três irmãos. A caravana veio embalada pela
esperança da construção de uma vida nova e melhor na terra vermelha e poeirenta
do centro-oeste, recheada das promessas do nacional desenvolvimentismo de
Juscelino Kubitschek.
E quantos, desde que o mundo é mundo, se movem, não como nas alegres
caravanas turísticas mas esperando dias melhores, pisando a terra, candangos
chacoalhando nas boleias dos caminhões. Quantos atravessaram oceanos, quantos
despejados pelo Atlântico derramando suas histórias. Quantas redes lançadas nas
diásporas dos povos.
Era preciso deixar o passado, mas como esquecer a fazenda de cacau, os
bois, a vida mais verde trocada pela poeira e ventania que ameaçava os barracos
de tábuas, cujos buracos eram cobertos pelos recortes das revistas com
jogadores de futebol e artistas? A alternativa foi crescer sonhando com um
trabalho de prestígio, quem trabalhava no senado sempre andava em carros
bonitos. Andar de carro preto, usar roupas boas, poderiam ser feitas pela mãe,
alisar os cabelos. E por que não?
Como a realidade transpôs os sonhos de minha mãe, ela não conseguiu,
naquele momento, ser professora nem trabalhar no senado. Minha avó não
reconhecia a continuidade da escolaridade, no que hoje chamamos ensino médio,
como importante a ponto de pausar suas encomendas de roupas, o que também
garantia a subsistência da família. Por isso não fez sua matrícula no curso de
formação de professores, além disso, meu avô não admitia que sua filha, mulher,
trabalhasse fora de casa. Portanto minha mãe aprendeu a costurar, a fazer tricô
e crochê, essas sim, coisas de mulher, coisas autorizadas para aquelas cujos
papéis já estão escritos.
Meu pai, José, carioca, perde cedo a mãe que morre com tuberculose
agravada pela precariedade das condições de vida. O cortiço, a favela, o gueto,
o subúrbio, a periferia, os aglomerados subnormais. Menino catando borracha
para alimentar a guerra que consome o mundo. Delinquente, marginal,
trombadinha, meliante, menino de rua, menino na rua, adolescente em conflito
com a lei.
A partir daí, o que se segue são os movimentos de quem precisa sobreviver
e experimenta as ruas, os mal tratos, os lares emprestados, a humilhação, o
patronato, as fugas, os empregos formais e informais e o aprendizado do ofício
de topógrafo, medindo, calculando e mapeando as ruas do Rio de Janeiro na
década de 60. Depois viajando pelo Brasil, loteando o Brasil.
Mas como se olhar no espelho? Como se traduzir pelos outros? Quem era ele
para a família branca que o ajuda a ser alguém? Zequinha, o motorista?
Zequinha, o quebra-galho? Ter uma profissão, não como a dos filhos legítimos,
engenheiros, contadores. É preciso ter uma profissão para ser alguém, para não
virar bandido. Só se aprende a ser alguém ouvindo calado, é preciso ouvir com
atenção porque negro quando não suja na entrada, suja na saída.
Sentimento de inferioridade? Não, sentimento
de inexistência. O pecado é preto como a virtude é branca. Todos esses brancos
reunidos, revólver nas mãos, não podem estar errados. Eu sou culpado. Não sei
de quê, mas sinto que sou um miserável” (FANON, 2008, p. 125)
Então as histórias se encontram no Distrito Federal e meus pais, na
década de 80, migram para Angra dos Reis, pois meu pai trabalhava para o DNER[1] e já
conhecia o lugar. De novo o deslocamento, a promessa do novo, da prosperidade,
vida nova.
No século XX, o município tornou-se palco de grandes empreendimentos
econômicos: a criação do estaleiro Verolme, a implantação do Terminal Petrolífero
da Ilha Grande (TEBIG), a construção das usinas nucleares Angra I e II e a
construção da rodovia BR101. São os ares do progresso. Esses grandes
investimentos causaram um crescimento desordenado, resultando em uma expansão
urbana sem planejamento, principalmente em direção aos morros da cidade, por
conta da limitação dos espaços planos e da especulação imobiliária. Esse
cenário foi convenientemente próspero para meu pai que se beneficiava por um
aumento na procura por medições e mapeamentos de terra.
Angra possui uma história intrigante, o município localizado no litoral
fluminense, entre a serra e o mar, constitui um exemplo em pequena escala do
nosso infeliz processo de colonização empreendido a partir de 1500 pela Europa,
caracterizado em grande medida pela exploração e os conflitos por terra. A
região participou dos ciclos econômicos da cana-de-açúcar, do tráfico de
africanos escravizados, do ciclo do ouro e do café. Ainda hoje, a repercussão
desse processo permite que o centro da
cidade seja propriedade de meia dúzia de famílias pertencentes à elite local e
que disputam ferrenhamente o poder público na cidade, que os condomínios à
beira mar impeçam ou dificultem o acesso às praias e que os quilombolas
precisem empreender uma luta dantesca para a titulação de suas terras, pois o
poder em Angra tem cor e classe, visíveis quando os helicópteros cruzam o céu
ou quando as lanchas salpicam o mar nos feriados.
A primeira moradia da família foi uma casa alugada no Morro da Glória,
minha mãe conta que atolou comigo no colo muitas vezes em dias chuvosos, com
lama até os joelhos, subia o morro me carregando. Dali fomos morar em uma
região chamada Japuíba, antiga fazenda loteada e vendida para os posseiros como
meu pai.
Cresci à beira das máquinas de costura, entre retalhos coloridos e as
criações maravilhosas de uma mulher que sempre nos vestiu. Seda, chita, laise,
brim, linho, crepe, flanela. Linhas, botões, agulhas, fitas, bordados, fivelas
e paetês. A mulher que esperou os filhos “se formarem” e fez o sonhado curso de
formação de professores e a graduação em pedagogia. É cruel constatar o quanto
ser costureira nunca teve valor social, foram os diplomas, o reconhecimento
acadêmico que trouxe um “lugar” no mundo para minha mãe.
Também cresci entre os livros de meu pai, que todos os domingos segurava
minha mão e me levava à banca de jornais onde comprávamos gibis. Seus livros
foram meus primeiros grandes prazeres, fui ao centro da Terra com Júlio Verne,
conheci os robôs com Isaac Asimov e senti terror ao lado de Stephen King.
Presenciei a retomada de seus estudos com a conclusão do ensino médio. Meu pai
sempre foi um trabalhador autônomo e vivemos as auguras dessa condição,
períodos em que havia demanda pelo serviço que prestava e outros (longos) em
que não havia garantia de renda. Nas dificuldades vendíamos os móveis, os
eletrodomésticos e até os livros. Apesar disso, nunca nos faltou, a mim e meu
irmão, os materiais escolares, o uniforme completo exigido pela escola, o
acompanhamento necessário em casa.
A escola, esse espaço tão cobiçado por meus pais, foi onde depositaram
suas esperanças e investimento financeiro para que pudéssemos gozar de dias
mais prósperos, por conta disso, afirmo sem hesitar que tudo que sou passa pela
escola pública popular. Todo o meu amor pelo conhecimento, meus amigos e minhas
realizações, devo a essa escola como um de meus mais importantes contextos de
formação.
Mas a mesma escola pela qual nutro a mais profunda gratidão foi a mesma
instituição que excluiu muitos de meus amigos. Como não estranhar que raros
eram os negros nas suas salas de aula? Quantos ficaram pelo caminho, rotulados
como burros, desinteressados, agressivos, aqueles que “não davam para o
estudo”! As amigas grávidas, das quais já se sabia que “dariam para isso, mais
cedo ou mais tarde”! Quantos, como minha mãe, aqueles cuja “família não se
interessa, que não acompanha os filhos” e como meu pai, meninos e meninas sujos
demais, feios demais, velhos demais, reais demais para a escola.
Além dos colegas de turma, mais tarde vieram os estudantes com os quais
trabalhei na condição de professora, no Movimento de Alfabetização de Jovens e
Adultos (MOVA), no Programa de Aceleração da Aprendizagem e nas turmas
regulares, homens e mulheres, meninos e meninas, em sua maioria pretos, pardos
e pobres. Foram bons encontros, no sentido empregado por Spinosa, talvez muito
mais tenha aprendido que ensinado.
Considero que seja essa devoção pela escola pública popular (que não me
permite desqualificar outros espaços de formação, mas reconhecer sua
importância para que eu construísse, por exemplo, a relação com a escrita que
permite que me narre nesse texto) construída ao longo de minha história de
vida, o que me faz desejar esse movimento de pesquisa que se situa nesse
encontro das classes populares com a escola pública, na esperança de que as
escolas angrenses deixem definitivamente de ser dos reis. Nesse momento
solicito o diálogo com Regina Leite Garcia, através de uma longa citação, cujos
contextos podem dialogar com o meu.
Desde que as crianças entram na escola, e
mesmo antes do momento da entrada na escola, vai sendo preparado o terreno para
que umas tenham sucesso e outras fracassem. Aqueles que têm sucesso na escola
não são a nossa preocupação. “Esses já nascem feitos”, como diz a sabedoria
popular. Quando entram na escola, já trazem o capital cultural esperado, e
estão condenados ao sucesso escolar. Aprendem nos cinemas, nos concertos, nos
vídeos, nos teatros, na biblioteca particular de suas casas, nas viagens, nas
conversas. Convivem em seu cotidiano com tudo o que a escola valoriza, falam a
língua que a escola acredita a “correta”, comportam-se “educadamente”. Sua
presença não agride como a presença dos mestiços pobres. São estes, portanto,
os que desafiam a nossa competência. É para eles que a escola precisa ser
repensada, pois os dentre eles que, apesar de todos os obstáculos, conseguem
ter sucesso na escola e no trabalho, vão se tornar porta-vozes da ideologia
dominante, afirmando a evidência da igualdade de oportunidades oferecidas pela
sociedade. Mas há ainda, felizmente, aqueles que, conseguindo romper as
barreiras colocadas à ascensão das classes populares, vencem, e, ao vencer,
colocam a sua vitória a serviço dos demais, que foram impedidos do sucesso. Às
vezes eles se tornam revolucionários, fazendo a crítica ao saber por eles
adquirido e à forma como o adquiriram. E há ainda aqueles que chegam ao mesmo
lugar por caminhos diferentes. Aprenderam na escola da vida e da luta (GARCIA,
1995, p.65).
Em minha história, embora atribua centralidade à formação escolar, não
posso deixar de falar sobre a importância dos espaços não formais para a
compreensão do desenho desse contexto. Por espaços não formais entendo todo o
vasto e heterogêneo conjunto de espaços e relações sociais frequentados ao
longo de minha vida e que são fundamentais para explicar e reforçar as opções
acadêmicas e profissionais dentro dos caminhos que percorri/percorro. Neste
âmbito, o Movimento Negro, o Grupo de Consciência Negra Ilá Dudu, foi
fundamental no sentido de provocar as perplexidades que tenho em relação a
escola e as classes populares, a participação nesse espaço me possibilitou a
assunção, a reivindicação de uma identidade negra. Não afirmo que exista uma
identidade negra única, imutável, mas utilizo essa expressão para explicar que
assumi elementos, referências de uma cultura relacionada à diáspora africana.
As relações estabelecidas nesse grupo também me fortaleceram para as
lutas em um local marcado por tantas desigualdades. A cidade com alto potencial
para o turismo classe A, envolvendo turistas de alta renda do Brasil e do
exterior, é retratada na mídia como uma região paradisíaca, com suas mais de trezentas ilhas, cercada pela
exuberante mata atlântica e águas cristalinas, imagem confirmada por aqueles que
chegam à Angra dos Reis em seus helicópteros e se dirigem às suas ilhas
particulares, que se poupam da visão de pobreza, presente somente em seus
empregados contratados para garantir a limpeza das casas de veraneio.
Infelizmente, boa parte da população, que se dirige todos os dias para o
trabalho, não de jet ski, lancha ou helicóptero, mas utilizando o aviltante
transporte público, sabe que o desenvolvimento desigual, a precariedade dos
serviços públicos, a pobreza e a corrupção, constituem também o cotidiano
local.
Creio que todo desejo de pesquisa começa a partir de uma relação muito
íntima e visceral do pesquisador com o tema com o qual pretende dialogar. No
meu caso, essa relação, pelas motivações pessoais e políticas explicitadas, se
estabelece com os estudos sobre educação, classes populares e relações
étnico-raciais. A intenção é dialogar com as classes populares e seus
contextos, no sentido de compreender seus territórios e como os mesmos se
expressam no espaço das escolas. Portanto a proposta de pesquisa não se
pretende exclusivamente neutra e objetiva por me considerar parte do próprio
universo a ser pesquisado. Concordando com Luciana Pires e Rodrigo Torquato,
pesquisadores que trabalham o conceito de pesquisas viscerais,
é a condição de opressão que rompe as distâncias ou proximidades
fabricadas e permite a emergência de novos sentidos nas aberturas dos
corpos/corpus fechados. Aos viscerais é possível ler o que está em jogo, ou
seja, riscos e tensões naquilo que vemos como situações cotidianas. São
pesquisas viscerais, na carne que se faz verbo e no verbo que se faz navalha. (
ALVES & TORQUATO, 2013, p.)
A questão
racial em Angra dos Reis
Na entrada da cidade, aqueles que pela primeira vez visitam o município
de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, se deparam com um cenário ambíguo: de um
lado, a visão do mar azul coalhado de lanchas e veleiros e do outro lado, as
casas que escalaram as montanhas em busca de espaço. Alguns relatam que, à
primeira vista, o município lembra a arquitetura das favelas. Mas, para além da
arquitetura, como o conceito de favela pode nos ajudar a pensar o espaço
angrense?
Embora a população local se oponha veementemente à ideia de que existam
favelas em Angra dos Reis, de acordo com a pesquisa sobre aglomerados
subnormais realizada no censo 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística), Angra é o décimo município do país com maior percentual de
domicílios em favelas. Conforme o site do IBGE, o Manual de Delimitação dos
Setores do Censo 2010 classifica como aglomeração subnormal cada conjunto
constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais carentes, em sua maioria,
de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período
recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando
dispostas, em geral, de forma desordenada e densa.
Muitos questionamentos poderiam ser feitos em relação ao uso do termo que
em si carrega as marcas do preconceito em relação a esses espaços, já que
subnormal significa, de acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o
que é próximo do normal, porém abaixo ou aquém dele, ou seja, espaços
fora do padrão, da lei, do aceitável, os mesmos adjetivos utilizados para
qualificar suas populações. Com todas as restrições, esse é um dado que merece
atenção, principalmente por se opor à imagem de Angra dos Reis como souvenir,
provocando-nos com uma imagem diferente daquela exposta a partir da Ilha de
Caras, por exemplo.
A imagem da cidade como uma ilha paradisíaca não é somente imposta, ela
dialoga com as expectativas da população e recebe acolhida nos imaginários,
talvez isso explique a aversão ao conceito de favela, além, é claro, do estigma
que pesa sobre a palavra, uma vez que a favela é descrita como o espaço da
falta, da carência, como o espaço que precisa ser civilizado, pacificado. Mas a
negação da favela também significa invisibilizar as desigualdades vividas pelas
classes populares, desigualdades sobre as quais a cidade foi historicamente
edificada, é negar a precarização dos direitos sociais.
Podemos mapear as populações que podem ser apontadas como as classes
populares de Angra dos Reis[2]
identificando a população do Quilombo do Bracuí que luta pela titulação de suas
terras; a
etnia Guarani
Mbya, da Aldeia Guarani Sapukai, também no Bracuí; os caiçaras que habitam as
ilhas da Baía da Ilha Grande e aqueles que foram expulsos pela especulação
imobiliária criminosa para os morros do centro e os bairros periféricos e os
trabalhadores que vieram de muitas regiões do Brasil para construir e se
empregar nas usinas e no estaleiro da cidade. Portanto, quando nos referirmos
às classes populares de Angra dos Reis, estão nos referimos também a esses
grupos, que historicamente contrastam com a beleza natural idílica desse
paraíso há aproximadamente quinhentos anos, sendo constituído em sua maioria
por pretos e pardos.
Afinal, desde que o Brazil é Brasil, ou melhor, quando era ainda uma
América portuguesa, o tema da cor nos distinguiu. Os primeiros viajantes
destacavam sempre a existência de uma natureza paradisíaca, mas lamentavam a
“estranheza de nossas gentes”. Muito se comentou sobre essas novas gentes desse
igualmente novo mundo, mas do lado dos relatos ibéricos o mais famoso é talvez
o do viajante português Gândavo, que deu forma canônica ao debate que, desde Caminha
e Vespúcio, mencionava a ambivalência entre a existência do éden ou da barbárie
nessas terras perdidas. O Brasil seria o paraíso ou o inferno? Seus habitantes,
ingênuos ou viciados? (SCHWARCZ, 2012, P.11)
Isto posto, pensamos que as relações entre as classes populares e as
elites da cidade refletem ainda uma lógica colonial que subjuga e nega o
direito à terra, à educação e que não reconhece esses sujeitos como produtores
de cultura, de saberes. As primeiras relações estabelecidas quando André Gonçalves
aporta nessa região são reproduzidas através das oligarquias angrenses, pois
embora o Brasil não seja mais uma colônia, isso não apaga toda a herança desse
processo violento que se perpetua em outros campos, pois citando Santos, aquele
a quem nos apraz chamar pelo nome
Boaventura
O colonialismo, para além de todas as
dominações por que é conhecido, foi também uma dominação epistemológica, uma
relação extremamente desigual entre saberes que conduziu à supressão de muitas
formas de saber próprias dos povos e nações colonizados, relegando muitos
outros saberes para um espaço de subalternidade. (SANTOS, 2010, p.11)
Consequentemente, as classes populares em suas singularidades não cabem
nos folhetos turísticos, não cabem no hino de Angra, não cabem nos nomes das
escolas, não cabem na história do município, erguido com o sangue, o suor e os
conhecimentos de tantos negros e indígenas, pois “a atividade do conhecer passa a ser
reconhecida como um privilégio dos que são considerados mais capazes,
sendo-lhes, por isso, conferida a tarefa de formular uma nova visão do mundo,
capaz de compreender, explicar e universalizar o processo histórico.”
(HERNANDEZ, 2008, p.17)
As classes populares são lembradas anualmente, quando as casas caem, os
morros desmancham e os caminhos são interditados durante as chuvas torrenciais
do verão, já que são as maiores vítimas dos infortúnios herdados das décadas de
falta de planejamento urbano e irresponsabilidade por parte de um estado
corrupto e populista, ou estão presentes em imagens estereotipadas nas
comemorações do dia 13 de maio e 19 de abril. Mantendo ainda a escuta voltada
para Boaventura, concordamos que a
inexistência significa não existir sob
qualquer forma de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como
inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo
que a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o outro.
(Ibid., p.32)
Há os espaços concedidos, onde a existência pode ser exposta, por isso as
classes populares são as protagonistas
das páginas criminais, ilustrando as notícias manchadas de sangue. Como
exemplo, podemos citar o conteúdo do periódico angrense denominado “A Cidade”,
carinhosamente cognominado pela população como “O Sangrento”, publicado semanalmente
e com grande circulação no município. Inicialmente é fácil observar que o
jornal se volta majoritariamente para notícias policiais, onde as classes
populares são sempre as principais personagens dos casos criminosos, aqueles
que na poesia de Eduardo Galeano são
os ninguéns: os filhos de
ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.
Assim como os
humanistas dos séculos XV e XVI chegaram à conclusão de que os ditos selvagens
eram sub-humanos, criando um conceito de vazio jurídico que justificou a
invasão e a ocupação dos territórios indígenas, o estado, baseado na
representação das classes populares como imorais e incapazes, necessitando
portanto de tutela, justifica o aniquilamento dos jovens negros e outras ações
que tem como objetivo garantir a “ordem” na sociedade.
A análise de
sete meses do referido periódico[3]
nos forneceu um total de 134 registros de crimes, entre esses, através de
heteroclassificação, nos casos em que havia fotos, identificamos 105 negros e
22 brancos protagonistas
das ocorrências, caracterizando-se, a maioria, como tráfico de drogas. Esses
dados evidenciam a vulnerabilidade dos jovens negros e explicita a proeminência
da questão étnico-racial. Cabe abrirmos um parêntese para salientar que o
emprego do conceito de raça é questionável e explicar que, embora as ciências
biológicas já tenham demonstrado que não há critérios que justifiquem seu uso,
optamos pelo mesmo porque, enquanto construção histórica, a eliminação do
vocábulo não garante que o mesmo seja banido de seu uso social e político.
Ademais, sabemos também que é a raça, materializada no fenótipo, o recurso
empregado para a discriminação.
Lembramos que o periódico
não é tomado como uma fonte neutra, mesmo porque nenhuma fonte o é, mas como
portador de intencionalidades e subjetividades construídas nas relações
sociais, onde os vínculos mantidos pelo jornal e suas fontes de recursos estão
consideravelmente implicados. Outrossim,
não consideramos que o periódico possa nos fornecer informações sobre os
contextos e territórios das classes populares, que é o interesse central da
pesquisa que ora se desenha, pois ele expõem um discurso onde as vozes desses
sujeitos não estão presentes e onde os
mesmos são arranjados como peças descartáveis e incômodas de um jogo.
Mas esses dados podem nos ajudar a compreender que os subalternizados, como tem
nos mostrado a história, não sucumbem em silêncio. Os discursos, declaradamente
discriminatórios que permeiam o periódico e que se caracterizam como discursos
sobre e não com, não são nosso foco, o que nos interessa é em que medida existe
uma resistência nas ações noticiadas, em que medida a ruptura com o tênue
limite existente entre vida e morte pode nos apontar um esgarçamento da ordem e
moral estabelecidas nos territórios.
Inconclusões
De acordo com Censo 2010 do IBGE[4]
(Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), dos 190.755.799 habitantes
do Brasil, 96,7 milhões de brasileiros (50,7% da população) são negros e 91
milhões são brancos (47,7%). Esses dados nos mostram claramente que a população
negra constitui a maioria do povo brasileiro, o que nos leva a interrogar por
que a mídia, as instituições e as políticas públicas invisibilizam esse
contingente tratando a população negra como minoria. É claro que não defendemos
aqui que por ser numericamente superior, determinado grupo deva gozar de
privilégios em detrimento de outros.
Consideramos que em uma sociedade democrática todos devem ser respeitados em
suas especificidades e ter acesso às condições que garantam o acesso aos
direitos.
Ainda hoje existe a ilusão de que vivemos em uma democracia racial, o
fato de não termos dispositivos legais de segregação, ou seja, o fato de nosso
racismo não ser institucionalizado, reforça a mentira de que somos uma
sociedade harmônica onde todos gozam de oportunidades iguais. O Mito da
Democracia Racial, representado por Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala,
ainda impregna o senso comum, mascarando, sob uma tendenciosa harmonia, o
racismo presente entre nós. Nos lembra Schwarcz (2012) que
O “cadinho das raças” aparecia como uma visão
otimista do mito das três raças, mais evidente aqui do que em qualquer outro
lugar. “Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando
não na alma e no corpo, a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena e/ou do
negro”, afirmava Freyre, tornando a mestiçagem uma questão de ordem geral.
Basta uma rápida incursão pelos espaços
historicamente ocupados pelas elites brasileiras, como os cursos mais
prestigiados das universidades, para percebermos a ausência quase completa
dessa diversidade, uma vez que estes espaços são majoritariamente ocupados por
uma elite branca e de alto nível socioeconômico, sendo que isso, mais do que
qualquer outro fator, comprova a pouca equidade de acesso aos instrumentos de
ascensão social, demonstrando que o artigo 5º da Constituição, que afirma que
todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, é
acintosamente desrespeitado, não existindo além do limitado alcance do texto
escrito, estando muito longe de ser um dos princípios formadores sobre os quais
nossa sociedade deveria se firmar.
Percebemos a segregação racial nos espaços da
cidade, os bairros periféricos são onde vive a maioria dos negros (entendendo
os mesmos como a adição de pretos e pardos). Assim, constituem-se os
territórios onde se concentram as habitações populares e sobre os quais se
constroem representações calcadas na imoralidade e na necessidade de
intervenções, já que sua população é estereotipada como violenta e carente de
civilidade e aqueles territórios onde as classes populares se empregam, são os
hotéis, condomínios, casas de veraneio e outros.
A educação, escolarizada ou não, reflete e atualiza o contexto de
desigualdade presente na sociedade brasileira. A escola pública como
instituição responsável pela socialização dos conhecimentos historicamente
construídos e por sua transmissão às novas gerações tende a reproduzir as
desigualdades inerentes a sociedade em que está inserida, mas jamais podemos
nos esquecer de que ela também pode ser um espaço privilegiado para a
realização de ações que tenham como objetivo desconstruir práticas
discriminatórias, em especial as práticas racistas. Em um sentido mais
restrito, a escola é um dos espaços privilegiados para a implantação de
políticas públicas que visem democratizar a sociedade que se encontra
racialmente estratificada.
Nas últimas décadas ocorreu uma inegável
expansão das vagas oferecidas, especialmente no Ensino Fundamental, promovendo
a democratização do acesso à escola com a inclusão de diferentes grupos sociais
e culturais nesse espaço, porém nos parece que a instituição permanece
excluindo em seu interior aqueles que não possuem os conhecimentos valorizados
pela mesma, com uma lógica meritocrática e monocultural. Desse modo, as
crianças negras deparam-se com dificuldades adicionais em seu trânsito escolar,
tendo que lidar com conteúdos e práticas discriminatórias e racistas, pois não
há, na maioria das vezes, uma orientação multicultural nas ações empreendidas
na escola.
A trajetória escolar de alunos brancos e
negros é desigual e evidencia a discriminação racial na educação brasileira.
Enquanto os primeiros realizam uma trajetória menos acidentada, os últimos têm
de lidar com piores condições sociais e econômicas, racismo e discriminação. Entretanto,
a pobreza não explica a desigualdade racial, afirmar que somente são
discriminados os pobres, admitindo a existência de discriminação exclusivamente
baseada na classe social, constitui um reducionismo das questões raciais à
questão econômica. Do contrário, percebemos que o desenvolvimento econômico não
atenua as desigualdades entre os grupos étnico-raciais.
Desse modo, assumimos como fundamental para essa pesquisa, os
trânsitos pelos territórios das classes populares e os encontros com os
sujeitos que os constituem em seus cotidianos. Aí, nesse lugar, supostamente
encontraremos as vozes, as cores, as tecnologias, os saberes, as línguas, as
presenças daqueles com os quais pretendemos dialogar. Lugar onde, em vez de
carência, há riqueza de práticas e estratégias, onde se constroem
possibilidades e onde, em vez de submissão se constroem resistências.
Referências
ALVES,
Luciana Pires e SILVA, Rodrigo Torquato da. “Eu era a carne, e agora, sou a
própria navalha” - pesquisas viscerais em alfabetização. Disponível em http://alfavelapesquisa.blogspot.com.br
FANON,
Frantz. Pele Negra Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
HERNANDES, Leila
Leite. A África na sala de aula – Visita à História Contemporânea. São
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Boaventura de Sousa e Meneses, Maria Paula. Prefácio. In: SANTOS,
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SANTOS,
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SCHWARCZ,
Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na
sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012.
[1] DNER é a
sigla de Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, que é um órgão federal e
está vinculado ao Ministério dos Transportes. Em 2001, o DNER foi substituído
pelo DNIT, que significa Departamento Nacional de Infra-Estrutura de
Transportes.
[2] Mapeamento realizado no contexto do grupo de
pesquisa ALFAVELA – Alfabetização, Classes Populares e o Cotidiano Escolar do
Instituto de Educação de Angra dos Reis (RJ) – Universidade Federal Fluminense,
coordenado pelo professor Rodrigo Torquato.
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