segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Sobre contextos, encontros e diferenças


Danielle Tudes
Mestranda em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Integrante do grupo de pesquisa ALFAVELA (Alfabetização, Classes Populares e o Cotidiano Escolar - IEAR/UFF) e do grupo de pesquisa: Culturas e Identidades no Cotidiano/UERJ 




Minha negritude não é nem torre nem catedral
Ela mergulha na carne vermelha do solo
Ela mergulha na carne ardente do céu
Ela rasga a prostração opaca da paciência sensata...

Frantz Fanon


De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a palavra contexto significa a inter-relação de circunstâncias que acompanham um fato ou uma situação e/ou o conjunto de palavras, frases, ou o texto que precede ou se segue a determinada palavra, frase ou texto e que contribuem para o seu significado. As circunstâncias que acompanham o texto podem nos fornecer informações valiosas para a compreensão do mesmo, a complexidade das tramas tecidas nessa construção nos ajuda a entender as opções realizadas e as possibilidades apontadas. Nesse sentido, inicio o presente texto narrando o que move sua produção, narrando o que me move a escrever e compartilhar minhas perplexidades e indagações.
Para cumprir essa empreitada, faço uso da palavra escrita como um recurso, como um tradutor, como um meio de expressão para me contar, talvez diferente do uso estritamente acadêmico em que, muitas vezes, não nos reconhecemos, nos tornamos outras pessoas e assumimos uma escrita insípida e indolor. Arrisco um uso mais próximo à literatura, lembrando aquelas obras que por não ter nenhuma intenção de nos ensinar verdades sobre o mundo, narrando trajetos de vidas tão humanas quanto as nossas, nos mobilizam a não sermos mais os mesmos. Concordando com Frantz Fanon (2008, p. 34), um dos mais importantes pensadores do século XX, considero que “existe na posse da linguagem uma extraordinária potência”.
Embora esteja atualmente em Angra dos Reis, no estado do Rio de Janeiro, nasci no Distrito Federal em 1978.
Minha mãe, Dilma, veio da Bahia com meu avô Euclides, barbeiro, minha avó Risoleta, costureira, e seus três irmãos. A caravana veio embalada pela esperança da construção de uma vida nova e melhor na terra vermelha e poeirenta do centro-oeste, recheada das promessas do nacional desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek.
E quantos, desde que o mundo é mundo, se movem, não como nas alegres caravanas turísticas mas esperando dias melhores, pisando a terra, candangos chacoalhando nas boleias dos caminhões. Quantos atravessaram oceanos, quantos despejados pelo Atlântico derramando suas histórias. Quantas redes lançadas nas diásporas dos povos.
Era preciso deixar o passado, mas como esquecer a fazenda de cacau, os bois, a vida mais verde trocada pela poeira e ventania que ameaçava os barracos de tábuas, cujos buracos eram cobertos pelos recortes das revistas com jogadores de futebol e artistas? A alternativa foi crescer sonhando com um trabalho de prestígio, quem trabalhava no senado sempre andava em carros bonitos. Andar de carro preto, usar roupas boas, poderiam ser feitas pela mãe, alisar os cabelos. E por que não?
Como a realidade transpôs os sonhos de minha mãe, ela não conseguiu, naquele momento, ser professora nem trabalhar no senado. Minha avó não reconhecia a continuidade da escolaridade, no que hoje chamamos ensino médio, como importante a ponto de pausar suas encomendas de roupas, o que também garantia a subsistência da família. Por isso não fez sua matrícula no curso de formação de professores, além disso, meu avô não admitia que sua filha, mulher, trabalhasse fora de casa. Portanto minha mãe aprendeu a costurar, a fazer tricô e crochê, essas sim, coisas de mulher, coisas autorizadas para aquelas cujos papéis já estão escritos.
Meu pai, José, carioca, perde cedo a mãe que morre com tuberculose agravada pela precariedade das condições de vida. O cortiço, a favela, o gueto, o subúrbio, a periferia, os aglomerados subnormais. Menino catando borracha para alimentar a guerra que consome o mundo. Delinquente, marginal, trombadinha, meliante, menino de rua, menino na rua, adolescente em conflito com a lei.
A partir daí, o que se segue são os movimentos de quem precisa sobreviver e experimenta as ruas, os mal tratos, os lares emprestados, a humilhação, o patronato, as fugas, os empregos formais e informais e o aprendizado do ofício de topógrafo, medindo, calculando e mapeando as ruas do Rio de Janeiro na década de 60. Depois viajando pelo Brasil, loteando o Brasil.
Mas como se olhar no espelho? Como se traduzir pelos outros? Quem era ele para a família branca que o ajuda a ser alguém? Zequinha, o motorista? Zequinha, o quebra-galho? Ter uma profissão, não como a dos filhos legítimos, engenheiros, contadores. É preciso ter uma profissão para ser alguém, para não virar bandido. Só se aprende a ser alguém ouvindo calado, é preciso ouvir com atenção porque negro quando não suja na entrada, suja na saída.
Sentimento de inferioridade? Não, sentimento de inexistência. O pecado é preto como a virtude é branca. Todos esses brancos reunidos, revólver nas mãos, não podem estar errados. Eu sou culpado. Não sei de quê, mas sinto que sou um miserável” (FANON, 2008, p. 125)

Então as histórias se encontram no Distrito Federal e meus pais, na década de 80, migram para Angra dos Reis, pois meu pai trabalhava para o DNER[1] e já conhecia o lugar. De novo o deslocamento, a promessa do novo, da prosperidade, vida nova.
No século XX, o município tornou-se palco de grandes empreendimentos econômicos: a criação do estaleiro Verolme, a implantação do Terminal Petrolífero da Ilha Grande (TEBIG), a construção das usinas nucleares Angra I e II e a construção da rodovia BR101. São os ares do progresso. Esses grandes investimentos causaram um crescimento desordenado, resultando em uma expansão urbana sem planejamento, principalmente em direção aos morros da cidade, por conta da limitação dos espaços planos e da especulação imobiliária. Esse cenário foi convenientemente próspero para meu pai que se beneficiava por um aumento na procura por medições e mapeamentos de terra.
Angra possui uma história intrigante, o município localizado no litoral fluminense, entre a serra e o mar, constitui um exemplo em pequena escala do nosso infeliz processo de colonização empreendido a partir de 1500 pela Europa, caracterizado em grande medida pela exploração e os conflitos por terra. A região participou dos ciclos econômicos da cana-de-açúcar, do tráfico de africanos escravizados, do ciclo do ouro e do café. Ainda hoje, a repercussão desse processo permite  que o centro da cidade seja propriedade de meia dúzia de famílias pertencentes à elite local e que disputam ferrenhamente o poder público na cidade, que os condomínios à beira mar impeçam ou dificultem o acesso às praias e que os quilombolas precisem empreender uma luta dantesca para a titulação de suas terras, pois o poder em Angra tem cor e classe, visíveis quando os helicópteros cruzam o céu ou quando as lanchas salpicam o mar nos feriados.
A primeira moradia da família foi uma casa alugada no Morro da Glória, minha mãe conta que atolou comigo no colo muitas vezes em dias chuvosos, com lama até os joelhos, subia o morro me carregando. Dali fomos morar em uma região chamada Japuíba, antiga fazenda loteada e vendida para os posseiros como meu pai.
Cresci à beira das máquinas de costura, entre retalhos coloridos e as criações maravilhosas de uma mulher que sempre nos vestiu. Seda, chita, laise, brim, linho, crepe, flanela. Linhas, botões, agulhas, fitas, bordados, fivelas e paetês. A mulher que esperou os filhos “se formarem” e fez o sonhado curso de formação de professores e a graduação em pedagogia. É cruel constatar o quanto ser costureira nunca teve valor social, foram os diplomas, o reconhecimento acadêmico que trouxe um “lugar” no mundo para minha mãe.
Também cresci entre os livros de meu pai, que todos os domingos segurava minha mão e me levava à banca de jornais onde comprávamos gibis. Seus livros foram meus primeiros grandes prazeres, fui ao centro da Terra com Júlio Verne, conheci os robôs com Isaac Asimov e senti terror ao lado de Stephen King. Presenciei a retomada de seus estudos com a conclusão do ensino médio. Meu pai sempre foi um trabalhador autônomo e vivemos as auguras dessa condição, períodos em que havia demanda pelo serviço que prestava e outros (longos) em que não havia garantia de renda. Nas dificuldades vendíamos os móveis, os eletrodomésticos e até os livros. Apesar disso, nunca nos faltou, a mim e meu irmão, os materiais escolares, o uniforme completo exigido pela escola, o acompanhamento necessário em casa.
A escola, esse espaço tão cobiçado por meus pais, foi onde depositaram suas esperanças e investimento financeiro para que pudéssemos gozar de dias mais prósperos, por conta disso, afirmo sem hesitar que tudo que sou passa pela escola pública popular. Todo o meu amor pelo conhecimento, meus amigos e minhas realizações, devo a essa escola como um de meus mais importantes contextos de formação.
Mas a mesma escola pela qual nutro a mais profunda gratidão foi a mesma instituição que excluiu muitos de meus amigos. Como não estranhar que raros eram os negros nas suas salas de aula? Quantos ficaram pelo caminho, rotulados como burros, desinteressados, agressivos, aqueles que “não davam para o estudo”! As amigas grávidas, das quais já se sabia que “dariam para isso, mais cedo ou mais tarde”! Quantos, como minha mãe, aqueles cuja “família não se interessa, que não acompanha os filhos” e como meu pai, meninos e meninas sujos demais, feios demais, velhos demais, reais demais para a escola.
Além dos colegas de turma, mais tarde vieram os estudantes com os quais trabalhei na condição de professora, no Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA), no Programa de Aceleração da Aprendizagem e nas turmas regulares, homens e mulheres, meninos e meninas, em sua maioria pretos, pardos e pobres. Foram bons encontros, no sentido empregado por Spinosa, talvez muito mais tenha aprendido que ensinado.
Considero que seja essa devoção pela escola pública popular (que não me permite desqualificar outros espaços de formação, mas reconhecer sua importância para que eu construísse, por exemplo, a relação com a escrita que permite que me narre nesse texto) construída ao longo de minha história de vida, o que me faz desejar esse movimento de pesquisa que se situa nesse encontro das classes populares com a escola pública, na esperança de que as escolas angrenses deixem definitivamente de ser dos reis. Nesse momento solicito o diálogo com Regina Leite Garcia, através de uma longa citação, cujos contextos podem dialogar com o meu.

Desde que as crianças entram na escola, e mesmo antes do momento da entrada na escola, vai sendo preparado o terreno para que umas tenham sucesso e outras fracassem. Aqueles que têm sucesso na escola não são a nossa preocupação. “Esses já nascem feitos”, como diz a sabedoria popular. Quando entram na escola, já trazem o capital cultural esperado, e estão condenados ao sucesso escolar. Aprendem nos cinemas, nos concertos, nos vídeos, nos teatros, na biblioteca particular de suas casas, nas viagens, nas conversas. Convivem em seu cotidiano com tudo o que a escola valoriza, falam a língua que a escola acredita a “correta”, comportam-se “educadamente”. Sua presença não agride como a presença dos mestiços pobres. São estes, portanto, os que desafiam a nossa competência. É para eles que a escola precisa ser repensada, pois os dentre eles que, apesar de todos os obstáculos, conseguem ter sucesso na escola e no trabalho, vão se tornar porta-vozes da ideologia dominante, afirmando a evidência da igualdade de oportunidades oferecidas pela sociedade. Mas há ainda, felizmente, aqueles que, conseguindo romper as barreiras colocadas à ascensão das classes populares, vencem, e, ao vencer, colocam a sua vitória a serviço dos demais, que foram impedidos do sucesso. Às vezes eles se tornam revolucionários, fazendo a crítica ao saber por eles adquirido e à forma como o adquiriram. E há ainda aqueles que chegam ao mesmo lugar por caminhos diferentes. Aprenderam na escola da vida e da luta (GARCIA, 1995, p.65).

Em minha história, embora atribua centralidade à formação escolar, não posso deixar de falar sobre a importância dos espaços não formais para a compreensão do desenho desse contexto. Por espaços não formais entendo todo o vasto e heterogêneo conjunto de espaços e relações sociais frequentados ao longo de minha vida e que são fundamentais para explicar e reforçar as opções acadêmicas e profissionais dentro dos caminhos que percorri/percorro. Neste âmbito, o Movimento Negro, o Grupo de Consciência Negra Ilá Dudu, foi fundamental no sentido de provocar as perplexidades que tenho em relação a escola e as classes populares, a participação nesse espaço me possibilitou a assunção, a reivindicação de uma identidade negra. Não afirmo que exista uma identidade negra única, imutável, mas utilizo essa expressão para explicar que assumi elementos, referências de uma cultura relacionada à diáspora africana.
As relações estabelecidas nesse grupo também me fortaleceram para as lutas em um local marcado por tantas desigualdades. A cidade com alto potencial para o turismo classe A, envolvendo turistas de alta renda do Brasil e do exterior, é retratada na mídia como uma região paradisíaca, com  suas mais de trezentas ilhas, cercada pela exuberante mata atlântica e águas cristalinas, imagem confirmada por aqueles que chegam à Angra dos Reis em seus helicópteros e se dirigem às suas ilhas particulares, que se poupam da visão de pobreza, presente somente em seus empregados contratados para garantir a limpeza das casas de veraneio. Infelizmente, boa parte da população, que se dirige todos os dias para o trabalho, não de jet ski, lancha ou helicóptero, mas utilizando o aviltante transporte público, sabe que o desenvolvimento desigual, a precariedade dos serviços públicos, a pobreza e a corrupção, constituem também o cotidiano local.
Creio que todo desejo de pesquisa começa a partir de uma relação muito íntima e visceral do pesquisador com o tema com o qual pretende dialogar. No meu caso, essa relação, pelas motivações pessoais e políticas explicitadas, se estabelece com os estudos sobre educação, classes populares e relações étnico-raciais. A intenção é dialogar com as classes populares e seus contextos, no sentido de compreender seus territórios e como os mesmos se expressam no espaço das escolas. Portanto a proposta de pesquisa não se pretende exclusivamente neutra e objetiva por me considerar parte do próprio universo a ser pesquisado. Concordando com Luciana Pires e Rodrigo Torquato, pesquisadores que trabalham o conceito de pesquisas viscerais,

é a condição de opressão que rompe as distâncias ou proximidades fabricadas e permite a emergência de novos sentidos nas aberturas dos corpos/corpus fechados. Aos viscerais é possível ler o que está em jogo, ou seja, riscos e tensões naquilo que vemos como situações cotidianas. São pesquisas viscerais, na carne que se faz verbo e no verbo que se faz navalha. ( ALVES & TORQUATO, 2013, p.)


A questão racial em Angra dos Reis

Na entrada da cidade, aqueles que pela primeira vez visitam o município de Angra dos Reis, no Rio de Janeiro, se deparam com um cenário ambíguo: de um lado, a visão do mar azul coalhado de lanchas e veleiros e do outro lado, as casas que escalaram as montanhas em busca de espaço. Alguns relatam que, à primeira vista, o município lembra a arquitetura das favelas. Mas, para além da arquitetura, como o conceito de favela pode nos ajudar a pensar o espaço angrense?
Embora a população local se oponha veementemente à ideia de que existam favelas em Angra dos Reis, de acordo com a pesquisa sobre aglomerados subnormais realizada no censo 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Angra é o décimo município do país com maior percentual de domicílios em favelas. Conforme o site do IBGE, o Manual de Delimitação dos Setores do Censo 2010 classifica como aglomeração subnormal cada conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais carentes, em sua maioria, de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e densa.
Muitos questionamentos poderiam ser feitos em relação ao uso do termo que em si carrega as marcas do preconceito em relação a esses espaços, já que subnormal significa, de acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o que é próximo do normal, porém abaixo ou aquém dele, ou seja, espaços fora do padrão, da lei, do aceitável, os mesmos adjetivos utilizados para qualificar suas populações. Com todas as restrições, esse é um dado que merece atenção, principalmente por se opor à imagem de Angra dos Reis como souvenir, provocando-nos com uma imagem diferente daquela exposta a partir da Ilha de Caras, por exemplo.
A imagem da cidade como uma ilha paradisíaca não é somente imposta, ela dialoga com as expectativas da população e recebe acolhida nos imaginários, talvez isso explique a aversão ao conceito de favela, além, é claro, do estigma que pesa sobre a palavra, uma vez que a favela é descrita como o espaço da falta, da carência, como o espaço que precisa ser civilizado, pacificado. Mas a negação da favela também significa invisibilizar as desigualdades vividas pelas classes populares, desigualdades sobre as quais a cidade foi historicamente edificada, é negar a precarização dos direitos sociais.
Podemos mapear as populações que podem ser apontadas como as classes populares de Angra dos Reis[2] identificando a população do Quilombo do Bracuí que luta pela titulação de suas terras; a
etnia Guarani Mbya, da Aldeia Guarani Sapukai, também no Bracuí; os caiçaras que habitam as ilhas da Baía da Ilha Grande e aqueles que foram expulsos pela especulação imobiliária criminosa para os morros do centro e os bairros periféricos e os trabalhadores que vieram de muitas regiões do Brasil para construir e se empregar nas usinas e no estaleiro da cidade. Portanto, quando nos referirmos às classes populares de Angra dos Reis, estão nos referimos também a esses grupos, que historicamente contrastam com a beleza natural idílica desse paraíso há aproximadamente quinhentos anos, sendo constituído em sua maioria por pretos e pardos.

Afinal, desde que o Brazil é Brasil, ou melhor, quando era ainda uma América portuguesa, o tema da cor nos distinguiu. Os primeiros viajantes destacavam sempre a existência de uma natureza paradisíaca, mas lamentavam a “estranheza de nossas gentes”. Muito se comentou sobre essas novas gentes desse igualmente novo mundo, mas do lado dos relatos ibéricos o mais famoso é talvez o do viajante português Gândavo, que deu forma canônica ao debate que, desde Caminha e Vespúcio, mencionava a ambivalência entre a existência do éden ou da barbárie nessas terras perdidas. O Brasil seria o paraíso ou o inferno? Seus habitantes, ingênuos ou viciados? (SCHWARCZ, 2012, P.11)

Isto posto, pensamos que as relações entre as classes populares e as elites da cidade refletem ainda uma lógica colonial que subjuga e nega o direito à terra, à educação e que não reconhece esses sujeitos como produtores de cultura, de saberes. As primeiras relações estabelecidas quando André Gonçalves aporta nessa região são reproduzidas através das oligarquias angrenses, pois embora o Brasil não seja mais uma colônia, isso não apaga toda a herança desse processo violento que se perpetua em outros campos, pois citando Santos, aquele a quem nos apraz chamar pelo nome  Boaventura

O colonialismo, para além de todas as dominações por que é conhecido, foi também uma dominação epistemológica, uma relação extremamente desigual entre saberes que conduziu à supressão de muitas formas de saber próprias dos povos e nações colonizados, relegando muitos outros saberes para um espaço de subalternidade. (SANTOS, 2010, p.11)

Consequentemente, as classes populares em suas singularidades não cabem nos folhetos turísticos, não cabem no hino de Angra, não cabem nos nomes das escolas, não cabem na história do município, erguido com o sangue, o suor e os conhecimentos de tantos negros e indígenas, pois  “a atividade do conhecer passa a ser reconhecida como um privilégio dos que são considerados mais capazes, sendo-lhes, por isso, conferida a tarefa de formular uma nova visão do mundo, capaz de compreender, explicar e universalizar o processo histórico.” (HERNANDEZ, 2008, p.17)
As classes populares são lembradas anualmente, quando as casas caem, os morros desmancham e os caminhos são interditados durante as chuvas torrenciais do verão, já que são as maiores vítimas dos infortúnios herdados das décadas de falta de planejamento urbano e irresponsabilidade por parte de um estado corrupto e populista, ou estão presentes em imagens estereotipadas nas comemorações do dia 13 de maio e 19 de abril. Mantendo ainda a escuta voltada para Boaventura, concordamos que a

inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o outro. (Ibid., p.32)

Há os espaços concedidos, onde a existência pode ser exposta, por isso as classes populares  são as protagonistas das páginas criminais, ilustrando as notícias manchadas de sangue. Como exemplo, podemos citar o conteúdo do periódico angrense denominado “A Cidade”, carinhosamente cognominado pela população como “O Sangrento”, publicado semanalmente e com grande circulação no município. Inicialmente é fácil observar que o jornal se volta majoritariamente para notícias policiais, onde as classes populares são sempre as principais personagens dos casos criminosos, aqueles que na poesia de Eduardo Galeano são

os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.


Assim como os humanistas dos séculos XV e XVI chegaram à conclusão de que os ditos selvagens eram sub-humanos, criando um conceito de vazio jurídico que justificou a invasão e a ocupação dos territórios indígenas, o estado, baseado na representação das classes populares como imorais e incapazes, necessitando portanto de tutela, justifica o aniquilamento dos jovens negros e outras ações que tem como objetivo garantir a “ordem” na sociedade.
A análise de sete meses do referido periódico[3] nos forneceu um total de 134 registros de crimes, entre esses, através de heteroclassificação, nos casos em que havia fotos, identificamos 105 negros e 22 brancos protagonistas das ocorrências, caracterizando-se, a maioria, como tráfico de drogas. Esses dados evidenciam a vulnerabilidade dos jovens negros e explicita a proeminência da questão étnico-racial. Cabe abrirmos um parêntese para salientar que o emprego do conceito de raça é questionável e explicar que, embora as ciências biológicas já tenham demonstrado que não há critérios que justifiquem seu uso, optamos pelo mesmo porque, enquanto construção histórica, a eliminação do vocábulo não garante que o mesmo seja banido de seu uso social e político. Ademais, sabemos também que é a raça, materializada no fenótipo, o recurso empregado para a discriminação.
Lembramos que o periódico não é tomado como uma fonte neutra, mesmo porque nenhuma fonte o é, mas como portador de intencionalidades e subjetividades construídas nas relações sociais, onde os vínculos mantidos pelo jornal e suas fontes de recursos estão consideravelmente implicados.  Outrossim, não consideramos que o periódico possa nos fornecer informações sobre os contextos e territórios das classes populares, que é o interesse central da pesquisa que ora se desenha, pois ele expõem um discurso onde as vozes desses sujeitos não estão presentes e onde os  mesmos são arranjados como peças descartáveis e incômodas de um jogo. Mas esses dados podem nos ajudar a compreender que os subalternizados, como tem nos mostrado a história, não sucumbem em silêncio. Os discursos, declaradamente discriminatórios que permeiam o periódico e que se caracterizam como discursos sobre e não com, não são nosso foco, o que nos interessa é em que medida existe uma resistência nas ações noticiadas, em que medida a ruptura com o tênue limite existente entre vida e morte pode nos apontar um esgarçamento da ordem e moral estabelecidas nos territórios.

Inconclusões

De acordo com Censo 2010 do IBGE[4] (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), dos 190.755.799 habitantes do Brasil, 96,7 milhões de brasileiros (50,7% da população) são negros e 91 milhões são brancos (47,7%). Esses dados nos mostram claramente que a população negra constitui a maioria do povo brasileiro, o que nos leva a interrogar por que a mídia, as instituições e as políticas públicas invisibilizam esse contingente tratando a população negra como minoria. É claro que não defendemos aqui que por ser numericamente superior, determinado grupo deva gozar de privilégios em detrimento de outros. Consideramos que em uma sociedade democrática todos devem ser respeitados em suas especificidades e ter acesso às condições que garantam o acesso aos direitos.
Ainda hoje existe a ilusão de que vivemos em uma democracia racial, o fato de não termos dispositivos legais de segregação, ou seja, o fato de nosso racismo não ser institucionalizado, reforça a mentira de que somos uma sociedade harmônica onde todos gozam de oportunidades iguais. O Mito da Democracia Racial, representado por Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala, ainda impregna o senso comum, mascarando, sob uma tendenciosa harmonia, o racismo presente entre nós. Nos lembra Schwarcz (2012) que

O “cadinho das raças” aparecia como uma visão otimista do mito das três raças, mais evidente aqui do que em qualquer outro lugar. “Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no corpo, a sombra, ou pelo menos a pinta, do indígena e/ou do negro”, afirmava Freyre, tornando a mestiçagem uma questão de ordem geral.

Basta uma rápida incursão pelos espaços historicamente ocupados pelas elites brasileiras, como os cursos mais prestigiados das universidades, para percebermos a ausência quase completa dessa diversidade, uma vez que estes espaços são majoritariamente ocupados por uma elite branca e de alto nível socioeconômico, sendo que isso, mais do que qualquer outro fator, comprova a pouca equidade de acesso aos instrumentos de ascensão social, demonstrando que o artigo 5º da Constituição, que afirma que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, é acintosamente desrespeitado, não existindo além do limitado alcance do texto escrito, estando muito longe de ser um dos princípios formadores sobre os quais nossa sociedade deveria se firmar.
Percebemos a segregação racial nos espaços da cidade, os bairros periféricos são onde vive a maioria dos negros (entendendo os mesmos como a adição de pretos e pardos). Assim, constituem-se os territórios onde se concentram as habitações populares e sobre os quais se constroem representações calcadas na imoralidade e na necessidade de intervenções, já que sua população é estereotipada como violenta e carente de civilidade e aqueles territórios onde as classes populares se empregam, são os hotéis, condomínios, casas de veraneio e outros.
A educação, escolarizada ou não, reflete e atualiza o contexto de desigualdade presente na sociedade brasileira. A escola pública como instituição responsável pela socialização dos conhecimentos historicamente construídos e por sua transmissão às novas gerações tende a reproduzir as desigualdades inerentes a sociedade em que está inserida, mas jamais podemos nos esquecer de que ela também pode ser um espaço privilegiado para a realização de ações que tenham como objetivo desconstruir práticas discriminatórias, em especial as práticas racistas. Em um sentido mais restrito, a escola é um dos espaços privilegiados para a implantação de políticas públicas que visem democratizar a sociedade que se encontra racialmente estratificada.
Nas últimas décadas ocorreu uma inegável expansão das vagas oferecidas, especialmente no Ensino Fundamental, promovendo a democratização do acesso à escola com a inclusão de diferentes grupos sociais e culturais nesse espaço, porém nos parece que a instituição permanece excluindo em seu interior aqueles que não possuem os conhecimentos valorizados pela mesma, com uma lógica meritocrática e monocultural. Desse modo, as crianças negras deparam-se com dificuldades adicionais em seu trânsito escolar, tendo que lidar com conteúdos e práticas discriminatórias e racistas, pois não há, na maioria das vezes, uma orientação multicultural nas ações empreendidas na escola.
              A trajetória escolar de alunos brancos e negros é desigual e evidencia a discriminação racial na educação brasileira. Enquanto os primeiros realizam uma trajetória menos acidentada, os últimos têm de lidar com piores condições sociais e econômicas, racismo e discriminação. Entretanto, a pobreza não explica a desigualdade racial, afirmar que somente são discriminados os pobres, admitindo a existência de discriminação exclusivamente baseada na classe social, constitui um reducionismo das questões raciais à questão econômica. Do contrário, percebemos que o desenvolvimento econômico não atenua as desigualdades entre os grupos étnico-raciais.
Desse modo, assumimos como fundamental para essa pesquisa, os trânsitos pelos territórios das classes populares e os encontros com os sujeitos que os constituem em seus cotidianos. Aí, nesse lugar, supostamente encontraremos as vozes, as cores, as tecnologias, os saberes, as línguas, as presenças daqueles com os quais pretendemos dialogar. Lugar onde, em vez de carência, há riqueza de práticas e estratégias, onde se constroem possibilidades e onde, em vez de submissão se constroem resistências.

Referências
ALVES, Luciana Pires e SILVA, Rodrigo Torquato da. “Eu era a carne, e agora, sou a própria navalha” - pesquisas viscerais em alfabetização. Disponível em http://alfavelapesquisa.blogspot.com.br

FANON, Frantz. Pele Negra Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

HERNANDES, Leila Leite. A África na sala de aula – Visita à História Contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2008.

SANTOS, Boaventura de Sousa e Meneses, Maria Paula. Prefácio. In: SANTOS, Boaventura de Sousa e Meneses, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.

SANTOS, Boaventura. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa e Meneses, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto nem branco, muito pelo contrário: cor e raça na sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012.





[1]    DNER é a sigla de Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, que é um órgão federal e está vinculado ao Ministério dos Transportes. Em 2001, o DNER foi substituído pelo DNIT, que significa Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes.            
[2]    Mapeamento realizado no contexto do grupo de pesquisa ALFAVELA – Alfabetização, Classes Populares e o Cotidiano Escolar do Instituto de Educação de Angra dos Reis (RJ) – Universidade Federal Fluminense, coordenado pelo professor Rodrigo Torquato.
[3]    Pesquisa em processo, realizada pelo grupo ALFAVELA e iniciada no ano de 2011.
[4]  Em: <http://www.ibge.gov.br. Acesso em 13 de fevereiro de 2012.


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