Marcela
Paula de Mendonça
Resumo:
O presente trabalho origina-se de pesquisa
realizada no Mestrado Acadêmico em Educação na Universidade Federal Fluminense
e apresenta breves reflexões acerca do resgate da memória da construção da
minha identidade negra como elemento essencial de uma aprendizagem permanente
sobre a minha própria prática como professora orientadora educacional. No
processo de formação permanente no campo profissional, o retorno às questões
sobre a minha construção identitária tornou-se elemento fundamental para
aprender, com os praticantes das escolas em que atuei e atuo como professora
orientadora educacional, os caminhos possíveis para uma ação pedagógica que se
disponha a ampliar os sentidos e nos permita ver para além dos estereótipos e
estigmas estabelecidos em torno das crianças negras e suas famílias. Para a
melhor compreensão das questões emergidas do cotidiano das minhas práticas, foi
necessário voltar o olhar para a construção da categoria negro (GOMES, 2008, 2010; MUNANGA, 2010, 2012) e da relação entre
raça e Colonialidade (QUIJANO, 2002, 2005, 2010), como
elementos importantes para o entendimento das relações étnico-raciais na escola
atualmente. Com isso, busco repensar as práticas da Orientação Educacional e a
necessidade de que as histórias e experiências de professores/as, estudantes e
suas famílias contribuam para possíveis reinvenções da escola como espaço capaz
de provocar fissuras no padrão eurocêntrico, hierarquizante e desqualificador
das crianças e jovens negros.
Palavras-chave:
Cotidiano Escolar. Orientação Educacional. Raça.
Colonialidade.
Introdução
Ter na pele a cor da noite
(...)
É preciso ter coragem
Pra ter na pele a cor da noite
E sobreviver nesses dias
É preciso ter coragem
E os olhos da lua a brilhar
Pra ser o futuro que se quer
Mesmo o que virá
(Marcio Meireles)
A
cada dia um novo desafio: é assim que sinto a Orientação Educacional. Tentando
equilibrar as exigências do trabalho pedagógico, tais como leituras de
relatórios bimestrais dos alunos do ciclo e a construção de ações e práticas
que colaborem para que as aprendizagens se deem em plenitude, vou construindo
minha prática de orientadora. Entre erros, muito mais do que o desejado, e
acertos, muito menos do que o necessário, vou me tornando orientadora
educacional da escola pública.
Ainda
adolescente, a Geografia era meu principal interesse. Desejava trabalhar no
IBGE, dizia querer fazer pesquisas para entender melhor o Brasil. A chamada
Geografia Crítica era hegemônica na escola e ela me abria a possibilidade de
conhecer mais o mundo, refletindo sobre ele. Mas, curiosamente, também dizia
querer dar aulas, não para crianças, mas para adultos, à noite, para compartilhar
o que pesquisaria no IBGE. Não queria trabalhar com crianças.
Hoje,
observando esses desejos de menina-adolescente, considero-os muito
pretensiosos. Por outro lado, percebo que já havia em mim muitos dos objetivos
que ainda hoje busco materializar: aprender mais sobre mim e os outros,
pesquisar, partilhar o aprendido.
No
momento de escolher a formação em nível médio observei que o único curso na
área de humanas que me interessava era o magistério. Após concurso, ingressei
na Escola Normal Carmela Dutra, em Madureira, município do Rio de Janeiro. No
berço do samba, próxima à tradição cultural das escolas de samba Portela e
Império Serrano, fiz minhas primeiras aproximações com o magistério.
Entretanto,
essa proximidade era muito mais geográfica do que cultural. A escola estava
cercada pelo bairro, que tem em seu comércio e sua cultura suas principais
marcas, mas não se permitia encharcar pelas marcas do lugar.
Na
Escola Normal, a Pedagogia se mostrou uma alternativa. Fui apresentada às suas
habilitações e comecei a considerar a possibilidade. Porém, ainda havia muitas
dúvidas, que se desfizeram no momento em que compreendi que meu interesse era
estudar educação e todos os assuntos que se relacionassem a essa área.
Interessante
observar que os/as professores/as do curso Normal não pareciam entusiastas da
Pedagogia. Pelo contrário, cheguei a ser censurada ao expor minha escolha pela
Pedagogia. Menina, esse curso vai acabar!
Pedagogia é uma carreira em extinção!
Ainda
no Normal, tive conhecimento da Orientação Educacional e, entre todas as
habilitações da Pedagogia, ela foi a minha escolhida. Queria ter contato com os
estudantes e suas famílias, pensar a escola na relação da comunidade em que se
inseria. Foi justamente esse desejo que me levou à Universidade Federal
Fluminense (UFF), único curso, na época, multi-habilitado entre as
universidades para as quais prestei vestibular. Já no vestibular, meu desejo
era fazer parte do corpo de estudantes da UFF. Imediatamente após concluir a
formação de professores em nível médio, iniciei os estudos na Faculdade de
Educação dessa instituição.
Ainda
como estudante de Pedagogia, fiz concurso para o magistério da rede estadual de
ensino do Rio de Janeiro. Fui aprovada e, em 2002, tive minha primeira turma
como professora regente em uma escola no município de São Gonçalo.
Em
2006, iniciei um curso de pós-graduação lato
sensu em História da África e do Negro no Brasil, na Universidade Cândido
Mendes. Este curso tinha uma dupla função: atender às exigências da Lei 10.639/03
e compreender melhor minha própria história. Buscava possibilidades de
conhecimentos históricos que na minha geração de estudantes nos foram negadas.
No
mesmo ano, iniciei meu trabalho como orientadora educacional, após aprovação em
concurso público para a rede municipal de ensino de Duque de Caxias, município
na Baixada Fluminense. Fui trabalhar em uma escola no bairro Jardim Gramacho,
onde permaneci até maio de 2011.
Inicialmente,
eu iria para outra escola, mas por equívocos da Secretaria de Educação (SME)
tive que escolher uma nova unidade de ensino. Ofereceram-me uma escola, já me
advertindo: É uma escola lá no lixão.
Perguntei se era um lugar perigoso e todos me garantiram que não era. Naquele
momento, a escola não tinha orientadores educacionais e senti que a SE me
sugeria aquela escola com certa insistência. Justamente por não ter
orientadores, a escola solicitava alguém que pudesse fazer horário vertical
(manhã-tarde/tarde-noite). Entretanto, eu somente poderia trabalhar no horário
da manhã, em virtude do meu compromisso como professora na rede estadual em São
Gonçalo. Deram-me o telefone da então diretora e ela aceitou minha condição de
somente poder trabalhar no turno matutino.
No
dia seguinte me apresentei. Confesso que fiquei impactada ao ver uma escola tão
grande do lado de fora. Era um prédio de dois andares, com um grande campo de
futebol com grama sintética.
Entrei,
apresentei-me e fui logo trabalhando. Não havia professores para todas as
turmas e tínhamos que improvisar, juntar as crianças por faixa etária e outros
critérios possíveis no momento. Também fui apresentada à orientadora pedagógica
que, assim como eu, acabara de entrar na rede através do concurso, e que também
trabalharia naquela escola como professora regente.
Logo
passada a agitação dos primeiros dias, deparamos-nos com o desafio de sermos as
únicas orientadoras de uma escola que atendia, naquele momento, aos nove anos
do Ensino Fundamental e com mais de trinta turmas, incluindo sala de recursos e
classe especial de autistas.
A
escola poderia ter até três professoras orientadoras pedagógicas e duas
professoras orientadoras educacionais, mas só tinha nós duas. O começo do
trabalho foi difícil e, entre idas e vindas, solicitamos a mudança de escola
três meses após o início das aulas, porém não fomos atendidas pela SME.
Permanecemos trabalhando, mas, por questões de saúde, a orientadora pedagógica
entrou em licença médica. Por um período, vi-me como a única orientadora em uma
escola enorme que deveria ter cinco professoras orientadoras. Algum tempo
depois, chegou outra orientadora educacional e uma orientadora pedagógica
(dupla jornada, ou seja, hora-extra).
O
primeiro ano foi muito difícil, os anos seguintes também não foram fáceis. A
cada dia o trabalho da Orientação Educacional se mostrava mais complexo. Havia
expectativas quanto à atuação da Orientação Educacional às quais eu não poderia
corresponder. Ideias sobre a orientadora educacional que deveriam ser
desmistificadas. Nada era fácil. Atender a responsáveis, alunos/as e professores/as
não somente era exaustivo, mas trazia à tona as complexidades inerentes à vida
cotidiana da escola.
O
tempo inteiro as professoras enviavam alunos para a sala da Orientação. Ao
mesmo tempo, frequentemente, eu convocava os pais para conversar sobre seus
filhos. Isso aqui parece fila do INSS! -
um dia ouvi de uma colega ao observar a quantidade de pessoas que aguardavam
para conversar comigo. Sentados, lado a lado, mães, avós, irmãos, alunos mais
novos, alunos mais velhos, todos aguardavam os conselhos, as “broncas”, as
recomendações que eu poderia lhes dar. Além disso, muitos colegas e demais
funcionários da escola me convocavam para resolver conflitos entre alunos
ocorridos dentro ou fora de sala.
Hoje,
percebo que parte da dificuldade do trabalho era consequência das minhas
escolhas como professora orientadora. Ao mesmo tempo em que estava realmente
disposta a ouvir as famílias, havia a expectativa dos meus colegas de que, após
as conversas com as famílias, tudo mudasse, ou seja, que as dificuldades ou
conflitos com os alunos dentro ou fora de sala estivessem resolvidos.
Ao
falar sobre as crianças e sobre como elas e suas famílias deveriam
se comportar ou atender às expectativas da escola, meu trabalho apenas
amenizava alguns conflitos, mas não nos ajudava a ver, identificar e enfrentar
as dificuldades e os conflitos que vivíamos naquela escola. Por outro lado,
aprendi a ouvir e, ao ouvir, aprendi muito sobre os alunos, mas também com eles
e suas famílias. Pois nessa prática, que necessitou de diálogo, fui buscando (re)construir
uma prática mais coerente, não apenas no discurso, mas também nas ações.
Como
nos lembra, muito pertinentemente, Paulo Freire (1987, p. 44):
A
palavra inautêntica, por outro lado, com que não se pode transformar a realidade,
resulta da dicotomia que se estabelece entre seus elementos constituintes.
Assim é que, esgotada a palavra de sua dimensão de ação, sacrificada,
automaticamente, a reflexão também, se transforma em palavreria, verbalismo,
bláblábá. Por tudo isto, alienada e alienante. É uma palavra oca, da qual não
se pode esperar a denúncia do mundo, pois não há denúncia verdadeira sem
compromisso de transformação, nem este sem ação.
Entretanto,
não pude dar continuidade a esse processo. As idiossincrasias da vida e do
trabalho pedagógico nos apresentam o inesperado. Eis que a roda da vida me
carregou para outro lugar e tive que sair dessa escola.
Em maio de 2011, transferi-me para outra
escola, em que desenvolvi a minha pesquisa de Mestrado. Sua escolha se deu aleatoriamente,
eu não tinha nenhuma referência da escola (fosse positiva ou negativa). Fui no
escuro e, chegando lá, os desafios permaneceram. Alguns eram semelhantes, em
função das necessidades próprias de uma escola, outros eram específicos daquele
lugar, daquela experiência escolar, daqueles praticantes da escola.
Carreguei
e carrego comigo todas as questões, reflexões, dúvidas, medos e marcas dessa
experiência primeira como professora orientadora. Iniciar meu trabalho nessa
posição, em uma escola com uma realidade tão adversa, fez-me compreender a
minha prática como elemento complexo, mas também importante para ampliar as
possibilidades de construção de uma escola que se proponha a pensar junto e
incluir. Trabalhando em um lugar em que a exclusão ganha contornos tão radicais
e em que a presença do poder público se faz pouco presente, a escola se torna
espaço muitas vezes de confluência das tensões e conflitos da comunidade, e o
primeiro profissional convocado a participar desse processo de mediação é o/a
professor/a orientador/a.
Nessa experiência de ir me fazendo, a cada
dia, professora orientadora educacional, o cotidiano se impõe. A vida diária,
aquilo que preciso fazer sempre e, ao mesmo tempo, fazer diferente, impõe-se à
minha prática.
E
chegando à escola, descobri que eu era o outro
Eu
entrei na escola por volta dos dois anos de idade. Na verdade, comecei a
frequentar escola com minha avó. Ela era merendeira de uma escola particular,
próxima à nossa casa. Logo me tornei aluna daquela escola. Em virtude da pouca idade, tenho poucas
lembranças do período. Fiz toda a Educação Infantil naquela escola.
Pela
primeira vez, estive na condição de outro.
Certa vez, cheguei a minha casa chorando e perguntei à minha mãe: Mãe, por que meus colegas me chamam de
macaca? Por quê? Minha mãe quis saber mais detalhes, se havia ocorrido
alguma briga, discussão. Expliquei que não. Que só não entendia por que me
chamavam daquela forma. Não conseguia me sentir sequer agredida, pois de fato
não entedia. Chorava porque me incomodava que alguns colegas decidissem não me
chamar pelo nome e pela animosidade com que aquelas palavras eram ditas. Minha
mãe me explicou que também não entendia bem o motivo, já que os macacos são
seres tão bonitinhos. Aquilo foi o suficiente para secar minhas lágrimas.
Sabedoria de mãe!
Logo
depois, ela engatou outra conversa. Pelo
menos naquele momento, para mim, criança de 4 para 5 anos, era outra conversa.
Ela começou a explicar que nossa família era negra, mostrando a pele do meu
braço e do dela, e que muita gente faria comentários depreciativos, “feios”, a
nosso respeito. Mas que eu não deveria ligar, pois Gente negra é muito linda! Não pensei muito sobre o assunto. Pelo
menos acho que não, nessa bricolagem de memória. Talvez, naquele momento exato,
os fios não tenham se conectado, mas os ecos dessa conversa soaram na escola.
Por
algum motivo, que não sei exatamente se foi aquela conversa, mas a única coisa
que me ocorre nesse momento é que sim, eu me sentia forte. Quando alguém
tentava me ofender eu logo dizia: Sou
negra!, e isso desconcertava meus colegas de escola. Não sou macaca, sou negra!, Não sou neguinha, sou negra!, Não sou
crioula, sou negra!. Não me lembro de ter necessitado dizer isso muitas
vezes, não me lembro de muitas ofensas. Não tantas que merecessem lugar
especial na minha memória. Evidentemente, a questão do preconceito não estava
resolvida em mim, compreensões ingênuas do mundo, características da infância
atravessavam-me. Especialmente pelo fato de que a diversidade humana nunca me
pareceu uma questão relevante nas escolas em que estudei.
As
operações aritméticas, as orações coordenadas e subordinadas, os órgãos e
aparelhos do corpo humanos, regras do vôlei, a queda do muro de Berlim, as
implicações do recente fim do socialismo e até a escravidão no Brasil foram
questões nas/para as escolas em que estudei. Mas a diversidade humana, a
construção da sujeição de um povo ou de povos com línguas próprias e soberanias
que foram aviltadas no processo de dominação e exploração perpetrado pela
Europa Ocidental, a partir do século XV, não eram questões, ou não eram
questões tão importantes na/para essas escolas.
Mas,
certamente, não fui a primeira e sei, hoje, como professora, que tampouco fui a
última a ser chamada de “macaca” na escola. A animalização do negro, inclusive,
não é uma invenção da escola. Essa instituição sim e seus sujeitos estão
encharcados das construções ancoradas no “padrão branco de humanidade”. Não
foram meus colegas de escola, nem suas famílias que inventaram esse tipo de
desqualificação, tampouco essa necessidade de demarcar lugar do branco e do não
branco. A necessidade de colocar cada um em seu lugar, de colocar o negro em seu lugar, em um lugar de inferioridade,
em um lugar de não humano.
Todo
o processo de construção do poder e dominação colonial dependeu dessa
desqualificação através da criação de categorias de humanos. O próprio processo
de ser negro, tornar-se negro, é atravessado por isso. A construção do africano
como negro e do negro como escravo[1]
serviu de pedra angular para a conformação dos processos de dominação que ainda
hoje organizam a sociedade ocidental.
Entretanto,
o próprio sentido de negritude vem sendo reconstruído, principalmente pelo
Movimento Negro, e ainda permanece em transição. Contudo, ainda,
A negritude
e/ou a identidade negra se refere à história comum que liga de uma maneira
ou de outra todos os grupos humanos que o olhar ocidental “branco” reuniu sob o
nome de negros. A negritude não se refere somente à cultura dos povos portadores
da pele negra que de fato são todos culturalmente diferentes. Na realidade, o
que esses grupos humanos têm fundamentalmente em comum não é como parece
indicar, o termo Negritude à cor da pele, mas sim o fato de terem sido na
história vítimas das piores tentativas de desumanização e de terem sido suas
culturas não apenas objeto de políticas sistemáticas de destruição, mas, mais
do que isso, de ter sido simplesmente negada a existência dessas culturas.
Lembremos que, no início da colonização, a África foi considerada um deserto
cultural, e seus habitantes como o elo entre o Homem e o macaco (MUNANGA, 2012,
p. 20).
Ao
afirmar, quando criança, Sou negra!,
os atravessamentos eram diversos. Não se tratava, portanto, da construção de
uma identidade de valorização e orgulho, mas uma reação ao estabelecimento de
meu lugar de outro/a da construção
humana. Estabelecendo a busca por identidades que transcendam a posição
prevista para os outros (negros) e
“reconhecendo”, apropriando as marcas coloniais que há em nós, os outros.
As
tentativas de apelidos depreciativos a partir da marca racial nunca foram
motivo de preocupação. De tristeza momentânea sim, mas nada que me preocupasse
por longo tempo.
Ao
iniciar no magistério, passei a vivenciar o preconceito por outro ângulo, pelo
ângulo dos meus alunos. Entretanto, foi a partir da minha atividade como
orientadora educacional que pude atar alguns fios que mobilizam reflexões que
me moveram a buscar, a investigar a questão racial na escola.
Os
apelidos vexatórios, a desqualificação das manifestações culturais e religiosas
de matriz africana, a desvalorização das características físicas do negro, nada
disso para mim era novo.
Porém,
ao ter contato com os alunos e suas famílias, pude perceber que a perversidade
do nosso sistema educacional se faz ainda mais marcante para estudantes e
famílias que podem ser identificadas como negras.
Junto
com insultos e desqualificação de suas características culturais e físicas,
também há um perverso jogo de desqualificação tácito, que culmina por reforçar
e reafirmar o fracasso escolar de crianças e jovens negros. Foi no contato com
as famílias, proporcionado pela Orientação Educacional, que isso se mostrou
mais evidente para mim.
Na
formação para o trabalho, como pedagoga, e mais especificamente como
orientadora educacional, as questões sociais e culturais são exaustivamente
consideradas. Entretanto, não percebia que a questão étnico-racial merecia um
olhar mais apurado. Em última análise, parecia ser considerada como parte das
questões sociais que envolvem a escola, mas não foi merecedora de destaque para
reflexões específicas para nossas ações e atuações profissionais.
Como
nos coloca Gomes (2010), no campo educacional, a questão étnico-racial muitas
vezes é vista como uma tarefa daqueles que têm alguma militância nessa área ou
das professoras e dos professores negros.
Contudo,
para mim, no dia a dia do trabalho pedagógico, pareceu que essa é uma questão
relevante. Não apenas pela grande quantidade de crianças negras encaminhadas
por professores para a Orientação Educacional, como crianças com dificuldades
para aprender ou para se comportar adequadamente em sala de aula, mas pelas
famílias com as quais passei a ter contato e que, de alguma forma, viam-se
diante dos desafios de uma escolarização que muitas vezes subalterniza suas
crianças.
Assim
como eu quando criança, é na experiência escolar que muitos/as estudantes são
“alertados/as” de que são “diferentes”. Porém, ainda hoje ignoramos a questão
étnico-racial negra, quando pensamos o trabalho pedagógico.
Talvez
essa seja uma das faces mais perversas do mito da democracia racial incrustrado
em nossa sociedade. A ideia da “igualdade que apaga as diferenças” (GOMES,
2010, p. 104) torna mais difícil a compreensão das crianças e dos/as jovens que
frequentam a escola hoje acerca das tramas de construção das subalternidades em
nossa sociedade e, assim, vai reciclando concepções desqualificadoras da
população negra.
A
questão é que, na escola, ainda temos dificuldade de compreender que nosso silenciamento
frente às questões étnico-raciais é um motor potente para a estigmatização das
crianças negras que frequentam essa instituição. Reafirma-se, assim, os seus
lugares e de suas famílias como o lugar do outro,
que precisa ser modificado no corpo e na mente para ser aceito ou, pelo menos,
tolerado.
Pente de madeira com dentes de
ferro – reflexões acerca da identidade
Uma
penteadeira e sobre ela uma pequena lasca de madeira, manualmente trabalhada
com dentes finos de ferro. Durante muitos anos, aquela peça foi reinventada por
minha mente e minhas mãos infantis e de minha irmã mais nova, por isso foi
máquina de nos transformar em super-heroínas, foi volante de nossos carros
imaginários e também foi usada em sua função original, pente de cabelo, penteando
inclusive nossas bonecas, até as loiras de cabelos lisos (que eram a maioria).
Esse
pente foi utilizado durante anos por minha mãe, que por algum tempo optou por
não usar nenhuma química no cabelo. Durante anos eu passava aquele pente nos
meus cabelos, num comportamento de imitação muito característico das crianças
pequenas. Ao brincar de adulta, cabia tomar “emprestados” da minha mãe algumas
roupas, sapatos e, claro, o pente de madeira. No meu “mundo dos adultos”, as
pessoas tinham cabelos crespos e os penteavam com um pente para esses cabelos.
O
pente foi um presente de um amigo de juventude, feito a mão, pois não havia
pentes feitos para quem usava cabelo black,
como minha mãe costuma dizer, em referência à moda dos cabelos black power dos anos 70.
Para
além da lembrança da infância, o pente me remete à construção de identidades
que caracterizam aquilo que se convencionou chamar negritude. O cabelo crespo
faz parte do universo de construção dessa identidade. Mesmo naqueles de pele
clara, ele pode indicar uma ancestralidade negra e africana que pode fazer com
que a condição de outro se
estabeleça.
Sinal
diacrítico muito marcante nas relações que se estabelecem no meio escolar: Cabelo de Bombril!, Cabelo de Assolan!,
Cabelo duro!. É natural, inclusive, fazer a referência ao cabelo crespo
como cabelo ruim, inclusive entre
professores e professoras. Essas expressões são comuns de serem ditas e ouvidas
pelas crianças e jovens que frequentam a escola. Ouvi expressões de
desqualificação do corpo negro como estudante e as ouço ainda como
professora.
Faz
parte da construção deste conhecer-se ou identificar-se e ser identificado como
negro, ser confrontado com os comentários sobre esse corpo e o olhar orientado
por um ideal de beleza e adequação realizado a partir do corpo e das
características diacríticas identificadas como do branco. Sendo assim, o cabelo
do negro, visto como “ruim”, é expressão do racismo e da desigualdade racial
que recai sobre esse sujeito. Ver o cabelo do negro como “ruim” e do branco como
“bom” é um conflito” (GOMES, 2008, p. 21).
A
escola é um lugar em que identidades são construídas a partir das interações
que inevitavelmente se estabelecem nesse espaço. Como para o reconhecimento de
qualquer tipo de identidade o olhar dos demais é fundamental, esse processo em
nossa sociedade é cada vez mais complexo. Ele se relaciona com os encontros e
desencontros do próprio olhar sobre os de alguns grupos e a identidade
nacional.
No
Brasil, a construção da(s) identidade(s) negra(s) passa por processos complexos
e tensos. Essas identidades foram (e têm sido) ressignificadas, historicamente,
desde o processo da escravidão até às formas sutis e explícitas de racismo, à
construção da miscigenação racial e cultural e às muitas formas de resistência
negra num processo – não menos tenso – de continuidade e recriação de
referências identitárias africanas. É nesse processo que o corpo se destaca
como veículo de expressão e de resistência sociocultural, mas também de
opressão e negação (GOMES, 2008, p. 21).
É
nesse processo, que se faz nas relações e nas palavras ditas no dia a dia, nas
expressões e atitudes realizadas cotidianamente, que vamos aprendendo que somos
ou não negros e negras e quais os sentidos, positivos e negativos, da negritude
em nossas vidas.
A
assunção da negritude ou a sua negação são ambos processos complexos. Se, por
um lado, fomos tornados negros, transformados negros, inventados, criados como
categoria - primeiro como categoria animalizada, posteriormente como categoria
humana diferente, diferente para ser inferiorizada -, também nos tornamos
negros para resistir a essa desqualificação, a condição de sub-humanos (SANTOS,
2010).
Ser
negro implica, primeiro, admitir uma construção sociológica, política,
cultural, inventada na contraposição a alguém, aquele, o “criador”, sempre em
posição superior à nossa. Ser negro implica, antes de qualquer coisa, como diz
Fanon (2008), estar preso, eternamente, ao branco.
Esse
nó, entretanto, ata todos da sociedade e acaba por estruturá-la, pois as relações
sociais são balizadas pelo corte racial. Fanon (2008) nos adverte para o fato
de que todos estão presos a essas relações. Sendo assim, negros estão presos
aos brancos, mas os brancos também estão presos à identidade de oposição do
negro.
A
construção de identidade como elemento fundamental da resistência do negro faz
parte não apenas dos reveses da história do Brasil, mas das necessidades
primeiras de sobrevivência da população. Sempre foi necessário criar meios,
táticas para sobreviver à opressão, para continuar existindo. Essas táticas
ainda são vistas no cotidiano da educação brasileira, mais especificamente na
escola pública, que atende à grande parte, por que não dizer, à maioria da
população negra brasileira.
No
dia a dia de crianças, adolescentes, jovens, de mães, pais, avós e avôs, tios e
todos aqueles responsáveis diretamente pelas crianças, o que inclui professores
e demais profissionais da educação, essas táticas muitas vezes são vistas como
resistências ou violência. De fato, a construção identitária do negro passa
pela margem, muitas vezes sem uma consciência. Identidade e consciência não
necessariamente caminham juntas, pelo menos não no espaço escolar. Muitas
vezes, resistir é um caminho de identidade que se faz de maneira inconsciente,
ou pelo menos não planejada.
Neusa
Santos Souza, em seu livro Tornar-se
Negro (1983), trata dos processos
psicológicos de construção da identidade negra a partir dos relatos de mulheres
e homens negros em ascensão social, à luz dos conceitos da Psicanálise.
Nesse
trabalho, a autora mostra, entre outros aspectos, o quão difícil foi para os
entrevistados, em suas infâncias e na trajetória escolar, reconhecerem-se como
negros. Diante da impossibilidade de transformar-se efetivamente em branco,
ideal do que é certo e bom, estabelece-se uma profunda frustração e a
necessidade frequente de superação, de ser sempre bom, de ser sempre o melhor,
como uma maneira de serem aceitos.
De
certa forma, para alcançar o sucesso, houve, em algum momento, a negação da sua
negritude, se não dos próprios entrevistados, das suas famílias, no processo de
instruí-los e educá-los.
A
resistência a essa escola que deseja embranquecer é não se render totalmente ao
que ela nos diz, a uma educação embranquecedora e correr, assim, o risco de não
ser um bom aluno. A resistência ao formato da escola pode ser também uma tática
de enfrentamento ao embranquecimento perpetrado pela escola, não apenas pelas
regras disciplinares, mas também pelos conteúdos ministrados por ela[2].
As táticas não necessariamente vêm planejadas ou planejadas da
forma como cartesianamente fomos acostumados a vê-las, diferentemente das
estratégias, que na escola se fazem pelo currículo, pela prática pedagógica
imaginada como a melhor para aqueles grupos, a prática pedagógica valorizada
como ideal (e aí incluo também as chamadas teorias críticas) e das próprias
relações interpessoais que se estabelecem entre alunos, professores,
responsáveis e demais funcionários da escola.
De
fato, as táticas estabelecidas por crianças, adolescentes, jovens, estudantes e
familiares, para o enfrentamento das questões raciais na escola, passam pela
reafirmação de identidades que, talvez, nem estejam tão claras, mas que são
percebidas por essas famílias e crianças, jovens e adultos frequentadores da
escola pública brasileira. São percebidas como traços de sua diferença em
relação às expectativas escolares.
Não
necessariamente as famílias pensem que essa identidade é por si só boa. Às
vezes, dão a impressão de que essa identidade precisa ser retirada, ser
extirpada. De alguma forma, a negritude tem que ser retirada dos corpos. Os
corpos devem ser adestrados para outra identidade, anteriormente reconhecida
como civilizada, neste momento como de desenvolvimento, progressista, avançada.
Muitas vezes, as táticas são de resistência, mas, ao mesmo tempo, de uma
necessidade de que esses corpos sejam transformados num corpo idealizado[3]
(SOUZA, 1983).
De
fato, há uma contradição e não poderia ser diferente em uma sociedade marcada
por tantas ambiguidades nas relações que se supõem identitárias. Essas
ambiguidades se refletem, inclusive, no seu racismo (GOMES, 2008; 2010).
Nas
relações de herança colonial que podemos identificar no espaço escolar,
certamente aquelas relativas à questão étnico-racial - mais especificamente ao
negro e sua condição de vida -, culturais, históricas e até psicológicas
parecem ganhar força. Isto é, mesmo que escondidas, camufladas, acabam por
vazar e se fazem visibilizar, fazem-se sentir, tornando o espaço escolar denso.
A
relação étnico-racial não tem essa característica na escola brasileira por mero
acaso. A situação do negro, a história do negro, a vida do negro são
fundamentais na compreensão da história do Brasil, pois são elementos
fundamentais da nossa história. Fazem-se, obviamente, presentes na história da
escola de uma maneira simples e objetiva, nos corpos que nela circulam, nos
sujeitos que nela se fazem e que ela, a escola brasileira, constroem, seja pela
presença, seja pela ausência.
Além
disso, a questão étnico-racial é importante para se pensar o Ocidente, a
ciência, a cultura ocidental, a organização espacial, as relações de poder, a
constituição de classes e o pensamento daqueles que se fazem hegemônicos porque
ganharam força traçando a Linha do Equador como marca/margem fundamental de
distinção para o poder e a dominação.
A
questão étnico-racial está presente no Ocidente. Entretanto, na sociedade
brasileira, tem uma força imensa, também pelo legado social, econômico e
cultural deixado pelas populações africanas e por seus descendentes em nossa
história e sociedade, considerando-se o fato de que nosso país recebeu milhões
de africanos escravizados[4].
Essa
questão também me parece fundamental na formação de cada professora e
professor. O resgate da própria história das professoras e professores negros
como elemento essencial para que possamos repensar as práticas pedagógicas
cotidianas na escola podem nos ajudar na formação permanente que os encontros e
desencontros ocorridos no interior das escolas impõem a cada um/a de nós.
REFERÊNCIAS
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador:
EDUFBA, 2008.
FREIRE,
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as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascenção social. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1983. (Coleção Tendências, V. 4)
[1]O termo escravo reafirma a condição do ser de naturalmente dotado à
condição de dominado e servil. Entretanto, ao se mergulhar nos
processos históricos, sociais e culturais que sustentam o sistema colonial,
incluindo a escravidão (elemento fundamental para essa estrutura),
compreende-se que não há escravos, mas escravizados.
[2] Nesse
sentido, o conceito de Colonialidade como elemento
fundante dessa sociedade que impõe não apenas um modelo de comportamento, mas
também de saberes válidos para a sociedade, se faz muito significativo para ampliar
nossos sentidos acerca da escola que cotidianamente construímos.
[3] No livro de Neusa Santos Souza, um dos relatos mais marcantes é de
uma orientação dada a uma de suas entrevistadas pela avó: “Minha avó não
gostava de negro. Dizia que crioulo, sobretudo o negro, não prestava: ‘se você
vir confusão, saiba que é o negro que está fazendo; se vir um negro correndo é
ladrão. Você tem que casar com um branco pra limpar o útero” (Luísa) (SOUZA,
1983, p. 30). De certa forma, a avó sugere uma assepsia do corpo da neta através
de uma união com um homem branco.
[4] Estudos estimam que o número de escravizados trazidos para o
Brasil entre os séculos XVI e XIX gira em torno de 3.500.000 e 3.600.000
(SALLES; SOARES, 2005).
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