sexta-feira, 28 de junho de 2013

DE VÂNDALOS A BANDIDOS: BRASILIDADE SEM POBRES

Fábio Rodrigues
Heitor Collet
Rodrigo Torquato da Silva

Foto: Adriano C. Batista

O presente texto é um convite para que o leitor pegue carona na itinerância de três professores, sendo dois deles "crias de favelas" e o outro "cria do asfalto", na efeverscência dos espaços que protagonizaram diferentes manifestações reivindicatórias e cuja consequência dos conflitos foram de ordens diferenciadas na resposta do Estado. A ideia é mostrar um ângulo da questão, diferente de um ponto de vista daqueles que registraram os fatos protegidos pela distância dos sobrevôos dos helicópteros. O que propomos é um mergulho nas entranhas da cidade em que o esbarrar de corpos nos mancharam não só de suor e lágrimas, mas fundamentalmente de sangue. 



Asfalto-Favela

Quase uma semana se passou e, após novos protestos e pronunciamentos dos governantes, continua ainda difícil compreender exatamente o movimento que toma conta das ruas. Ao nos lançarmos entre cartazes, gritos, cantos e lágrimas (algumas de emoção, outras de puro pavor – provocadas pelas bombas e pelo gás de pimenta), nos esforçamos para sintetizar as ideias e nos convencer de que, desta vez, não se trata de algo que está diretamente atrelado aos "acontecimentos midiáticos" – fenômenos de formação de opinião (e ação) plantados pelas grandes empresas de comunicação para sustentar não só a indústria da notícia, mas, principalmente, suas condições próprias de uso do poder. Em suma: queremos acreditar que não se trata de algo passageiro. E pelo que tudo indica, não é.

Entre os discursos, há quem deposite o caos das depredações na conta de alguns "playboys" de classe média, a intitulada juventude "rebelde sem causa". Há quem incite que se tratam de infiltrados – pessoas contrárias as manifestações e que ali se encontram para desqualificar algo que é legítimo. Por sua vez, difundido com a cooperação do monopólio da grande imprensa, o discurso dos governantes já é bem mais objetivo: são os "vândalos".

Com a pulverização das manifestações (fenômeno de difícil leitura que abre uma brecha para o protagonismo de alguns segmentos específicos das classes populares), já começa a ecoar na grande imprensa o discurso que diz que não se tratam de "vândalos" mas, sim, de "bandidos". "Vândalo" é um termo utilizado pela classe dominante e pela classe média para classificar seus jovens quando os mesmos cometem delitos. É uma questão de discursividade de classe: certas ações oriundas de playgrounds de edifícios são "vandalismo", enquanto as dos becos e vielas das favelas são "bandidagens".

Nesse "tiro de 12" de interesses, contudo, a agonia é saber nesse momento se movimentos nascidos em corredores das universidades públicas estão dispostos a comprar o barulho das manifestações e suas consequências quando o “morro descer e não for carnaval”. Já foram 10 óbitos confirmados na Favela Nova Holanda, no Rio de Janeiro. É hora de se perguntar: somos todos "passe livre" quando o fuzil canta na favela ou apenas quando a borracha bate no “lombo” branco do asfalto?

Tentando se proteger da tropa de choque que avançava montada em motocicletas, em Niterói, dois grupos foram acuados em uma rua que se projetava para para uma bifurcação, o primeiro formado por jovens brancos trajando tênis e mochilas e, o outro, composto por jovens negros de chinelos e sem camisas. No calor da decisão, os dois grupos se separaram, indo o primeiro pela direita, para o Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal – onde só entra a Polícia Federal, e o segundo pela esquerda para a Favela – onde entra quem quer na hora que quiser. Adivinha atrás de quem a tropa de choque foi atrás?

Balizada pelas palavras e conceitos de livros ou por conversas de butecos de esquina, qualquer percepção mais aguçada é capaz de compreender que a junção de alguns fatores no tempo histórico é como um barril de pólvora sendo preparado para explodir. O estopim é a fagulha e o nosso já teve seu preço definido: 20 centavos.

A possibilidade de mudança começa a se tornar real se a população acompanhar o debate e pressionar deputados e senadores para este fim. E caso estes senhores atravanquem o processo através de suas manobras junto ao discurso manipulador das grandes empresas de comunicação interessadas, o caminho e um só. Todos eles têm endereço e telefone. Por exemplo, para quem ainda não sabe, o endereço da sede do jornalismo da Rede Globo de Televisão é rua Jardim Botânico, número 266, Lagoa, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Mas, antes, pensemos bem como chegar até lá. Os capitães do mato nos aguardarão com suas chibatas.

Não me convidaram para essa festa...

Saindo do Jardim Botânico para “brotar” na Avenida Brasil, o que vimos foi um ambiente sombrio. Como há décadas não se via naquela localidade. O incomum vazio das ruas - que, em dias normais, estão movimentadas pelo vai e vem de trabalhadores, moto-táxis, ambulantes, o som das máquinas de músicas dos botecos – indicava, juntamente com os olhares tensos e apreensivos de moradores em suas janelas, que havia algo a se temer na favela Nova Holanda. Seguimos caminhando em direção à rua onde situa-se uma ONG que, naquele momento, tentava organizar algum ato que chamasse a atenção da mídia, no intuito de denunciar a barbárie e a carnificina perpetrada pelo Estado, por meio do BOPE, na noite anterior.

Cerca de 30 pessoas, das quais a maior parte era branca e de fora da favela, se articulavam sob a vigilância atenta dos homens da polícia militar e a curiosidade de meia dúzia de jornalistas com seus coletes a prova de balas (!). As denúncias que chegavam dos moradores davam conta de que a polícia “esculachou” a favela. Dentre as 8 mortes de moradores[1], algumas teriam sido provocadas por facadas, outras, dentro de casa, onde havia rastros de sangue, como se a vítima tentasse escapar. 

A investida macabra do BOPE havia sido motivada pelos acontecimentos do dia anterior, quando cerca de 500 jovens de Bonsucesso e da Maré realizavam uma manifestação que começara na Praça das Nações e seguiu em direção à Avenida Brasil. Destacamos que a divulgação antecipada dessa manifestação gerou pânico no bairro e forte policiamento pelas ruas, já que se tinha conhecimento do perfil étnico-geográfico dos manifestantes, até então incomum nos atos realizados no centro da cidade.

A confusão se inicia quando, chegando à Avenida Brasil, os manifestantes suburbanos e favelados são dispersados pela polícia com bombas de gás por tentarem bloquear a via expressa[2]. Era o estopim para o desastre que se anunciava. Às margens dessa via, há um grupo de moradores de rua, usuários de crack, que não perderiam a oportunidade de obter algum proveito da confusão que se iniciara. Estava dado o cenário perfeito, o terreno fértil para toda a sorte de ações truculentas, leituras jornalísticas estereotipadas, adjetivações pejorativas. “Durante o tumulto, os criminosos fecharam por alguns minutos a Avenida Brasil, na altura de Manguinhos” (Globo.com 24/06).

Segundo os sites de notícias que cobriam os fatos, não houve registros de roubos ou depredações. As acusações de arrastão, "quebra-quebra" e vandalismo pareciam advir muito mais de um pânico generalizado por conta da presença indesejada dos indesejáveis na ordem urbana. A fuga dos "cracudos" para dentro da favela era o pretexto para a polícia entrar do jeito que só quem lá reside sabe. O desfecho já se sabe. Muito embora a versão dos de dentro não tenha qualquer repercussão nas coberturas jornalísticas.

O olhar mais atento e problematizador, oriundo da visceralidade de quem já correu e jogou bola nos becos e vielas, percebe que seus pares não foram convidados para essa "festa da democracia", sob a pecha de incivilizados, não são bem-vindos pela "esquerda" e muito menos pela "direita". O termo "bandidos" já havia sido acionado na manifestação realizada próximo a Cidade de Deus, na última sexta-feira dia 21. Enquanto narrava o acontecimento ao vivo, com imagens aéreas da Linha Amarela, um âncora da Globo News identificava os supostos vândalos como sendo da comunidade próxima. Na última manifestação ocorrida na Presidente Vargas, no centro do Rio, um grupo de rapazes espancava menores de rua acusados de praticarem furtos. 

As demandas peculiares aos espaços de favelas não estão estampadas nas bandeiras do "Brasil que acorda", aliás nunca estiveram na pauta principal, nem dos governos, nem da tradicional esquerda classe média. A população favelada, quando muito, era o público-alvo, era o povo a ser libertado da opressão. Historicamente a favela não encontrou espaço para o protagonismo da luta contra esse modelo político-econômico de exclusão.

"... Sou brasileeeirooo, com muito orguuulhooo, com muito amooor..."

Embora reconheçamos que os discursos sociológicos-acadêmicos da cultura livresca – que tentam não somente interpretar, mas, sobretudo, transformar acontecimentos em "fatos históricos" palpáveis e quantificáveis para a posteridade – não estão dando conta do que estamos vivendo, nos arriscamos na hipótese de que a empiria proporcionada pela participação nos acontecimentos oferece pistas que permitem estabelecer nexos históricos entre o que estamos vivenciando e uma possibilidade de projeção de cenários possíveis, como consequência do que está ocorrendo. Como o ponto de partida aqui, posto na hipótese, é a empiria, faz-se mister outra narrativa. 

Em outro ponto da cidade, vivenciamos outra situação emblemática que oferece pistas para pensarmos o "desenrolo" do que está por vir. Numa manifestação que caminhava evidentemente para um desfecho com violência, surgiu um comentário com um grupo que estava conosco (todos moradores das classes médias da cercania da cidade) sobre o o temor do que poderia acontecer: que o desenho que estava sendo traçado ali, com as palavras de ordem para um possível trajeto com o objetivo de fechar a Ponte Rio-Niterói acabasse com muitas vítimas "inocentes". 

Nesse instante, percebeu-se um movimento estranho. Um largo caminho vinha se abrindo como se um trator estivesse passando por entre a multidão. Automaticamente, uma das mulheres que estava no grupo advertiu: "Vocês devem ter medo é desses aí, ó! É aí que está o perigo!", apontava ela para um grupo de jovens negros que se aproximava da gente causando aparente medo nas pessoas que, tão logo os avistavam, abriam espaço (exíguo) na multidão. 

O que significa essa preocupação? A nós, parece uma pista que permite estabelecer um nexo com uma perspectiva sociológica, historicamente propagada, de que nas favelas e periferias estão as classes perigosas. Assim, o que muitas das vanguardas revolucionárias, oriundas das classes médias, em sua maioria, esperam, de fato, é uma participação subalternizada das classes populares às suas agendas políticas e culturais. No caso da passeata em questão, mais que isso, almejam um papel pedagógico civilizatório sob os ditames das suas performances de participação política (“sem, vi-olên-ciaaaaaa!”). Ou seja, há uma forte evidência de que a principal preocupação ali não era somente a iminência dos conflitos com os policiais, mas a possibilidade de uma manifestação das classes populares, presentes na luta, que se distanciasse da determinação implícita de um movimento, inclusive corporal, pautado numa cultura de classe, predominante e hegemônica na cotidianidade da cidade formal, ou seja, "do asfalto!" 

Os jovens visivelmente pertencentes às classes populares abriam caminho por entre os corpos brancos e de pele camurça (que era a maioria na multidão), não porque forçavam no corpo a corpo, mas porque "claramente" havia um movimento de afastamento por onde eles projetavam a direção que iriam seguir. Vinham em fila dançando coerentemente com o ritmo do carro de som. Aliás, o mar de corpos, ali, bailava como um cardume numa correnteza marítima. No entanto, só um tipo de ginga estava autorizada naquele movimento. A ginga dos jovens negros, por exemplo, no padrão dos "bondes" do baile funk (para quem frequentou os bailes na década de 1980-90, chamávamos de trenzinho) não estava autorizada. Seria por que tal ginga lembra as lutas de resistência histórica (capoeira) das classes populares e que, naquele momento, retroalimentava a consciência do conflito de classes no Brasil, cuja melhor fonte de pesquisa são os ecos dos quilombos e a ornamentação de uma indumentária própria, sempre rechaçada pela brasilidade supostamente cordial (ou pacífica, só para atualizar o conceito)?

Confessamos que tudo isso faz pensar nas lutas recentes (nos baseamos, aqui, numa ideia de tempo histórico) das classes populares contra a remoção, contra a truculência covarde do fuzil no uso desmedido da força policial nas favelas e, fundamentalmente, na luta para entrar na escola pública sem deixar que esta apague da nossa memória as resistências que os espaços populares nos ensinaram. O povão da favela foi facilmente identificado e rechaçado na passeata, não sob a "alcunha" de vândalos, mas sob o adjetivo recorrente nos discursos dos nossos noticiários fascistas que, ao se referirem aos moradores de favelas (principalmente aqueles que decidem lutar do seu jeito por melhor qualidade para sobrevivência na cidade), diluem-no no conceito político: "bandidos". 

No entanto, pergunto-me: cadê as lideranças das favelas, os movimentos sociais e culturais da favela na passeata? Muitos confirmaram presença pelas mesmas redes que convocaram a todos. Será que em função dos agenciamentos que surgiram com as promessas do PAC-Pacificação, as históricas agendas de lutas específicas das favelas foram diluídas também na catarse paradoxalmente quase religiosa: "...sou brasileeeiro, com muito orguuulho, com muito amooor...", imposta pelos revolucionários pastores mascarados que cultuam o não uso das bandeiras políticas?

Em tempo...

A esquerda universitária, numa tentativa de redefinir seu protagonismo nesse cenário (ou amenizar um sentimento de culpa), promoveu uma plenária que reuniu aproximadamente 3 mil pessoas no Largo de São Francisco, em frente ao IFCS/UFRJ. Por pressão de alguns universitários de origem popular, tentou encaminhar uma mobilização no Complexo de Favelas da Maré em função do massacre no dia anterior, proposta que foi logo recusada pela maioria e reencaminhada sob o argumento de uma suposta (in)segurança dos manifestantes. Assim foi definido que seria mais prudente uma mobilização em frente à Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro na manhã do dia seguinte. Não foi surpresa constatar que, no dia em questão, sequer estiveram reunidos 15 manifestantes. Fica a pergunta que não quer calar: o "povo" estará unido quando a Maré encher?



[1] Um sargento do BOPE também havia morrido no confronto.
[2] Enquanto escrevia estas linhas, uma manifestação promovida por médicos do Hospital Geral de Bonsucesso ocorria também na av. Brasil, com bloqueio de parte da pista. Porém sem intervenção policial.

2 comentários:

  1. Muito bom o argumento oportuno e direto. Para dar uma pequena contribuição friso que os movimentos de favela e negritude que deveriam ser um só mas não são devido a falta de consciencia racial de favelados e pobres e da falta de consciencia social dos negros de classe média que se acomodam em seus cargos em gabitenetes, ongs, sindicatos etc. Movimentos negros supõe-se atividades e ações dos povos da diaspora em terreno hostil, logo ser favelado é ser parte da sezala quer ser seja branco (encardido), amarelo ou qualquer outro tipo étnico que a negação imaginativa puder supor. Mas por um erro histórico dos precursores dos movimentos de negritude no brasil de hoje a luta da favela não é mais uma luta negra e portanto movimentos populares de negritude que poderiam fortalecer a luta da favela/negra se abstem na hora que o bicho pega.

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  2. Vejo do mesmo modo, novo cenário com velhas/mesmas cenas.

    Luciana

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