segunda-feira, 16 de setembro de 2013

“Eu era a carne, e agora, sou a própria navalha”
- pesquisas viscerais em alfabetização -

Rodrigo Torquato da Silva- UFF /IEAR
Luciana Pires Alves- UFF/SME- Duque de Caxias


É porque, tio, tem mais nome pra xingar preto do que pra xingar branco (Ramon) 


Resumo:
O artigo surge nos atravessamentos entre duas pesquisas mergulhadas no cotidiano de escolas públicas em lugares de periferias do Estado do Rio de Janeiro. Nosso desafio não é especulativo, procuramos problematizar as questões atuais e vitais para escola e a formação da professora alfabetizadora, segundo a perspectiva da pluridimensionalidade em que temos: a dimensão técnica e metodológica, a dimensão teórico-epistemológica e a dimensão político-social. Percebemos as diferentes dimensões, não como um conjunto estanque, mas como zonas porosas de intercâmbio e criação. Há, ainda, a emergência do conceito de pesquisadores e pesquisas viscerais a partir das experiências de quem viveu na própria carne as problemáticas estudadas. Os pesquisadores viscerais podem ler o que está em jogo, ou seja, os riscos e as tensões naquilo que vemos como situações cotidianas.

Palavras-chave: Alfabetização, classe popular, pesquisas viscerais e violências.




1 – Introdução

O presente trabalho é oriundo de duas pesquisas em escolas públicas que abordam temáticas convergentes, entre as quais: as violências cotidianas nas escolas e a alfabetização das classes populares. Ao estabelecer tal interlocução, os pesquisadores objetivam problematizar não somente as singularidades dos cotidianos, irrepetíveis enquanto contingências, mas, fundamentalmente, discutir as regularidades que podem sugerir possibilidades de ação e reflexão.

Tais regularidades podem, também, “maquiar” a complexidade dos processos que as conformam, reforçando, com isso, os discursos tecnicistas generalizantes e as crenças em soluções metodológicas universais imediatas (e porque não acrescentar, de baixo custo ao erário).

Por serem pesquisas, assumidamente, mergulhadas no cotidiano escolar afastamo-nos dos discursos meramente retóricos que, a nosso ver, produzem tipos de reflexões teórico-filosóficas esvaziados de barulhos, de conflitos de crianças, de cheiros das merendas, de gritos das professoras. Nosso desafio é estabelecer os nexos empíricos, sempre difíceis, entre as práticas alfabetizadoras e as violências cotidianas experienciadas em contextos escolares diferentes. Contextos amalgamados por pesquisas viscerais, o que nos permite expor as questões, mostrando com elas nossas vísceras. Assim, optamos por apresentar experiências constitutivas de nossas vidas e práticas com as escolas públicas. Tais experiências misturam o que vivemos, como sujeitos oriundos de classes populares, de subúrbios e de periferias, com as experiências de professores pesquisadores inseridos em escolas públicas que atendem a estudantes com as mesmas origens sociais. Cabe ressaltar que, na organização estrutural do texto, as narrativas não seguiram uma linearidade cronológica, as narrações surgem o fluxo das problematizações. Nossa escrita procurou estar mais próxima ao oral, por isso temos períodos mais longos, em que o ponto final é adiado pelo ritmo da palavra conversada.

2 - Acerca das pesquisas em diálogo

O trabalho está orientado fundamentalmente por duas pesquisas: uma constituinte da tese de Doutoramento de um dos autores defendida em 2013 e a outra, um projeto realizado em uma escola pública, com apoio da FAPERJ através do edital de “Apoio e melhoria do Ensino nas escolas públicas”, coordenado pelo outro autor. É importante frisar que ambas pesquisas foram realizadas em municípios do estado do Rio de Janeiro.

As pesquisas citadas são atravessadas por questões que insistem em permanecer como entraves no processo de escolarização em nosso país e pautam os debates interessados na abertura e enfrentamento dos “gargalos” da educação brasileira. Neles estão presentes as seguintes questões: o “fracasso escolar” das classes populares, as violências cotidianas das/nas escolas públicas, os modos e concepções de pesquisa e pesquisadores, as crueldades e as opressões sofridas e exercidas pelos sujeitos das escolas, as narrativas das diferentes histórias de vida e os processos singulares oriundos de sociabilidades violentas. Esses são os elementos de que lançamos mão neste trabalho, no intuito de conhecer a problemática que nos move.

3 - Entre facas e xingamentos: a escola acontece

Como foi dito acima, optamos por eleger situações vivenciadas no cotidiano de duas escolas distintas, como base de sustentação empírica para as nossas escolhas metodológicas e filiações teóricas. Trata-se de situações vivenciadas, em contextos diferentes, onde foi possível constatar que a distância geográfica existente entre as duas escolas não se consubstancializa numa distância ou numa diferença constitutiva no que tange à dramaticidade das questões abordadas. 

Do mesmo modo, há uma ressonância nas marcas/aberturas dos sujeitos pesquisadores que permitiram o encontro e o diálogo nas diferenças de gênero e de origem social: um, ex-morador de favela e a outra, suburbana, filha de policial militar. Ambos possuem histórias entrecortadas por opressões e violências que ameaçam a vida. Há uma proximidade entre os fatos vivenciados, na medida em que os elementos que amálgamam as situações são os mesmos, tais como: a crueldade, as violências cotidianas e a alfabetização das classes populares. Esses elementos pululam no cotidiano, dando origem às várias situações-limite que demonstram claramente o quanto expostas estão determinadas crianças-estudantes das classes populares em nossas redes públicas de ensino.

Para nós, que convivemos com a brutalidade à qual as nossas crianças pobres estão expostas, recuperar essas situações em nossas pesquisas não significa apenas o acionamento de um arquivo de dados, para a elaboração de artigos teóricos-acadêmicos, mas, fundamentalmente, um retorno constante às cenas dos crimes recalcados na memória e latentes no nosso corpo. Por isso, nos permitimos uma escrita das pesquisas em carne-viva.

3.1 - Situação 1: “Com uma faca na escola, Alexandre?” 

Quando soube que Alexandre trazia uma faca na mochila, gelei. Gelar é o contrário de ter o sangue frio para resolver uma situação ou fenômeno previsível segundo uma ordem de natureza técnica, política ou epistemológica. No entanto, esse acontecimento encarna uma via divergente que pode mostrar a Alexandre que ele não está tão sozinho. Rotular Alexandre, fazendo do acontecimento mais um evento na mídia: “Menino de 11 anos armado na escola”? Fingir que não vemos, para não haver implicações? Ouvir Alexandre é mover o limite: pode uma faca na escola? Pôde. Alexandre precisava defender-se. Depois de uma briga de futebol, Alexandre passou a ser um alvo, assim, para proteger sua vida, ele precisava do facão apanhado entre as coisas de seu avô. 

3.2 - Situação 2: “É porque, tio, tem mais nomes pra xingar os pretos do que pra xingar os brancos!”

Uma das etapas do projeto visava a exibições, para as crianças, de filmes consagrados, cujas temáticas pudessem despertar reflexões e debates acerca de situações estereotipadas e características de atitudes daqueles(as) que são geralmente considerados “estudantes-problema”.

Um dos filmes, “Vista a minha Pele”, do cineasta Joelzito, mostrava uma sociedade com relações sociais racistas às avessas. Apresentava os negros ocupando os postos de trabalhos mais elevados e de maior status profissional. As crianças negras eram filhos e filhas de pais negros muito bem sucedidos e posicionados no topo da escala hierárquica da sociedade. Porém, eram eles que não enxergavam os preconceitos raciais praticados contra a população branca. Os brancos lutavam, com grandes dificuldades, para tentar romper com as barreiras impostas por essa sociedade fictícia.

Após a exibição, foram feitas algumas perguntas na tentativa de detonar o debate-reflexão. Grande foi a nossa surpresa ao perceber que as crianças do primeiro turno, consideradas pela escola como as que tinham o menor grau de “problemas”, não conseguiram, por mais que indagadas e provocadas por nós, enxergar a questão do racismo que estava posto no filme. Os discursos delas não se referiam, em momento nenhum, às questões de racismo, evidentes no filme. Focavam apenas questões como “o bem contra o mal” ou riqueza e pobreza etc. No entanto, a questão do racismo não apareceu. 

Ao passarmos para o grupo do turno da tarde, composto por crianças com o índice de ocorrências em situações de violências na escola rotulados nos registros escolares e nas falas das professoras, imediatamente a questão do racismo emergiu. Ao fazermos a mesma pergunta para o grupo, uma das crianças (menino negro, considerada com certa inserção nos assuntos referentes ao universo adulto/violento, como, por exemplo, noções operacionais do tráfico na favela e o funcionamento da pistola), em meio ao silêncio, apontou, ao esfregar o dedo no próprio braço, que o filme tratava de cor da pele. Em seguida, continuei com mais algumas perguntas:

- “O que é racismo?”

Respostas dos Alunos: “É quando a pessoa não gosta da outra, por causa da cor. Quando a pessoa chama de carvão. Quando agride a outra. Quando a pessoa não gosta da outra”.

- “No Brasil tem racismo?”

R: “Tem”.

- “Na escola tem racismo?” 

R: “Tem.”

- “Vocês são racistas?”

R: “Não”.

- “Como acontece o racismo?” 

- R: “Botam apelidos... Tisiu, macaco, gorila, Maguila, macaco preto”.

- “Por que acontece o racismo?” 

R: “É porque, Tio, tem mais nomes pra xingar os pretos do que pra xingar os brancos!”

4 - Partir da realidade dos alunos? Chegamos até ela?

Muitos pensadores importantes afirmaram que perguntas filosóficas potentes nascem de questões aparentemente simples, como as que são elaboradas por uma criança. Em nossos casos, são duas “crianças-problema” que geram questões para as nossas escolas. Escolas fundadas sob a égide de uma sociedade burguesa-branca-eurocêntrica-homofóbica-favelofóbica. Muitas vezes, acreditamos que questões detonadoras e/ou culminâncias de projetos são suficientes e fundamentais para entender melhor o universo linguístico e cultural das crianças das classes populares. Nos casos apresentados, foi possível perceber que essas metodologias ainda estão distantes ou voltadas para fora dos universos de experiências e vivências das crianças consideradas problema. 

Diante da urgência do enfrentamento de Alexandre e da reflexão sobre o racismo feita por Ramon, percebemos que quem sempre esteve com o detonador nas mãos, não éramos nós, mas aquelas crianças. Na primeira oportunidade que têm, eles detonam. E aí, pedimos pra sair? De fato partimos ou começamos a nos aproximar dos mundos/realidades dos outros? O que fazer com a criança armada com uma faca? Quais respostas são possíveis quando assumimos uma Pedagogia da Pergunta: “Por que há mais nomes pra xingar os povos negros desse país?” 

Se para o processo societário ocidental a palavra se encarna, partimos da palavra para o vivido, sempre mediado pelas representações de uma voz divina ou científica. A carne é feita do semiótico, do dito e do interpretado. Nosso exercício de pensamento, nos atravessamentos de nossas pesquisas, de experiências de vida e de formulações conceituais, se propõe audaciosamente ao oposto, à divergência do ato primeiro e inaugural do ocidente. Pretendemos rasurar, macular e profanar sua/nossa gênese bíblica: “No princípio era verbo e o verbo era Deus e o verbo estava com Deus e o verbo se fez carne e habitou entre nós”. 

A via divergente ou profana é o exercício dos sujos, porque nos habitam as misturas que nos impedem de ter o distanciamento reflexivo. Além disso, o compromisso com o ser mais força os limites de um pensar em “si mesmo”, dos sofrimentos da carne, isto é, do lugar dos afetos e das afecções de que falamos, dos sentidos e do sentir a rudeza, a crueldade, a aspereza que substancializam relações-limite e os limites das relações entre a escola e as crianças das classes populares. 

A máquina de moer não cessa. O fracasso escolar logo reduz a pó a ilusão fecunda daqueles que desistem de si mesmo, após desistirem deles. Com o objetivo de interrogar os mecanismos de encarnação do fracasso, pretendemos escarnar, no ponto de vista do sensível, os discursos e resignações que se encarnam no cotidiano. Escarnar as crueldades como subjetivação do ser menos é o exercício benjaminiano (1994) de escovar as inscrições à contra pele, não só a contrapelo. A indiferença a tanto fracasso passa pela insensibilização da brutalidade dos aparelhos de encarnação. Um oceano da indiferença composto não só pelos circuitos de habituação da vida, como também, pelos discursos, pelas pesquisas e pelas explicações sobre o outro. Assumimos que mesmo com o outro é preciso tocar as suas questões ou as problematizações vitais/viscerais. 

Proteger-se, defender a própria pele, de diferentes modos e em diversos lugares. Esconder-se nas posturas técnicas: “só me interessa ensinar a ler e a escrever”. Também há quem se proteja na omissão política: “não quero ficar queimada com ninguém”. Essa fala representa mil jogos de alianças com os grupos e com governos. Há um distanciamento e uma invisibilidade políticos presentes numa militância que “se basta em si mesma”, ou seja, feita de bandeiras de luta distantes das demandas reais e urgências atualizadas pelos acontecimentos das escolas. Protegidos estão aqueles que recorrem ao distanciamento asséptico, em que se resguarda o pesquisador através de epistemologias nas quais o conhecimento produzido se desimplica das ações/intervenções no mundo.

5 - Com as vísceras expostas: pesquisa e pesquisador visceral - um ensaio conceitual

As falas, da falta ou da ausência de civilização, não nos contemplam. Não se trata da volta aos selvagens, mas sim de pensar a crueldade na ordem das sensações, não apenas das impressões, mas do que se sente/passa nas relações. A vida, sob o signo do prejuízo dos “a pouco nascidos” e “já quase mortos”, é coagida para uma condição em que se anuncia a morte muito cedo. Essas mortes por muitos são explicadas: índices, causas sociais, fatores econômicos, indicadores educacionais. No entanto, a quem essas mortes sensibilizam ou provocam a ponto de nos tirar do lugar? De fato, há uma habituação da violência? Que subjetividades se formam quando a sombra da morte já compõe a poeira de uma alma? São uns desalmados? Talvez a alma branca, limpa e sossegada não nos caiba mesmo. 

5.1 - Situação 3: pesquisadora e o terreiro, corpos e almas negras 

Cresci entre a magia dos terreiros, intervalos de sonho e potência, e a crueza de ser filha de policial. Tenho a lembrança de ficar acordada para vê-lo chegar, minha mãe dizia que era um caso sério, eu adorava vê-lo chegar fardado. Talvez, exista uma intuição infantil, apreendida por quem, desde muito cedo, sabe que o pai pode não voltar após o trabalho.

Das armas em cima dos armários e as camisas quarando do sangue, nos agarramos na melodia mágica dos pretos-velhos nos dias de matança feitos de bacias vermelhas. Tudo parecia uma coisa só, nos quintais no subúrbio carioca: egé chororô, egé um paô, egé chororô... O melhor de nós é a língua sonhada, ou a que nos permite sonhar... Depois ficou muito fácil ver esse componente na alma dos já desalmados, que em breve serão fantasmas. As penas, já não mais entoadas em voz alta, precisam de poucos gestos para seu anúncio e correrem por todos os cantos. Dor que ninguém sente, um quase alívio ou frieza de mais um “quase morto” seguindo seu caminho... 

Nunca entendi o porquê de tanto lavar, não dá mais para usar. Eu dizia, para minha avó, quando ela teimava em enxaguar excessivamente a farda dilacerada de papai, quando em 1997 ele levou oito tiros. Sua roupa foi lavada, costurada e passada com ferro bem quente, ficou nova... “Compaixão com a vianda” me permite atualizar na estética o filósofo, Gilles Deleuze, a dor do passado, fazê-la sensibilidade.

Cabrito calçado ou a punheteira (escopeta 12) na cozinha é sempre tempo de matança e é na carne que se sente e não no discurso que se explica que a sintonia começa. O corpo composto demais, o organismo politizado demais para sentir o sangue que ainda se bate quente para não empedrar...

Desalmados? Antes a falta do que a tua presença, alma branca! A carne viva é a Zona de indiscernibilidade, do homem e do animal. Zona comum à vianda dos mutilados, dos marcados, dos esquartejados... Ter um corpo? Sem corpo, só vianda...

5.2 - Situação 4: o pesquisador e a favela - jogando no fliper e jogado na vala 

O fliperama, na década de 80, era um espaço das classes populares, fazendo uma analogia com o que a lan-house representa hoje, século XXI. O fliperama era um espaço de encontros intergeracionais, onde nenhum critério moral ou social era imposto a seus frequentadores. 

A possibilidade de transferir para o jogo eletrônico um pouco da emoção catártica da vontade de matar, de atirar, de guerrear e também diversão eram fundantes desse espaço. A comunicabilidade era por via presencial e também por catatal[1]. Em um dia comum de diversão, entrou um indivíduo nervoso com uma arma em punho e na outra mão uma bolsa. Ele ordenou que o responsável pelo fliperama desse sumiço naquela bolsa, caso contrário, o homem voltaria e mataria o dono do estabelecimento.

Estávamos no Fliperama, eu e o responsável, que possuía a alcunha de Zacazula. Este, muito alterado, transferiu a responsabilidade de dispensar o flagrante para mim, que, na ocasião, tinha 11 anos. Também fui obrigado a cumprir o ordenado, diante da ameaça de uma 22, guardada em uma gaveta sob o balcão. Muito assustado, peguei a bolsa-flagrante e fui “dispensá-la”. 

Durante a caminhada, tive que decidir onde o faria. Optei por uma vala, no final da rua onde funcionava o fliperama. Não pude deixar de apalpar a bolsa e senti algo parecido com panos e sandálias dentro dela. Depois de jogá-la na vala, voltei correndo, muito assustado, para dentro do fliperama. Mal cheguei, vi um grupo de bandidos passando pelo local na direção do caminho para onde partiu o indivíduo supostamente dono da bolsa, o Porcão. Estavam armados, os bandidos, de 38, 22 e escopeta. Todos em direção ao beco, subindo a favela. Após alguns minutos, escutamos vários disparos. 

O dono do fliperama, em pânico, começou a gritar comigo. Se alguém me perguntasse sobre a bolsa, tinha que ser “sujeito-homem” [2](Alvito, 2001) assumindo o que fiz. E não colocar o nome dele no meio. Em pânico, não pude dividir essa angústia com ninguém, pois meus pais não entenderiam.

Para esperar o desenrolar dos acontecimentos, fiquei em casa, diante da TV, onde passavam desenhos da Disney, Hanna & Barbera... Não tardou, bateram na minha porta, era o respeitado Mundico, gay assumido, em um tempo em que a violência contra homossexuais era indiscriminada e naturalizada. Mundico vencia “na mão” muitos dos ditos machões heterossexuais da favela. Ele prestava o importante serviço de entregar a correspondência de porta em porta, para os moradores das casas sem número. 

Mundico, sem demonstrar a gravidade do problema que me esperava, pediu para minha mãe me chamar, disfarçou a situação e desceu comigo sem minha mãe perceber nada. Mais distante, me perguntou o que houve, porque, já corria a notícia de que eu iria para vala. Contei toda a história e ele disse que eu iria ter que desenrolar na boca de fumo, porém ele estaria comigo e outras duas moradoras também estariam a meu favor.

Lá chegando, encontro Zacazula, sentado num banco chorando. Logo, me pediram que pegasse a bolsa de volta. Tentei recuperá-la, mas, ao chegar ao valão, os policiais já estavam com a bolsa. Voltei e expliquei o fato. Então, eu e Zacazula fomos obrigados, pelos bandidos, a passar por uma espécie de acareação, cada um tinha que contar a sua versão. No início, Zacazula tentou jogar toda e qualquer responsabilidade em mim. Isso fez com que os bandidos ficassem transtornados, eles não admitiam cuzões[3]

Pela conjuntura, percebi que a vida de Zacazula estava na minha capacidade particular de narrar os fatos, criando uma maneira de não comprometê-lo e tampouco de arriscar minha vida ainda mais. Como inventar uma história que não nos condenasse à morte? As histórias que circulam e são valorizadas na escola, como as Narrações de Narizinho, de que me ajudariam? Criei uma narrativa assumindo que o Porcão[4] nos obrigou a fazer a dispensa da bolsa. Disse que, ao perceber a situação de ameaça, eu tomei a responsabilidade dessa dispensa, porque Zacazula era meu amigo. 

Após a liberação do tribunal do tráfico, Zacazula estava muito emocionado por eu ter sido “sujeito-homem” e impedido que ele tivesse ido pra vala. Então, ele me contou que a bolsa estava relacionada ao assassinato do parceiro de assalto do Porcão. Porcão e seu parceiro levaram a bolsa de uns gringos na praia de São Conrado e o Porcão “com olho grande” resolveu assassinar o próprio parceiro, irmão de um dos donos da boca. 

De que maneira, nós, professores pesquisadores, pensamos situações dessa natureza? Como fazer uma relação curricular aproveitando essas vivências? Ao chegar às tensões e às tramas desses mundos violentos, para onde seguir? Há como partir da realidade do outro sem perder a si mesmo, sem tomar tantas bifurcações produzidas pelas tensões, opressões e invenções destes mundos alheios e expulsos dos currículos, dos planejamentos e discursos oficiais? Como a escola problematiza a aula a partir dessas experiências?

As crianças continuam sendo salvas pela sua capacidade de narrar? Capacidade inventiva da narração oral, potência do fabular no verbo falado, muitas vezes esse recurso vital é desacreditado e descartado pelo fazer crer da escola que é a escrita a linguagem mais importante. A escola tenta convencer a criança que o registro escrito é superior ao repertório da oralidade que se encontra viva e fértil nas crianças que chegam à escola. Também as crianças devem partir de seus mundos? As crianças devem abandonar a riqueza ou a potência fabuladora da oralidade de seus contextos por uma escrita escolar? As crianças quando resistem, sabem de forma intuitiva que estão sendo submetidas a um empobrecimento da linguagem. A escrita escolar compreende, na maioria das vezes, exercícios ou deveres. Os conjuntos de atividades de alfabetização correspondem à escrita, ou são apenas arremedos?

6 - Alfabetização das Classes Populares: Interzonas e a (co)ação dos mundos

Nossas pesquisas mostram que há uma predominância da dimensão técnica vigorando, há bastante tempo, nas redes municipais de ensino nas quais estamos inseridos com nossas pesquisas. Esta predominância pauta-se numa concepção de alfabetização que procura instalar a professora alfabetizadora no lugar de quem aplica as propostas prontas. Entendemos que esta predominância impõe uma coação na autonomia e na autoria do ensinar, assentando-se, apenas, numa das dimensões de formação da alfabetizadora: a técnica e metodológica. Isso descarta e descola a dimensão político-social e a dimensão teórico-epistemológica. Defendemos que a formação da professora alfabetizadora, que possa lidar com a complexidade do cotidiano das escolas, precisa estar atenta à pluridimensionalidade da alfabetização. 

A partir de nossas investigações, podemos sugerir uma formação pluridimensional da professora alfabetizadora a fim de melhor prepará-la, ainda que inicialmente, para o enfrentamento dos dilemas e conflitos das escolas. Atentamos que a formação de professores deve abarcar pelo menos três dimensões:





1- A dimensão técnica e metodológica diz respeito aos fazeres e às práticas alfabetizadoras, principalmente em relação ao objeto específico da escrita, do domínio dos códigos e da dinâmica de codificação e decodificação. 

2- A dimensão política e social diz respeito à consciência de classe, do sentido de luta e pertencimento a uma categoria. É nessa dimensão que devemos nos compreender como seres coletivos. Isso nos faz procurar os princípios e não apenas os instrumentos. A presente dimensão nos leva ao diálogo e a conhecer as experiências existenciais e as questões da vida das crianças das classes populares. 

3- A dimensão teórico-epistemológica diz respeito ao campo das ideias e das teorias com as quais dialogamos ou procuramos dialogar a partir das questões presentes em nosso cotidiano. 

Entendemos que a pluridimensionalidade não é simplesmente um universo de dimensões sobrepostas. Num primeiro olhar, o “tipo ideal” seria o núcleo da interseção entre as três dimensões segundo uma ideia de equilíbrio. Porém, o cotidiano revela, em sua multiplicidade, que as fronteiras entre as dimensões não são impermeáveis, as vemos como membranas porosas em movimento, cujos núcleos se misturam e se reagrupam conjugando questões e situações vivas e dinâmicas. 

Assim, pensamos em zonas de contato e contágio, não só em locais de interseção, o que nos permite operar nas faixas de criação a partir das dimensões políticas, epistemológicas e técnicas. Os trânsitos nas dimensões, na lógica do acontecer cotidiano, se misturam como possibilidades de invenção dos sujeitos. 

Enfrentar os gargalos é vivê-los enquanto abertura e não repetição dos impasses. É buscar as conjugações político-técnico-epistemológico que anunciam o novo ou o inédito viável, partindo para a abertura em que situações-limite não sejam mais consideradas impasses ou fechamentos inexoráveis. Do ponto de vista da experiência cotidiana, são as problematizações trazidas pelas crianças que não nos permitem a fixação em territórios enquanto lugares seguros. 

A alfabetização artesanal é uma contraposição ao técnico, do ponto de vista da reprodutibilidade, em que a mesma tarefa/dever pretende ensinar simultaneamente toda a turma. Lógica que permanece em trabalhos para grupos de alunos considerados em determinadas etapas ou períodos de aprendizagem da escrita. O reproduzir técnico persiste até mesmo nos agrupamentos segundo os níveis de aquisição da língua escrita segundo a psicogênese de Emília Ferreiro e Ana Teberosky. 

A alfabetização artesanal surge dos momentos de pensar o que fazer com as crianças vistas como aquelas que “nada sabem”. A alfabetização que inventa vive da afirmação do direito de aprender na escola. Desafiar o rótulo do nada saber é chamá-las à mesa e perguntar o que desejam escrever, procurando em seus universos referenciais as palavras, as letras, os sons, a grafia... Chamar à mesa da professora, na perspectiva metodológica artesanal é um elemento vital para uma elaboração prático-metodológica e do pensamento que nos permita sair de uma concepção fabril de alfabetização. 

A mesa não é um momento de correção ou de instrução, mas de escuta e atenção voltada para as compreensões de cada criança. Atender é dar atenção a cada criança para (des)cobrir fios do aprender, passagens do já-sabido e do ainda-não sabido que variam ou mudam segundo cada criança e cada aprendizagem. 

Após a mesa, onde a criança aprende, entre outras coisas, mais um elemento do processo de codificação e decodificação para dominar a combinatória da escrita, ela volta à sua comunidade e passa a fazer uso disso. Assim, estabelece um novo/outro processo de interação com as placas das barracas de “x-tudo”, de açaí, de cerol, do “lava-jato”. A criança, nesse processo, começa a olhar as placas não só como madeiras pintadas, mas como madeiras de leituras, o que permite uma ressignificação do estar na escola, quebrando as barreiras da vergonha, do constrangimento de não saber, pois muitas vezes estão em distorção série/idade. 

As novas aprendizagens e acúmulo motivam a criança a voltar à mesa para aprender mais elementos para codificar e decodificar novas palavras e ao mesmo tempo produzir seus textos. Cabe, ainda, ressaltar o universo facilitador que a classe popular cria na relação com a escrita: 

· x-tudo (sanduiche que leva pão e os diversos acompanhamentos, desde uvas passas e ovo de codorna ao estrogonofe com batata palha no pão) 

· refrigerante podrão (os refrigerantes dos circuitos dos que vem de baixo, mais baratos e de marcas diversas, por exemplo a palavra “podrão” incorpora Schincariol, Baré, Dolly etc ) 

A criança passa a fazer uso do que acabou de aprender após a mediação da mesa. Assim, o menino que chega hoje à aula depois de fazer uso do que aprendeu, na mesa e na aula anterior, amplia suas zonas de possibilidades de leitura ou de descoberta do que está a sua volta na rua e na própria escola. A criança faz novas leituras do que está escrito no seu universo de referências escritas: na barraca de lanches, na banca de pipa e cerol, no açaí da tia etc. O trabalho da professora artesã capta a aura de cada momento para reinvesti-la na aprendizagem da criança, amplia as zonas de detenção de novos conhecimentos, pelas zonas de memória ou de armazenamento do que já sabe. Nas zonas, as trocas se trocam e a própria esfera se amplia quando as aprendizagens geram desenvolvimento com sentido. 

Estamos, agora, na interzona, delírio potente de Burroughs, onde não há click, estalo ou salto qualitativo, a criança sozinha não dá um salto. A mesa, espaço tempo de interação metodológico, é um processo trabalhoso de acompanhamento, de atenção docente a cada descoberta e de reflexão constante que gera novos investimentos. 

Nas zonas de troca há, como se diz no romance de Burroughs, um “plop” da ampliação da zona ou construção de paredes móveis e porosas que se alteram a partir das suas ampliações. Nas interzonas, habitam as misturas produzindo híbridos com suas esferas porosas em expansão e conteúdos mistos em conexão com a dimensão da experiência vivida. 

Deleuze já nos ensinou que o lugar não é diferente do que se passa nele, assim, experimentamos no cotidiano, também, possibilidades de criação/invenção a partir dos acontecimentos que rompem com o pensamento já pensado ou o já sabido de acordo com as tendências que melhor nos convêm. Isto nos leva a experimentar as dimensões como zonas moventes com conteúdos híbridos, em que a presença de cada criança conta para a produção de novas aberturas e aprendizagem. 

Defender a criação singular ou o artesanal nos parece mais adequado ou coerente com a dinâmica que vivemos como professores pesquisadores, uma vez que, propor mais um conjunto de técnicas, corpo/referencial teórico ou promulgar este ou aquele posicionamento político seria, novamente, sugerir o que as professoras devem fazer. 

O que nos interessa é intercambiar as saídas, ouvir as descobertas, as aventuras e embates surgidos das nervuras do real, de quem sente, na própria pele, o cotidiano escolar. Ser um instrumento é fabricar as próprias armas, sendo a carne que sente e sangra, mas também, sendo a navalha para fazer a crítica e avançar na criação. 

Deixar de ser a carne, no sentido de apenas sofrer as ações, de ser o alvo dos retalhamentos de nosso corpus alfabetizador, seguir sendo navalha no sentido de também cortar, perfurar e atravessar as propostas e políticas de governo que apenas se sucedem sem nos oferecer instrumentos para o diálogo e ação com as crianças. 

Ser sensível e atuante é buscar instalar-se no meio, produzir zonas de contato-contágio com as crianças e a pluralidade dos mundos que se encontram na escola. No ponto de vista da diferença, os atritos, as faíscas feitas do encontro de divergentes, não são vistos como limite, mas sim como possibilidade de invenção de uma escola potencialmente criativa que não foge à (co)ação dos mundos. 

7 - Ser um corpo aberto para ter o corpo fechado 

O ritual do fechamento do corpo, na Umbanda, é um ritual de abertura ou ferimentos/marcas. As marcas ou desenhos feitos em alguns pontos do corpo o fecham ao abri-lo. O corpo aberto também é um corpo em comunicação com o etéreo que protege e o fecha dos perigos. Ser um corpo aberto pelos afetos, pelo que nos toca e pelo que tocamos nas experiências com o outro é ter um corpo potencializado nas relações. Ser um corpo aberto para ter um corpo fechado é o compartilhar das afecções e forças na luta da vida. Ser um corpo aberto porque sabe ler, no que vê, aquilo que se passa, o que está em jogo em cada situação ou acompanhar a sua processualidade. 

As experiências que permitem o compartilhar dos afetos de vitalidade ou sintonia afetiva (Stern, 1992) são produzidas sem precisarem das idas e vindas das explicações. A visceralidade funciona pelas ressonâncias e fluxos comuns a uma maneira de sentir. É um estado ou o sentir de uma revolta no corpo, revolta e presença marcada num só corpo. 

Nossas crianças da escola, nos últimos trinta anos, entre 1980, 1990 e os anos 2000, Rodrigo, Matheus e Alexandre, foram e são crianças que quase “foram para vala” ou em quem quase “passaram o cerol” – pena de morte entre os pares, linguagem memorizada! Uma linguagem memorizada “dos quase mortos”: a cabeça baixa, o olhar vitrificado, um esporro no silêncio, uma expressão pesada, uma borda de aula a que os adultos não conseguem chegar. Uma leitura naquilo que vemos, nossa visceralidade nos permite ler a ameaça de morte nesses olhares, nas tônicas e nas posturas do corpo. 

Um vidro no olho, desassossegar de mosca num corpo que não fica parado, como vimos tantas vezes nos olhos do pai fumando, no mesmo quintal, onde as fardas quararam de seu sangue e do Zacazula a espera do anúncio da pena. Experiências que nos fizeram videntes, sem palavras. Nós, por nossa visceralidade, lemos naquilo que vemos determinados estados insondáveis pelas técnicas/métodos pedagógicos e pelos próprios discursos acadêmicos ou em narrativas de segunda mão. 

7.1 - Situação 5: “Ainda é cedo, Matheus, mal começaste a conhecer a vida, já anuncia a hora da partida...” 

Matheus, preocupação atual, se joga contra o muro porque não tem perspetiva. Sentimos que ele está querendo “dar cabo” da própria vida, porque ele “bota pra foder”. Esse menino já se entregou, é muito cedo para ir embora. Como ficam os que não vão com ele? 

Alguém tem que fazer a vida dele valer a pena pra ele mesmo? Quem ou o que vai tocar Matheus: quem será “O Cara” desse encontro: o bandido que foi amigo de escola? O professor com seus discursos distantes e moralizantes? Um presidente da república, que ficou considerado por muitos como “O Cara”? Segundo os Racionais MC, a molecada se espelha em quem está mais perto, será? O próprio espelhar produz o afeto necessário para desviar o trajeto para a morte, como o de Matheus? 

Um encontro do despertar? Mas com quem? Com o quê? Em quais contextos? Matheus está “fazendo merda” dos dois lados, tem que arrumar um lugar pra ficar. Está desterritorializado? Está reterritorializado nesse jogar com a própria vida? O que nos parece é que há uma relação complexa na produção da subjetividade de Matheus que corre direto para a morte através das provocações com os grupos que podem matá-lo. 

Fazendo um diálogo com a territorialidade dinâmica/relacional de Deleuze e Guattari, em que somente alguns elementos são vistos/percebidos como sinais/afetos enquanto tudo mais não existe, Matheus, quando se envolve em brigas, não se importa com os riscos de morrer nas mãos do Bope ou dos demais grupos da favela. 

Matheus vive uma reterritorialização em que está fixo, sendo alheio à sentença de morte segundo os códigos dos territórios em que cresceu, ou seja, as territorialidades nele inseridas. A nosso ver, está subjetivado no sentido de ir de encontro ao muro, isto é, agir sem considerar os elementos evidentes de ameaça à sua vida. 

Ainda, não o “quebraram” (mataram) por causa da família. É um otário[1] não tem nenhuma malícia. É o mesmo que um suicídio. É um suicídio anunciado-enunciado. É preciso que seja afetado para que possa aceitar que não pode se jogar assim. Seria isso, falta de entendimento? Ele não entende o nosso idioma? É uma questão de linguagem? Ou uma questão de um afeto, de produzir uma afecção que mude a sua vibração, que o toque existencialmente que o faça tomar outro rumo, que mude de direção do encontro desastroso com o muro. 

Matheus anda nas motos roubadas só pra zoar. Brinca com a própria vida? Já foi para a bola uma vez... Ele não entende o nosso português? É uma questão de entendimento ou não achamos outro modo de afetá-los? 

Matheus está sem lugar, ele tentou trabalhar numa padaria. Ele não sabe amarrar o próprio sapato. Foi se alistar no serviço obrigatório do exército, de havaiana e short, quase ficou preso porque não foi integrado à burocracia e à lógica das institucionalidades. A escola passou e não o instrumentalizou nisso. A mãe dele passou pelas mesmas condições, também não sabe ler e escrever, a escola não a afetou. Esta é uma questão intergeracional. 

É um momento decisivo para Matheus que já se entregou ao destino anunciado, porque alguma coisa nele já está morta, essa é a questão central: um defunto social. 

A linguagem não consegue desviá-los dessa rota, é preciso tocá-lo a partir de dentro, ou seja, um afeto potente para que eles preservem a vida em meio a tantos riscos. Nossa questão talvez passe pela incapacidade de tradução (Santos, 2004) ou de comunicação de determinados estados (Deleuze e Guattari 2002). A questão de aprender a língua, na escola, não dá conta. Matheus já fez a tradução de que está morto, as suas vísceras já estão expostas mesmo. Esse é um dos desafios que as crianças, com essa origem social, precisam superar além dos outros presentes em suas cotidianidades. Elas aprendem a viver com a previsível quebra das rotinas cotidianas por situações de uso excessivo e abusivo da força pelo estado, por traficantes ou por milícias nos contextos das favelas/periferias/Baixada Fluminense. 

8 - Brevíssima interrupção: à guisa de considerações finais 

Por fim, gostaríamos de ressaltar que não estamos atravessando ninguém, que a gente fala a partir da nossa própria experiência. A pesquisa prescinde do atravessamento do outro. Nas cinco narrativas, há contextos, sujeitos e temporalidades diferentes que formam os nexos empíricos e nos permitem a valorização da experiência dos pesquisadores que expõem as próprias vísceras. Próximos e expostos, temos os corpos abertos por situações de natureza semelhante. O que chamamos por visceralidade impossibilita o distanciamento pregado pelo paradigma cientificista. Também, em nossas pesquisas, procuramos uma postura distinta à proximidade contemplativa ou de uma mistura ou de uma diluição total em que as implicações são impossíveis. 

Em nossas pesquisas, as crianças não são apenas celebradas e deixadas sozinhas na sua experiência como algo de impossível compreensão e conhecimento, porque entendemos que os pequenos dividem conosco, as questões urgentes que implicam a opressão humana. 

No sentido da visceralidade, não podemos expor ou usar o outro (no caso as crianças), não por uma escolha metodológica, mas por uma condição sine qua non dos pesquisadores, que ao interagirem com esses contextos, encontram ressonâncias em suas próprias marcas, ou seja, expõem suas próprias vísceras. 

Com isso, o que está em jogo nessas pesquisas, não é o debate entre uma razão cartesiana (uma pesquisa em dados matematizáveis, universais) e singularidades ou idiossincrasias, mas sim a criação a partir das ressonâncias no corpo e na experiência do pesquisador e das crianças na chegada e não na partida de seus contextos. Abrir o corpo do pesquisador distante do objeto nos permite não tomar o singular como uma particularidade estrita, mas sim, nos perceber habitados por singulares que nos atravessam e ampliam nossas possibilidades de pesquisar. As aberturas viscerais são as zonas de indiscernibilidade que nos equalizam nas situações de opressão. Não ficamos restritos às identidades, às temporalidades ou aos contextos específicos. Buscamos a produção de zonas de encontros. É a condição de opressão que rompe as distâncias ou proximidades fabricadas, e permite a emergência de novos sentidos nas aberturas dos corpos/corpus fechados. Aos viscerais é possível ler o que está em jogo, ou seja, riscos e tensões naquilo que vemos como situações cotidianas. São pesquisas viscerais, na carne que se faz verbo e do verbo que se faz navalha. 



[1] No sentido de não ser um espertalhão ou malandro. 

1  Catatal nome que nasce nas cadeiras e presídios para minúsculos bilhetes através dos quais são enviados mensagens de ordem  práticas e decisões para os bandidos que estão no comando nas favelas.
[2] Sujeito-homem: gíria muito usada na década de 80 para demarcar a honra e masculinidade, ver Alvito (2001).
[3] Cuzão, gíria para covardes.
[4]Alcunha pela qual era conhecido o bandido que obrigou Zacazula a dispensar a bolsa.

Bibliografia

ALVITO, Marcos. As cores de Acari: uma favela carioca. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. 310p.

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras Escolhidas V.I São Paulo Brasiliense, 1994. V.1 245p.

BURROUGHS, William. Almoço Nu. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005. 342p.

DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2007.186p.

FREIRE, Paulo e FAUNDEZ, Antônio. Por uma Pedagogia da Pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.  158p.

SANTOS, Boaventura de Souza Santos. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. IN: SANTOS, Boaventura de Souza Santos(org.) Conhecimento Prudente para uma Vida Decente: um discurso sobre as Ciências Revisitado. São Paulo: Cortez, 2004.

SILVA, Rodrigo Torquato.  Escola-Favela e Favela-Escola: “esse menino não tem jeito!” Petrópolis RJ: De Petrus et Alii: 2012. 208p.

STERN, Daniel. O mundo interpessoal do bebê. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992. 275p.

TEDESCO, Silvia. Estilismo de Si: Ato de fala e Criação. IN: Kastrup, Virgínia, Tedesco, Silvia e Passos, Eduardo. Políticas da Cognição, Porto Alegre, Sulina, 2008.

VYGOTSKI, L.S. Obras Escogidas IV. Psicología Infantil. Madrid, Visor 1984. V.4. 427p.

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