Vilson Sebastião Ferreira
Professor da Rede Pública Municipal de Niterói
Doutorando em Educação na UFF
Ela
sempre está onde está o horizonte
Se
me aproximo dois passos,
Ela
avança dois passos.
Se
caminho dez passos,
Ela
se apressa em deslocar-se dez passos mais adiante.
Mesmo
que eu continue caminhando
Não
consigo alcançá-la jamais.
Então,
para que serve a utopia?
Só
para isto, nada mais.
Para caminhar.
(Um olhar sobre a utopia - Eduardo
Galeano)
Iniciar
a sistematização de uma ideia, de um pensamento, seja ele complexo ou simples,
nem sempre é um momento dos mais promissores e tranquilos. Principalmente se o
que tentamos articular é algo que vai na contra mão de muito do que aprendemos
a saber, a crer e a dizer.
Às
vezes o que temos é só o som do silêncio que disfarça nosso trabalho mental,
monológico, que se põe a articular frases dogmáticas, que em breve sujarão a
folha em branco e porão fim à mudez inicial. O grande desafio nesse caso é
enfrentar e tentar superar o monológico próprio do discurso dogmático que nos
atravessa, quase que invariavelmente.
Outras
vezes, as vozes que nos habitam travam uma batalha pela primazia do olhar que
atravessará as leituras e escolhas que faremos, determinando aquilo que virá a
constituir-se no produto de nossas muitas reflexões em torno do conhecimento.
Nesse processo, muitas vezes se anunciam promessas e projetos cuja declaração
de intenções resulta numa dupla frustração: a do leitor, que esperava ver
cumpridos os anúncios que despertaram seu interesse; e a de quem escreve, posto
ter acreditado num roteiro que parecia tão fecundo, mas que resultou numa
espécie de ficção pouco verossímil. A verossimilhança, nesse caso, não convence
nem a quem ler nem ao dono da pena.
Diante
e apesar de tamanho impasse, que se estabelece quando o corpo que escreve se vê
confrontado pelos limites de uma razão que tudo pretende perscrutar, mas que
muitas vezes se mostra raquítica e impotente frente às incertezas do ainda por
pensar, do improvável, da distante utopia, é preciso materializar em forma de
texto o que nos incomoda, mobiliza e nos faz caminhar. No entanto, já não
poderíamos fazê-lo sozinhos, desacompanhados das muitas vozes que nos
atravessam e fazem da caminhada um “ato bilateral do conhecimento-penetração”
(Bakhtin, 2011), num exercício que permite conhecer e exprimir-se no conhecido,
no encontro de duas consciências que se combinam e se completam, onde existir
só faz sentido para o outro, com a ajuda do outro.
Ora,
dizer isso é mais que apontar um caminho que justificaria as escolhas
metodológicas assumidas pelo pesquisador também implicado na pesquisa. No nosso
caso é principalmente assumir o compromisso ético-estético do ato responsável (Bakhtin, 2010). O ato
na acepção bakhtiniana deve ser compreendido como iniciativa, movimento, ação
arriscada, uma tomada de posição, compromisso que nos torna parte consciente de
um coletivo dinâmico e complexo, fazendo-nos cúmplices dos sujeitos que
constroem esse coletivo.
Tal
compromisso uma vez assumido (em sua radicalidade) pode provocar/produzir, pelo
menos em quem o assume, aquilo que Milton Santos chama de solidariedade de preocupações, promovendo links entre
projetos, sonhos, esperanças, e entre medos, frustrações e até a ausência de
perspectivas em relação ao presente e ao futuro.
No entanto,
vale destacar, nem sempre esse compromisso está muito claro. Por isso, buscar
compreender melhor seus possíveis sentidos e significados precisa ser nosso
mais urgente desafio, principalmente se acreditarmos que também estamos
imbricados e implicados nas questões que as nossas preocupações trazem à tona.
Nosso compromisso, então, residiria em assumir, ser responsável por aquilo que
pensamos e acreditamos, dialogando com outras vozes e correndo os riscos de,
quem sabe, revelar ou adivinhar o que se esconde nas dobras dos nossos
discursos sobre o eu e sobre o outro.
Falar de
solidariedade de preocupações, compromisso, responsabilidade, compreensão, de
vozes que ressoam e, mais que nos habitam, nos incomodam e desestabilizam, é
falar de alteridade. Nesse sentido, talvez a principal questão sobre a qual nos
debruçaremos é o outro, que também inclui nosso controvertido “eu” e nossos
outros “eus”, suas possibilidades, aprendizagens e suas formas múltiplas de
comunicar-se e comunicar o mundo à sua volta. Mas também suas crenças e modos
de pensar e agir que, via de regra, não coincidem com os nossos.
Viver essa
empreitada de adentrar em terreno alheio, mas que também te constitui, requer
cuidados e posturas que incluem deslocamentos, flexões e novas acuidades,
movimentos que possibilitem desaprender coisas para aprender outras. Requer
ainda uma disposição sensível para ouvir as vozes que nos são estranhas, que quase
sempre soam como meros ruídos que nada poderiam significar e que, muito por
tomá-las assim, não conseguimos entender.
Então,
é preciso admitir que apostar em possibilidades que são tomadas e se
transformam em potências vivas para nós – vozes com cara, cor, nome, idade,
suor, no tempo e no espaço – é abrir-se para aquilo que ainda estamos aprendendo
a ouvir, a ver, a pensar sobre. Por isso, embora muito do que aqui se ensaia,
em alguma temporalidade já tenha sido ensaiado, dito, redito, desdito,
acreditamos que, na sua ressurreição, ao reencarnar-se nos sujeitos como
unicidades irrepetíveis, novas perguntas são enunciadas, possibilitando outras
respostas para nossos assombros e inquietações.
Porém,
o que fazer quando não conseguimos pronunciar o que nos interroga? Como fazer
para narrar o que se enviesa, que sai da linha, que foge dos enquadramentos,
que ri do sério, que se faz inominável e por isso mesmo desnorteia nossa
capacidade de dizer? Por outro lado, devemos admitir que muitas vezes, de
muitas maneiras, noss@s alun@s nos mostram enquanto tentamos explicar.
Neste
caso, talvez fosse desnecessário discutir a questão da delimitação do foco de
pesquisa. Talvez. No entanto, a formação do nosso pensamento é algo que orienta
os juízos de valor que fazemos, determinando nossa capacidade de reflexão e
expondo a resistente veia cartesiana que nos atravessa. Por isso, como
pesquisador@s, precisamos constantemente rever e por em questão o que sabemos,
o que nos constitui e constitui nossa racionalidade. Afinal, muito da nossa crise de compreensão e
de sentido pode estar ligada, entre outras coisas, a um certo desejo
(in)confessável de fixar-nos em algo que já sabemos ver, algo que nos dê
segurança para avançar, para, quem sabe, chegar a um topòs, a um lugar
definido, que possa ser reconhecido como um ou o lugar. O contrário disso é a
utopia, o não-lugar, o não-saber, o não-ser.
Estamos, portanto, apostando na utopia como
combustível que, além nos fazer caminhar, nos aproxima dos muitos outros com
quem nos damos cotidianamente, que nos ensinam a aprender, a ensinar, a viver;
que nos ajudam a acreditar que não é por que as coisas são do jeito que nos
acostumamos a vê-las que precisarão continuar sendo.
Apostar na
utopia nos faz tensionar as críticas implacáveis que a escola brasileira do
nosso e de outros tempos tem sido alvo. E a escola pública em especial é, sem
sombra de dúvidas, aquela que mais sofre com as avaliações negativas, não
apenas da sociedade em geral, mas principalmente daqueles que habitam e operam
no cotidiano dos múltiplos espaços educativos do nosso país; ou seja, @s
pedagog@s, professor@s, estudantes, pais e responsáveis por esses estudantes.
Essas críticas dão conta e a apontam principalmente como o lugar (im)provável
para se aprender/ensinar. Ora, ao
optarmos pelo uso do prefixo im – e
seu sinônimo des – entre parênteses,
aqui e em outros momentos, nossa intenção não é enfatizar o significado da
presença desse elemento na palavra que o sucede, determinando o seu contrário,
o que caracterizaria invariavelmente uma dicotomia improdutiva; ao contrário,
pretendemos construir e chamar atenção para a semântica dupla e simultânea de
afirmação e negação, em presença e ausência.
Assim, entre
as muitas coisas que não podemos ignorar está o fato de que aquel@s que se
movem e se formam no dia a dia das escolas e da vida cotidiana comum são
sujeitos sociais, culturais, de pensamento e de aprendizagens, processos esses
inseparáveis dos contextos e das relações sociais de poder
dominação/subordinação. Afinal, não podemos simplesmente esquecer do grande
empreendimento histórico de produção dos outros como subalternos, oprimidos,
colonizados, daqueles que, segundo Spivak, (2010), não podem falar por si, uma vez que são
invariavelmente representados, bem como do constante esforço de apagamento de
suas culturas e memórias coletivas que o padrão de poder/saber impingiu. Ainda
assim, mesmo que falte quem os ouça, não param de falar.
Além disso,
reconhecemos, como bem nos ensinou Paulo Freire, em sua Pedagogia do Oprimido,
que apesar das experiências de dominação/subalternização os sujeitos lutam para
produzir saberes, (re)lendo e (re)escrevendo o mundo. Diante disso, no entanto,
surge como desafiadora e necessária a pergunta de Arroyo (2012, p. 14): “O que
pode haver de formador, humanizador nas vivências da opressão desumanizante?”
Ora, essa
indagação soa como provocação para que venhamos a considerar e “afirmar a
(in)surgência de outras histórias” (Garcia, 2003), de outras formas de narrar
as inquietações que o capitalismo produziu, principalmente aquelas decorrentes
do não cumprimento de muitas das promessas anunciadas pela modernidade.
Nesse
sentido, nos propomos a empreender uma reflexão que busca investigar as
(im)possibilidades de produção de saberes em meio às experiências de
dominação/subalternização a que são submetidos cotidianamente, na escola e na
vida, os filhos e filhas das classes populares, partindo de algumas das
questões que têm mobilizado nosso pensamento e esforço de mediação como
professor, que se assume e se vê como pesquisador, uma vez que compartilhamos o
que aprendemos com Freire (1996) de que ser pesquisador é um atributo que faz
parte da natureza do ato de ensinar, não uma qualidade ou forma de ser e de
agir que se acrescente à prática docente. Afinal, o que se espera e do que
precisamos é de que todo professor assuma uma constante atitude de indagação,
de busca questionadora, uma vez que “não há ensino sem pesquisa” (FREIRE, 1996,
p. 29).
Dentre essas
questões, queremos refletir sobre as possibilidades da linguagem constituir-se
como instrumento de luta na desconstrução das subalternidades. Em termos mais
específicos, procuraremos nos deter sobre algumas resistências cotidianas ao
ensino da língua de poder e como elas
podem vir a configurar outras formas de aprender e de produzir conhecimentos.
Embora me
utilize dessa denominação esteriotipada e cristalizada – língua de poder –, não
temos a alienação nem a pretensão de ignorar que a língua como código que
legisla sobre a linguagem possa ser, por si só, o grande inimigo que
combatemos. Nossa luta é contra um determinado poder que se expressa através da
língua que, como queria Barthes (2007), obriga os sujeitos a dizerem e a
pensarem de uma única forma.
Assim, ao nos
determos para ouvir e compreender as (im)potentes vozes dos sujeitos
subalternizados, na escola, nas ruas, nas redes sociais, buscaremos refletir
sobre alguns dos movimentos que poderiam vir a ser incitados por essas vozes,
principalmente os questionamentos que elas poderiam suscitar ao pensamento
discursivo hegemônico e às praticas pedagógicas que tratam a linguagem como um campo
de questões resolvidas e consolidadas.
Caliban:
resistência e sobrevivência através da linguagem
“A falar me ensinastes, em
verdade. Minha vantagem nisso é ter ficado sabendo como amaldiçoar. Que a peste
vermelha vos carregue, por me terdes ensinado a vossa linguagem.” (SHAKESPEARE,
1999, p.18)
O trecho em
epígrafe nesta seção é um protesto. O que pode parecer estranho, ao primeiro
olhar, é que ele é dirigido a um professor em um tom que poderia ser
interpretado como expressão de ingratidão daquele a quem foi ensinado algo de
grande valor e utilidade. O professor em questão é Próspero e o aprendiz
Caliban, personagens de The Tempest, (A Tempestade), última peça de
Shakespeare, escrita em 1611.
Caliban,
anagrama forjado por Shakespeare a partir de canibal, cujo sentido é o de
antropófago (RETAMAR, 2005), é habitante de uma ilha caribenha conquistada por
Próspero, que o escraviza, obrigando-o a aprender a expressar-se à maneira do
seu mestre e senhor. Afinal, para Próspero, Caliban não possuía língua nem
cultura. Seria, portanto, a personificação do selvagem desprovido de qualquer
intelecto e racionalidade, e que teria sido elevado à condição de homem por
Próspero, quando este o ensina a falar.
Nesse
sentido, ao ensinar sua linguagem a Caliban, Próspero o faz como quem
presenteia o outro com uma dádiva. Essa dádiva da linguagem não significa um
idioma em especial – no caso aqui, o inglês –, mas a fala como expressão de uma
determinada forma de pensar, como um método de pronúncia do mundo (SHAKESPEARE,
1999, p.17)
Quão
difícil me foi ensinar-te a falar!
Antes
de o aprenderes, selvagem,
Nem
o teu próprio pensamento entendias.
Balbuciavas
como uma besta, e eu ensinei-te
As palavras que
traduziam teus pensamentos.
Porém, para Caliban,
aprender a língua e a estrutura do pensamento de Próspero, tanto na acepção da
palavra como figuradamente, é um meio de rebelar-se contra toda impossibilidade
de expressão a partir do seu lugar. Portanto, aprender a língua do seu senhor
significa empoderar-se para amaldiçoá-lo e para lutar por sua liberdade. A
liberdade para poder dizer-se, para afirmar-se nas possibilidades de sua
radicalidade. Em outras palavras, a língua usada como instrumento de poder pelo
colonizador, e imposta ao colonizado, transforma-se em arma de luta para o
colonizado. Esta via dupla por onde a língua circula é um dos aspectos mais
controvertidos e por isso mesmo objeto de discussão daqueles que se interessam
pelas questões ligadas à linguagem: o fato dela ser instrumento, ao mesmo
tempo, de dominação ou manutenção do poder, como também de libertação. Afinal,
no discurso pós-colonial, a linguagem é um dos espaços de luta mais potentes,
uma vez que o processo de colonização começa com a imposição da língua do
colonizador.
Na trama de
Shakespeare, Caliban é o ser condenado a
aprender uma linguagem que não é a sua. Que linguagem é essa? Caliban aprende a
linguagem do seu opressor. Porém, mais que a aprender a linguagem do seu
opressor, ela terá de fazê-lo imerso no mundo de significações que não é o seu.
Ou seja, ele terá de habitar a linguagem pelo discurso do outro. Porque, para
Próspero, que pronuncia o mundo a partir do logos, não há sentido nem
legitimidade em nenhuma outra forma de linguagem que não seja a sua. Assim,
mesmo aprendendo a linguagem de Próspero, Caliban continuará sendo de outra
ordem, continuará balbuciando tal linguagem.
Então, o que
restaria a ele? Amaldiçoar, praguejar.
Substitua-se praguejar por protestar, denunciar, reivindicar, questionar e
temos em Caliban o primeiro contestador de impérios coloniais, o primeiro
nativo a falar de igual para igual com o senhor branco, o primeiro a rogar
pragas contra a sua situação e a pedir justiça. E a usar o vocabulário do
dominador contra ele próprio.
Passando por
todas as adversidades históricas, do preconceito ao extermínio, Caliban é o
nosso símbolo maior – aquele que resiste e sobrevive. Neste sentido, além de
propormos Caliban como nosso símbolo, propomos também algumas reelaborações
conceituais impostas a nós. É a dialética de Caliban – assimilar como honra
aquilo que o colonialismo considerava como injúria. Conforme afirma Roberto
Fernández Retamar (2005), em seu livro Todo
Caliban: “Assumir nuestra condición de Caliban implica repensar nuestra
historia desde el otro lado, desde el
otro protagonista” (p. 37).
Nossa
empreitada, então, seria pensar sobre alguns movimentos que reeditam e
atualizam o drama shakespeareano, em relação ao ensino e aprendizado da língua
portuguesa entre nós brasileiros, depositários de uma herança histórica que
continua a nos assombrar. Nesse sentido, caberia perguntar: o que os muitos
Calibans com quem nos damos cotidianamente poderiam estar afirmando,
questionando e nos ensinando através de sua voz que nos chega como balbucios,
muitas vezes inaudíveis ou incompreensíveis, na escola, nas ruas, nas redes
sociais? Quais os possíveis movimentos que poderiam vir a ser incitados por
essa voz?
Um deles
seria o de questionar o pensamento e o saber hegemônico, utilizando-se de ambos
de forma subversiva e reverberando a possibilidade da presença de outros
sujeitos de conhecimento, podendo submeter o estabelecido à dúvida.
Ora, quando quem
aprende desconfia de um conhecimento consolidado historicamente, o ato de
desconfiar proporciona a abertura, a possibilidade da dúvida e a suspeita em
relação aos processos que estabeleceram o estabelecido. Por exemplo, quando
quem aprende deposita mais confiança e credibilidade em uma ferramenta do mundo
internauta, caso do Google, do que nos livros didáticos, deveríamos ser levados
a pensar que conhecer deveria ser, entre outras coisas, a possibilidade de
dialogar com diferentes olhares sobre o conhecimento. Nesse caso, não é duvidar
por duvidar, questionar por questionar, mas principalmente para expor-se mais
e, quem sabe, vir a saber mais. Para aprender com quem desconfia.
Viver tal
experiência nos ajudaria a entender e a dar consequência à lição que Guimarães
Rosa nos ensina através da voz do narrador de Grande Sertão: Veredas, de que
mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. Mais que isso,
nos ajuda a enfrentar o que Garcia (2003) reconhece como “desafio do mútuo
conhecimento e da necessária aprendizagem em comum”, desafio que não é menor do
que o proposto por Bateson, de compreender o compreender do outro. Nesse
sentido, precisaríamos acreditar e empreender um esforço que venha a socializar
outras formas de conhecer, compreender e produzir conhecimento.
Assim,
enquanto ensinamos, vamos aprendendo. Embora a fluidez dos lugares de quem
ensina possa, em um primeiro momento, causar estranheza ou insegurança para
quem aprendeu a colocar-se na posição de sempre ensinar, aprendemos a acreditar
no intercâmbio entre diferentes experiências de conhecer. Ora, esse
conhecimento é mais da ordem do desaprender do que do saber. Então, para
aprender o que ainda não sabemos com aqueles a quem ensinamos, precisaríamos
desejar conhecer outros roteiros epistemológicos, que inclui o perigo, a troca
de posições, o reconhecimento do outro como aquele cujo saber me completa
(Bakhtin, 2011).
Enveredando
por esses caminhos, lembro-me de uma ocasião em que, ao informar à turma que a
vogal é a base de uma sílaba, podendo haver sílabas sem consoantes, mas não sem
vogal, fui questionado por um aluno nesses termos:
-- Ué, mas eu
escrevo uma palavra inteira sem vogais e todo mundo entende.
Surpreso,
perguntei-lhe:
-- Qual
palavra?
Triunfantemente
gaiato, ele sorri dizendo:
-- Vc.
O tom jocoso
com que o aluno me confrontou fez a turma inteira rir, numa declaração de
assentimento ao que ele afirmava. O riso é um deslocamento que não pede
autorização, ele é acompanhado do ato de dar (Bakhtin, 2011), principalmente se
for coletivo. O riso d@s alun@s me deu a oportunidade de lembrar o que
esquecera. Lembrei de que os primeiros sons da fala a serem representados foram
os consonantais. Quando a escrita ainda era ideográfica, as dificuldades de comunicação
e compreensão das ideias eram muitas, fazendo surgir a necessidade de uma maior
precisão. Os egípcios, por exemplo, chegaram a utilizar 26 sinais, todos para representar
os sons das consoantes – para facilitar a compreensão dos hieróglifos. Mais
tarde vieram a perceber que esses símbolos poderiam ser usados independentes
dos pictogramas. Estava criada a escrita alfabética. Em algum momento, entre
1650-1550 AC, várias comunidades que viviam na área que compreende atualmente
Líbano, Síria e Israel já tinham assimilado o conceito de que era possível
representar a linguagem humana com alguns poucos símbolos; ou seja, usando
apenas consoantes e sem prejuízo para a compreensão.
Então, ser
questionado pelo aluno me fez reaprender algo que já sabia, mas até aquele
momento não havia incorporado à minha prática nem utilizado para compreender o
compreender e o saber utilizados por meus/minhas alun@s cotidianamente nas redes
sociais, sem prejuízos para a semântica dos seus encontros nada virtuais.
Hoje me
pergunto sobre o que me motiva a escrever e a pensar sobre isso. Seria a
manifestação sincera de quem acredita que esses conhecimentos são potentes e
podem contribuir não só para o ensino e aprendizagem das linguagens na escola,
mas para uma maior aproximação com outra ordem de conhecimentos, além do justo
reconhecimento do seu valor e relevância para aqueles a quem tentamos ensinar?
Nesse caso específico, o foco e o mérito são exclusivos d@s alun@s, que
ocuparam um lugar que seria o do professor, desestabilizando a posição e as
certezas de quem ensina. Quem sabe trazer para o debate esses elementos não
seria enfatizar mais a astúcia do professor na condução do processo do que a
intervenção d@s alun@s na afirmação dos seus saberes? Mas, se o que nos
mobiliza, para além disso tudo, é a busca por uma cooptação desses
conhecimentos para enquadrá-los e utilizá-los como meros conteúdos escolares?
Prossigamos na caminhada, apesar dos encruzos.
Em outra
ocasião, uma aluna do 9º ano, numa aula de colocação pronominal, questionou-me:
-- Pra que
precisamos aprender a mesóclise se não vemos ninguém usá-la, nem nós, nem
nossos pais, nem nossos professores, ninguém?
Eu até tentei
explicar que os conhecimentos não são necessariamente para serem utilizados na
sua materialidade direta, embora ajude a complexificar nossa capacidade de
resolver problemas de várias naturezas, mas me dei conta de que ela pôs em
questão a ideia da linguagem como instrumento de comunicação e de encontro de
sentidos com quem interagimos. Porque se aprendemos a conhecer a estrutura da
língua para poder comunicar com mais propriedade nossas ideias e sentimentos,
não haveria muito sentido em conhecer aspectos linguísticos que não serão
necessariamente comunicados. Por outro lado, há conhecimentos relativos à
linguagem que sequer são tratados como relevantes no ensino da língua, tais
como os atos de fala, os sentidos do silêncio, os sentidos improváveis do uso
dos sinais de pontuação consagrados, por exemplo, pela própria literatura
brasileira, sem falar dos dinâmicos e criativos processos que formam novas
palavras para comunicar expressões lexicais até então impensadas.
Isso tem me
feito pensar nos processos de consolidação histórica no Brasil dos saberes
linguísticos que mereceram reconhecimento e legitimação. Partindo dos mesmos
pressupostos e da lógica dos processos ocorridos na Europa, partiram sempre de
modelos considerados científicos, descartando aqueles tidos como não-científicos,
como os falares consagrados por falantes de extratos sociais sem prestígio, os
quais foram ignorados como possibilidade.
Ora, estamos
falando quem sabe do que Foucault defende em Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings como "conhecimento
subjugado", ou seja, "todo um conjunto de conhecimentos que foram
desqualificados como inadequados ou insuficientemente elaborados: conhecimentos
ingênuos, colocados em uma posição inferior na hierarquia dos
conhecimentos, abaixo do nível exigido pela cognição e pela
cientificidade" (FOUCAULT, 1980, p. 82).
Desqualificados,
tratados como ingênuos, ignorados por aquilo que Spivak chama de violência epistêmica, cuja tática de
neutralização do Outro, seja ele subalternizado ou colonizado, consiste em
inviabilizá-lo, expropriando-o de qualquer possibilidade de representação,
silenciando-o. No entanto, eles falam.
Às vezes, gritam. Porque se falar é da ordem do discurso e, portanto, do poder,
o grito, o deboche, o palavrão, surgem como alternativas de expressão da
rebeldia do sujeito colocado à margem desse poder.
Diante do que
temos tentado pensar até aqui, não me preocupa discutir se devemos ou não
ensinar a gramática normativa, consagrada e de prestígio, a noss@s alun@s,
principalmente quando El@s são oriundos das classes populares. Até porque não
seria justo negar tais conhecimentos a quem busca na escola saber mais do que
já sabe. Nossa preocupação e interesse se assentariam na busca por espaços onde
El@s possam articular-se, falar e serem ouvidos, dizerem-se e afirmarem-se a
partir da elaboração própria com que constroem seus conhecimentos.
Entre Caliban e Próspero
Pensar sobre
o que nossos calibans nos propõem é enfrentar desafios e questões de várias
naturezas: ética, estética e epistemológica. Eles fazem perguntas para as quais
talvez ainda não tenhamos as respostas. Que representam problemas para os quais
não temos solução, que ainda não tratamos nem consideramos quando nos propomos
a ensinar. Que nos interrogam de muitas formas: de que ordem são esses
conhecimentos e o que eles podem ensinar?
Em meio a
tais reflexões, vou me dando conta que muito por nos colocarmos do lado de lá
da linha abissal que separa os sujeitos e seus saberes (SANTOS, 2010), nos
desapontamos com o aquilo a que somos apresentados por noss@s alun@s. De alguma
forma, esperamos que, ao nos deparar com o que ainda não entendemos, necessariamente é lidar com
uma outridade alienígena, produzida num vácuo à parte dos processos a que são
submetid@s cotidianamente, como se fosse possível produzir conhecimento fora
das relações culturais. Cada ser é portador de uma visão de mundo única e seus
conhecimentos dialogam com a cultura na qual ele está inserido. Então é relação e unicidade. Pensar
epistemologicamente com esses sujeitos é perceber uma epistemologia concreta da
existência, plural e dialógica. Sempre outra porque cada um é outro. Eles tecem
a multidão de fios ideológicos e nos ensinam como ensinar.
Para aprender com eles, talvez fosse preciso
admitir que, ao invadir as cercas que protegem alguns saberes e segregam
outros, os sujeitos e suas experiências contestam o estabelecido e abrem
caminho para se pensar o que ainda não fomos capazes de compreender, de ver com
outros olhos o que nos acostumamos a reconhecer como o mesmo e, quem sabe,
aprender o que ainda não sabemos.
Para tanto,
nunca é demais relembrar o que Freire (1996, p. 17) nos ensina como atitude
ética a ser adotada em relação ao conhecimento: “Não podemos nos assumir como
sujeitos da procura, da decisão, da ruptura, da opção, como sujeitos
históricos, transformadores, a não se assumindo-nos como sujeitos éticos”.
Por assim
compreender, o que aqui tentamos comunicar é uma tentativa de diálogo com vozes
que nos ajudam a fazer perguntas que ainda não fizemos, a pensar o que ainda
não sabemos, a ver com outros olhos o que pensamos já saber ver e a ouvir o que
até então nossos ouvidos não conseguiram atentar. É enfrentar o desafio
entendendo que ele faz parte da luta de muit@s professor@s que, como nós,
portamos angústias e inquietações coletivas, histórias que precisam ser
narradas, esperanças e sonhos que precisam ser compartilhados.
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Sobre a pergunta da aluna sobre mesóclise, na área que estudo isso acontece demais, já virou até piada:
ResponderExcluir"Para que eu devo aprender a Fórmula de Bhaskara?" Na época que eu era aluno os professores falavam que é para pelo menos passar no vestibular, eu responderia para satisfação própria. Bom, minhas resposta é rasa, não sou educador.