segunda-feira, 6 de outubro de 2014

(IM)POSSÍVEIS RELAÇÕES ENTRE CULTURAS E LINGUAGENS NA ESCOLA E PARA ALÉM DELA


Vilson Sebastião Ferreira

Professor da Rede Pública Municipal de Niterói 
Doutorando em Educação na UFF






Ela sempre está onde está o horizonte
Se me aproximo dois passos,
Ela avança dois passos.
Se caminho dez passos,
Ela se apressa em deslocar-se dez passos mais adiante.
Mesmo que eu continue caminhando
Não consigo alcançá-la jamais.
Então, para que serve a utopia?
Só para isto, nada mais.
Para caminhar.



(Um olhar sobre a utopia - Eduardo Galeano)






Iniciar a sistematização de uma ideia, de um pensamento, seja ele complexo ou simples, nem sempre é um momento dos mais promissores e tranquilos. Principalmente se o que tentamos articular é algo que vai na contra mão de muito do que aprendemos a saber, a crer e a dizer.
Às vezes o que temos é só o som do silêncio que disfarça nosso trabalho mental, monológico, que se põe a articular frases dogmáticas, que em breve sujarão a folha em branco e porão fim à mudez inicial. O grande desafio nesse caso é enfrentar e tentar superar o monológico próprio do discurso dogmático que nos atravessa, quase que invariavelmente.
Outras vezes, as vozes que nos habitam travam uma batalha pela primazia do olhar que atravessará as leituras e escolhas que faremos, determinando aquilo que virá a constituir-se no produto de nossas muitas reflexões em torno do conhecimento. Nesse processo, muitas vezes se anunciam promessas e projetos cuja declaração de intenções resulta numa dupla frustração: a do leitor, que esperava ver cumpridos os anúncios que despertaram seu interesse; e a de quem escreve, posto ter acreditado num roteiro que parecia tão fecundo, mas que resultou numa espécie de ficção pouco verossímil. A verossimilhança, nesse caso, não convence nem a quem ler nem ao dono da pena.
Diante e apesar de tamanho impasse, que se estabelece quando o corpo que escreve se vê confrontado pelos limites de uma razão que tudo pretende perscrutar, mas que muitas vezes se mostra raquítica e impotente frente às incertezas do ainda por pensar, do improvável, da distante utopia, é preciso materializar em forma de texto o que nos incomoda, mobiliza e nos faz caminhar. No entanto, já não poderíamos fazê-lo sozinhos, desacompanhados das muitas vozes que nos atravessam e fazem da caminhada um “ato bilateral do conhecimento-penetração” (Bakhtin, 2011), num exercício que permite conhecer e exprimir-se no conhecido, no encontro de duas consciências que se combinam e se completam, onde existir só faz sentido para o outro, com a ajuda do outro.
Ora, dizer isso é mais que apontar um caminho que justificaria as escolhas metodológicas assumidas pelo pesquisador também implicado na pesquisa. No nosso caso é principalmente assumir o compromisso ético-estético do ato responsável (Bakhtin, 2010). O ato na acepção bakhtiniana deve ser compreendido como iniciativa, movimento, ação arriscada, uma tomada de posição, compromisso que nos torna parte consciente de um coletivo dinâmico e complexo, fazendo-nos cúmplices dos sujeitos que constroem esse coletivo.
Tal compromisso uma vez assumido (em sua radicalidade) pode provocar/produzir, pelo menos em quem o assume, aquilo que Milton Santos chama de solidariedade de preocupações, promovendo links entre projetos, sonhos, esperanças, e entre medos, frustrações e até a ausência de perspectivas em relação ao presente e ao futuro.
No entanto, vale destacar, nem sempre esse compromisso está muito claro. Por isso, buscar compreender melhor seus possíveis sentidos e significados precisa ser nosso mais urgente desafio, principalmente se acreditarmos que também estamos imbricados e implicados nas questões que as nossas preocupações trazem à tona. Nosso compromisso, então, residiria em assumir, ser responsável por aquilo que pensamos e acreditamos, dialogando com outras vozes e correndo os riscos de, quem sabe, revelar ou adivinhar o que se esconde nas dobras dos nossos discursos sobre o eu e sobre o outro.
Falar de solidariedade de preocupações, compromisso, responsabilidade, compreensão, de vozes que ressoam e, mais que nos habitam, nos incomodam e desestabilizam, é falar de alteridade. Nesse sentido, talvez a principal questão sobre a qual nos debruçaremos é o outro, que também inclui nosso controvertido “eu” e nossos outros “eus”, suas possibilidades, aprendizagens e suas formas múltiplas de comunicar-se e comunicar o mundo à sua volta. Mas também suas crenças e modos de pensar e agir que, via de regra, não coincidem com os nossos.
Viver essa empreitada de adentrar em terreno alheio, mas que também te constitui, requer cuidados e posturas que incluem deslocamentos, flexões e novas acuidades, movimentos que possibilitem desaprender coisas para aprender outras. Requer ainda uma disposição sensível para ouvir as vozes que nos são estranhas, que quase sempre soam como meros ruídos que nada poderiam significar e que, muito por tomá-las assim, não conseguimos entender.
Então, é preciso admitir que apostar em possibilidades que são tomadas e se transformam em potências vivas para nós – vozes com cara, cor, nome, idade, suor, no tempo e no espaço – é abrir-se para aquilo que ainda estamos aprendendo a ouvir, a ver, a pensar sobre. Por isso, embora muito do que aqui se ensaia, em alguma temporalidade já tenha sido ensaiado, dito, redito, desdito, acreditamos que, na sua ressurreição, ao reencarnar-se nos sujeitos como unicidades irrepetíveis, novas perguntas são enunciadas, possibilitando outras respostas para nossos assombros e inquietações.
Porém, o que fazer quando não conseguimos pronunciar o que nos interroga? Como fazer para narrar o que se enviesa, que sai da linha, que foge dos enquadramentos, que ri do sério, que se faz inominável e por isso mesmo desnorteia nossa capacidade de dizer? Por outro lado, devemos admitir que muitas vezes, de muitas maneiras, noss@s alun@s nos mostram enquanto tentamos explicar.
Neste caso, talvez fosse desnecessário discutir a questão da delimitação do foco de pesquisa. Talvez. No entanto, a formação do nosso pensamento é algo que orienta os juízos de valor que fazemos, determinando nossa capacidade de reflexão e expondo a resistente veia cartesiana que nos atravessa. Por isso, como pesquisador@s, precisamos constantemente rever e por em questão o que sabemos, o que nos constitui e constitui nossa racionalidade.  Afinal, muito da nossa crise de compreensão e de sentido pode estar ligada, entre outras coisas, a um certo desejo (in)confessável de fixar-nos em algo que já sabemos ver, algo que nos dê segurança para avançar, para, quem sabe, chegar a um topòs, a um lugar definido, que possa ser reconhecido como um ou o lugar. O contrário disso é a utopia, o não-lugar, o não-saber, o não-ser.
 Estamos, portanto, apostando na utopia como combustível que, além nos fazer caminhar, nos aproxima dos muitos outros com quem nos damos cotidianamente, que  nos ensinam a aprender, a ensinar, a viver; que nos ajudam a acreditar que não é por que as coisas são do jeito que nos acostumamos a vê-las que precisarão continuar sendo.
Apostar na utopia nos faz tensionar as críticas implacáveis que a escola brasileira do nosso e de outros tempos tem sido alvo. E a escola pública em especial é, sem sombra de dúvidas, aquela que mais sofre com as avaliações negativas, não apenas da sociedade em geral, mas principalmente daqueles que habitam e operam no cotidiano dos múltiplos espaços educativos do nosso país; ou seja, @s pedagog@s, professor@s, estudantes, pais e responsáveis por esses estudantes. Essas críticas dão conta e a apontam principalmente como o lugar (im)provável para se aprender/ensinar.  Ora, ao optarmos pelo uso do prefixo im – e seu sinônimo des – entre parênteses, aqui e em outros momentos, nossa intenção não é enfatizar o significado da presença desse elemento na palavra que o sucede, determinando o seu contrário, o que caracterizaria invariavelmente uma dicotomia improdutiva; ao contrário, pretendemos construir e chamar atenção para a semântica dupla e simultânea de afirmação e negação, em presença e ausência.
Assim, entre as muitas coisas que não podemos ignorar está o fato de que aquel@s que se movem e se formam no dia a dia das escolas e da vida cotidiana comum são sujeitos sociais, culturais, de pensamento e de aprendizagens, processos esses inseparáveis dos contextos e das relações sociais de poder dominação/subordinação. Afinal, não podemos simplesmente esquecer do grande empreendimento histórico de produção dos outros como subalternos, oprimidos, colonizados, daqueles que, segundo Spivak, (2010),  não podem falar por si, uma vez que são invariavelmente representados, bem como do constante esforço de apagamento de suas culturas e memórias coletivas que o padrão de poder/saber impingiu. Ainda assim, mesmo que falte quem os ouça, não param de falar.
Além disso, reconhecemos, como bem nos ensinou Paulo Freire, em sua Pedagogia do Oprimido, que apesar das experiências de dominação/subalternização os sujeitos lutam para produzir saberes, (re)lendo e (re)escrevendo o mundo. Diante disso, no entanto, surge como desafiadora e necessária a pergunta de Arroyo (2012, p. 14): “O que pode haver de formador, humanizador nas vivências da opressão desumanizante?”
Ora, essa indagação soa como provocação para que venhamos a considerar e “afirmar a (in)surgência de outras histórias” (Garcia, 2003), de outras formas de narrar as inquietações que o capitalismo produziu, principalmente aquelas decorrentes do não cumprimento de muitas das promessas anunciadas pela modernidade. 
Nesse sentido, nos propomos a empreender uma reflexão que busca investigar as (im)possibilidades de produção de saberes em meio às experiências de dominação/subalternização a que são submetidos cotidianamente, na escola e na vida, os filhos e filhas das classes populares, partindo de algumas das questões que têm mobilizado nosso pensamento e esforço de mediação como professor, que se assume e se vê como pesquisador, uma vez que compartilhamos o que aprendemos com Freire (1996) de que ser pesquisador é um atributo que faz parte da natureza do ato de ensinar, não uma qualidade ou forma de ser e de agir que se acrescente à prática docente. Afinal, o que se espera e do que precisamos é de que todo professor assuma uma constante atitude de indagação, de busca questionadora, uma vez que “não há ensino sem pesquisa” (FREIRE, 1996, p. 29).
Dentre essas questões, queremos refletir sobre as possibilidades da linguagem constituir-se como instrumento de luta na desconstrução das subalternidades. Em termos mais específicos, procuraremos nos deter sobre algumas resistências cotidianas ao ensino da língua de poder e como elas podem vir a configurar outras formas de aprender e de produzir conhecimentos.
Embora me utilize dessa denominação esteriotipada e cristalizada – língua de poder –, não temos a alienação nem a pretensão de ignorar que a língua como código que legisla sobre a linguagem possa ser, por si só, o grande inimigo que combatemos. Nossa luta é contra um determinado poder que se expressa através da língua que, como queria Barthes (2007), obriga os sujeitos a dizerem e a pensarem de uma única forma.
Assim, ao nos determos para ouvir e compreender as (im)potentes vozes dos sujeitos subalternizados, na escola, nas ruas, nas redes sociais, buscaremos refletir sobre alguns dos movimentos que poderiam vir a ser incitados por essas vozes, principalmente os questionamentos que elas poderiam suscitar ao pensamento discursivo hegemônico e às praticas pedagógicas que tratam a linguagem como um campo de questões resolvidas e consolidadas.


Caliban: resistência e sobrevivência através da linguagem


“A falar me ensinastes, em verdade. Minha vantagem nisso é ter ficado sabendo como amaldiçoar. Que a peste vermelha vos carregue, por me terdes ensinado a vossa linguagem.” (SHAKESPEARE, 1999, p.18)


O trecho em epígrafe nesta seção é um protesto. O que pode parecer estranho, ao primeiro olhar, é que ele é dirigido a um professor em um tom que poderia ser interpretado como expressão de ingratidão daquele a quem foi ensinado algo de grande valor e utilidade. O professor em questão é Próspero e o aprendiz Caliban, personagens de The Tempest, (A Tempestade), última peça de Shakespeare, escrita em 1611.
Caliban, anagrama forjado por Shakespeare a partir de canibal, cujo sentido é o de antropófago (RETAMAR, 2005), é habitante de uma ilha caribenha conquistada por Próspero, que o escraviza, obrigando-o a aprender a expressar-se à maneira do seu mestre e senhor. Afinal, para Próspero, Caliban não possuía língua nem cultura. Seria, portanto, a personificação do selvagem desprovido de qualquer intelecto e racionalidade, e que teria sido elevado à condição de homem por Próspero, quando este o ensina a falar.
Nesse sentido, ao ensinar sua linguagem a Caliban, Próspero o faz como quem presenteia o outro com uma dádiva. Essa dádiva da linguagem não significa um idioma em especial – no caso aqui, o inglês –, mas a fala como expressão de uma determinada forma de pensar, como um método de pronúncia do mundo (SHAKESPEARE, 1999, p.17)

Quão difícil me foi ensinar-te a falar!
Antes de o aprenderes, selvagem,
Nem o teu próprio pensamento entendias.
Balbuciavas como uma besta, e eu ensinei-te
As palavras que traduziam teus pensamentos.


            Porém, para Caliban, aprender a língua e a estrutura do pensamento de Próspero, tanto na acepção da palavra como figuradamente, é um meio de rebelar-se contra toda impossibilidade de expressão a partir do seu lugar. Portanto, aprender a língua do seu senhor significa empoderar-se para amaldiçoá-lo e para lutar por sua liberdade. A liberdade para poder dizer-se, para afirmar-se nas possibilidades de sua radicalidade. Em outras palavras, a língua usada como instrumento de poder pelo colonizador, e imposta ao colonizado, transforma-se em arma de luta para o colonizado. Esta via dupla por onde a língua circula é um dos aspectos mais controvertidos e por isso mesmo objeto de discussão daqueles que se interessam pelas questões ligadas à linguagem: o fato dela ser instrumento, ao mesmo tempo, de dominação ou manutenção do poder, como também de libertação. Afinal, no discurso pós-colonial, a linguagem é um dos espaços de luta mais potentes, uma vez que o processo de colonização começa com a imposição da língua do colonizador.
Na trama de Shakespeare,  Caliban é o ser condenado a aprender uma linguagem que não é a sua. Que linguagem é essa? Caliban aprende a linguagem do seu opressor. Porém, mais que a aprender a linguagem do seu opressor, ela terá de fazê-lo imerso no mundo de significações que não é o seu. Ou seja, ele terá de habitar a linguagem pelo discurso do outro. Porque, para Próspero, que pronuncia o mundo a partir do logos, não há sentido nem legitimidade em nenhuma outra forma de linguagem que não seja a sua. Assim, mesmo aprendendo a linguagem de Próspero, Caliban continuará sendo de outra ordem, continuará balbuciando tal linguagem.
Então, o que restaria a ele?  Amaldiçoar, praguejar. Substitua-se praguejar por protestar, denunciar, reivindicar, questionar e temos em Caliban o primeiro contestador de impérios coloniais, o primeiro nativo a falar de igual para igual com o senhor branco, o primeiro a rogar pragas contra a sua situação e a pedir justiça. E a usar o vocabulário do dominador contra ele próprio.
Passando por todas as adversidades históricas, do preconceito ao extermínio, Caliban é o nosso símbolo maior – aquele que resiste e sobrevive. Neste sentido, além de propormos Caliban como nosso símbolo, propomos também algumas reelaborações conceituais impostas a nós. É a dialética de Caliban – assimilar como honra aquilo que o colonialismo considerava como injúria. Conforme afirma Roberto Fernández Retamar (2005), em seu livro Todo Caliban: “Assumir nuestra condición de Caliban implica repensar nuestra historia  desde el otro lado, desde el otro protagonista” (p. 37).
Nossa empreitada, então, seria pensar sobre alguns movimentos que reeditam e atualizam o drama shakespeareano, em relação ao ensino e aprendizado da língua portuguesa entre nós brasileiros, depositários de uma herança histórica que continua a nos assombrar. Nesse sentido, caberia perguntar: o que os muitos Calibans com quem nos damos cotidianamente poderiam estar afirmando, questionando e nos ensinando através de sua voz que nos chega como balbucios, muitas vezes inaudíveis ou incompreensíveis, na escola, nas ruas, nas redes sociais? Quais os possíveis movimentos que poderiam vir a ser incitados por essa voz?
Um deles seria o de questionar o pensamento e o saber hegemônico, utilizando-se de ambos de forma subversiva e reverberando a possibilidade da presença de outros sujeitos de conhecimento, podendo submeter o estabelecido à dúvida.
Ora, quando quem aprende desconfia de um conhecimento consolidado historicamente, o ato de desconfiar proporciona a abertura, a possibilidade da dúvida e a suspeita em relação aos processos que estabeleceram o estabelecido. Por exemplo, quando quem aprende deposita mais confiança e credibilidade em uma ferramenta do mundo internauta, caso do Google, do que nos livros didáticos, deveríamos ser levados a pensar que conhecer deveria ser, entre outras coisas, a possibilidade de dialogar com diferentes olhares sobre o conhecimento. Nesse caso, não é duvidar por duvidar, questionar por questionar, mas principalmente para expor-se mais e, quem sabe, vir a saber mais. Para aprender com quem desconfia.
Viver tal experiência nos ajudaria a entender e a dar consequência à lição que Guimarães Rosa nos ensina através da voz do narrador de Grande Sertão: Veredas, de que mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende. Mais que isso, nos ajuda a enfrentar o que Garcia (2003) reconhece como “desafio do mútuo conhecimento e da necessária aprendizagem em comum”, desafio que não é menor do que o proposto por Bateson, de compreender o compreender do outro. Nesse sentido, precisaríamos acreditar e empreender um esforço que venha a socializar outras formas de conhecer, compreender e produzir conhecimento.
Assim, enquanto ensinamos, vamos aprendendo. Embora a fluidez dos lugares de quem ensina possa, em um primeiro momento, causar estranheza ou insegurança para quem aprendeu a colocar-se na posição de sempre ensinar, aprendemos a acreditar no intercâmbio entre diferentes experiências de conhecer. Ora, esse conhecimento é mais da ordem do desaprender do que do saber. Então, para aprender o que ainda não sabemos com aqueles a quem ensinamos, precisaríamos desejar conhecer outros roteiros epistemológicos, que inclui o perigo, a troca de posições, o reconhecimento do outro como aquele cujo saber me completa (Bakhtin, 2011).
Enveredando por esses caminhos, lembro-me de uma ocasião em que, ao informar à turma que a vogal é a base de uma sílaba, podendo haver sílabas sem consoantes, mas não sem vogal, fui questionado por um aluno nesses termos:

-- Ué, mas eu escrevo uma palavra inteira sem vogais e todo mundo entende.
Surpreso, perguntei-lhe:
-- Qual palavra?
Triunfantemente gaiato, ele sorri dizendo:
-- Vc.

O tom jocoso com que o aluno me confrontou fez a turma inteira rir, numa declaração de assentimento ao que ele afirmava. O riso é um deslocamento que não pede autorização, ele é acompanhado do ato de dar (Bakhtin, 2011), principalmente se for coletivo. O riso d@s alun@s me deu a oportunidade de lembrar o que esquecera. Lembrei de que os primeiros sons da fala a serem representados foram os consonantais. Quando a escrita ainda era ideográfica, as dificuldades de comunicação e compreensão das ideias eram muitas, fazendo surgir a necessidade de uma maior precisão. Os egípcios, por exemplo, chegaram a utilizar 26 sinais, todos para representar os sons das consoantes – para facilitar a compreensão dos hieróglifos. Mais tarde vieram a perceber que esses símbolos poderiam ser usados independentes dos pictogramas. Estava criada a escrita alfabética. Em algum momento, entre 1650-1550 AC, várias comunidades que viviam na área que compreende atualmente Líbano, Síria e Israel já tinham assimilado o conceito de que era possível representar a linguagem humana com alguns poucos símbolos; ou seja, usando apenas consoantes e sem prejuízo para a compreensão.
Então, ser questionado pelo aluno me fez reaprender algo que já sabia, mas até aquele momento não havia incorporado à minha prática nem utilizado para compreender o compreender e o saber utilizados por meus/minhas alun@s cotidianamente nas redes sociais, sem prejuízos para a semântica dos seus encontros nada virtuais.
Hoje me pergunto sobre o que me motiva a escrever e a pensar sobre isso. Seria a manifestação sincera de quem acredita que esses conhecimentos são potentes e podem contribuir não só para o ensino e aprendizagem das linguagens na escola, mas para uma maior aproximação com outra ordem de conhecimentos, além do justo reconhecimento do seu valor e relevância para aqueles a quem tentamos ensinar? Nesse caso específico, o foco e o mérito são exclusivos d@s alun@s, que ocuparam um lugar que seria o do professor, desestabilizando a posição e as certezas de quem ensina. Quem sabe trazer para o debate esses elementos não seria enfatizar mais a astúcia do professor na condução do processo do que a intervenção d@s alun@s na afirmação dos seus saberes? Mas, se o que nos mobiliza, para além disso tudo, é a busca por uma cooptação desses conhecimentos para enquadrá-los e utilizá-los como meros conteúdos escolares? Prossigamos na caminhada, apesar dos encruzos.
Em outra ocasião, uma aluna do 9º ano, numa aula de colocação pronominal, questionou-me:

-- Pra que precisamos aprender a mesóclise se não vemos ninguém usá-la, nem nós, nem nossos pais, nem nossos professores, ninguém?

Eu até tentei explicar que os conhecimentos não são necessariamente para serem utilizados na sua materialidade direta, embora ajude a complexificar nossa capacidade de resolver problemas de várias naturezas, mas me dei conta de que ela pôs em questão a ideia da linguagem como instrumento de comunicação e de encontro de sentidos com quem interagimos. Porque se aprendemos a conhecer a estrutura da língua para poder comunicar com mais propriedade nossas ideias e sentimentos, não haveria muito sentido em conhecer aspectos linguísticos que não serão necessariamente comunicados. Por outro lado, há conhecimentos relativos à linguagem que sequer são tratados como relevantes no ensino da língua, tais como os atos de fala, os sentidos do silêncio, os sentidos improváveis do uso dos sinais de pontuação consagrados, por exemplo, pela própria literatura brasileira, sem falar dos dinâmicos e criativos processos que formam novas palavras para comunicar expressões lexicais até então impensadas.
Isso tem me feito pensar nos processos de consolidação histórica no Brasil dos saberes linguísticos que mereceram reconhecimento e legitimação. Partindo dos mesmos pressupostos e da lógica dos processos ocorridos na Europa, partiram sempre de modelos considerados científicos, descartando aqueles tidos como não-científicos, como os falares consagrados por falantes de extratos sociais sem prestígio, os quais foram ignorados como possibilidade.
Ora, estamos falando quem sabe do que Foucault defende em Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings como "conhecimento subjugado", ou seja, "todo um conjunto de conhecimentos que foram desqualificados como inadequados ou insuficientemente elaborados: conhecimentos ingênuos, colocados em uma posição inferior na hierarquia dos conhecimentos, abaixo do nível exigido pela cognição e pela cientificidade" (FOUCAULT, 1980, p. 82).
Desqualificados, tratados como ingênuos, ignorados por aquilo que Spivak chama de violência epistêmica, cuja tática de neutralização do Outro, seja ele subalternizado ou colonizado, consiste em inviabilizá-lo, expropriando-o de qualquer possibilidade de representação, silenciando-o.  No entanto, eles falam. Às vezes, gritam. Porque se falar é da ordem do discurso e, portanto, do poder, o grito, o deboche, o palavrão, surgem como alternativas de expressão da rebeldia do sujeito colocado à margem desse poder.
Diante do que temos tentado pensar até aqui, não me preocupa discutir se devemos ou não ensinar a gramática normativa, consagrada e de prestígio, a noss@s alun@s, principalmente quando El@s são oriundos das classes populares. Até porque não seria justo negar tais conhecimentos a quem busca na escola saber mais do que já sabe. Nossa preocupação e interesse se assentariam na busca por espaços onde El@s possam articular-se, falar e serem ouvidos, dizerem-se e afirmarem-se a partir da elaboração própria com que constroem seus conhecimentos.

Entre Caliban e Próspero

Pensar sobre o que nossos calibans nos propõem é enfrentar desafios e questões de várias naturezas: ética, estética e epistemológica. Eles fazem perguntas para as quais talvez ainda não tenhamos as respostas. Que representam problemas para os quais não temos solução, que ainda não tratamos nem consideramos quando nos propomos a ensinar. Que nos interrogam de muitas formas: de que ordem são esses conhecimentos e o que eles podem ensinar?
Em meio a tais reflexões, vou me dando conta que muito por nos colocarmos do lado de lá da linha abissal que separa os sujeitos e seus saberes (SANTOS, 2010), nos desapontamos com o aquilo a que somos apresentados por noss@s alun@s. De alguma forma, esperamos que, ao nos deparar com o que ainda  não entendemos, necessariamente é lidar com uma outridade alienígena, produzida num vácuo à parte dos processos a que são submetid@s cotidianamente, como se fosse possível produzir conhecimento fora das relações culturais. Cada ser é portador de uma visão de mundo única e seus conhecimentos dialogam com a cultura na qual ele está inserido.  Então é relação e unicidade. Pensar epistemologicamente com esses sujeitos é perceber uma epistemologia concreta da existência, plural e dialógica. Sempre outra porque cada um é outro. Eles tecem a multidão de fios ideológicos e nos ensinam como ensinar.
 Para aprender com eles, talvez fosse preciso admitir que, ao invadir as cercas que protegem alguns saberes e segregam outros, os sujeitos e suas experiências contestam o estabelecido e abrem caminho para se pensar o que ainda não fomos capazes de compreender, de ver com outros olhos o que nos acostumamos a reconhecer como o mesmo e, quem sabe, aprender o que ainda não sabemos.
Para tanto, nunca é demais relembrar o que Freire (1996, p. 17) nos ensina como atitude ética a ser adotada em relação ao conhecimento: “Não podemos nos assumir como sujeitos da procura, da decisão, da ruptura, da opção, como sujeitos históricos, transformadores, a não se assumindo-nos como sujeitos éticos”.
Por assim compreender, o que aqui tentamos comunicar é uma tentativa de diálogo com vozes que nos ajudam a fazer perguntas que ainda não fizemos, a pensar o que ainda não sabemos, a ver com outros olhos o que pensamos já saber ver e a ouvir o que até então nossos ouvidos não conseguiram atentar. É enfrentar o desafio entendendo que ele faz parte da luta de muit@s professor@s que, como nós, portamos angústias e inquietações coletivas, histórias que precisam ser narradas, esperanças e sonhos que precisam ser compartilhados.



BIBLIOGRAFIA
ARROIO, Miguel G. Outros sujeitos, outras pedagogias. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
BAKHTIN, Mikhail. Para uma filosofia do ato responsável. São Paulo: Pedro & João Editores, 2010.
_____________ Estética da criação verbal. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

BARTHES, Roland. Aula. 3ª Ed. São Paulo: Cultrix, 2007.
FOUCAULT, Michel de. Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings. New York: Pantheon, 1980.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 29ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.
_____________Pedagogia do oprimido. 38ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004.
GARCIA, R. L. Para quem investigamos – para quem escrevemos: Reflexões sobre a responsabilidade social do pesquisador. In. GARCIA, R. L. (org.) Para quem pesquisamos para quem escrevemos – o impasse dos intelectuais. São Paulo: Cortez, 2003.
MEMMI, A. Retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007
RETAMAR, Roberto Fernández. Todo Caliban. Buenos Aires : CLACSO, 2005.
SANTOS, B. de Souza. Conhecimento prudente para uma vida decente. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2006.
SANTOS, B. de Souza, MENEZES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 445-491.
____________________. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, B. de Souza, MENEZES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 31-83.
SHAKESPEARE, W. A tempestade. Tradução Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1999.
SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Ed UFMG, 2012.

Um comentário:

  1. Sobre a pergunta da aluna sobre mesóclise, na área que estudo isso acontece demais, já virou até piada:

    "Para que eu devo aprender a Fórmula de Bhaskara?" Na época que eu era aluno os professores falavam que é para pelo menos passar no vestibular, eu responderia para satisfação própria. Bom, minhas resposta é rasa, não sou educador.

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