terça-feira, 28 de outubro de 2014

CINEDUCAÇÃO NO MAIS EDUCAÇÃO


Rosa Miranda

Integrante do Grupo de Pesquisa ALFAVELA/IEAR-UFF
Estudante da Graduação em Cinema-UFF

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O conteúdo deste relato não é exaltar ou depreciar o universo escolar. São impressões vividas empiricamente pela autora, que não pode se eximir dos fatos que ocorreram na unidade escolar onde trabalhou. Tomando o cuidado de não revelar nomes, sem uma visão romântica da função do professor ou de uma escola perfeita, o objetivo é fazer uma análise sobre o espaço escolar em contato com as novas tecnologias.
Certa noite, tomei conhecimento sobre o Programa Mais Educação. Achei muito interessante e queria saber mais sobre o mesmo, mas como meu tempo era curtíssimo, protelei, pesquisei na internet. Soube que, a partir de oficinas de diferentes campos, inclusive cineclube, vídeo etc, o Programa era uma iniciativa do Governo Federal que pretendia transformar o ensino público em um ensino de tempo integral
Um dia cansada do meu antigo trabalho, trabalho este que não me dava tempo para fazer nada do que eu gostava e que também não tinha nada a ver com o que eu estava estudando, fiquei entusiasmada me imaginando dando aulas.
Com o tempo, decidi saber mais sobre o Programa. Era uma forma de ganhar dinheiro e fazer algo que eu realmente gosto. Fui à Secretaria de Educação de São Gonçalo (cidade que eu residia na época) armada com meu currículo e minha declaração de escolaridade.
Conversei com a responsável e a mesma me disse que ligaria assim que tivesse alguma escola com meu perfil, que era muito difícil pedirem algo relacionado a minha área. Jornal e teatro era coisa comum, mas cinema nunca pediram.
Uma semana e nenhuma ligação. Decidi ir até lá, mas ela não estava. Peguei o número e ligava, dia sim e dia sim, sempre perguntando e querendo saber de alguma novidade. Um dia, ao ligar, ela disse: "Você veio aqui! É a garota do cinema! Tem uma escola, mas é longe. Vai querer mesmo?" Eu respondi: "Claro!". Ela avisou para eu ir até lá, pegar o número, o endereço da escola e o nome da diretora. Em 15 minutos eu estava na Secretaria para pegar um papel, um pequeno papel que mudou a minha vida!
Cheguei em casa e fui logo ligando e marcando uma reunião para segunda feira à tarde. Era uma sexta-feira, nem preciso dizer o quão ansiosa fiquei para acabar o fim de semana. Quando chegou segunda-feira, estava em cólicas. Ao meio dia já estava pronta e querendo que chegasse logo às 14 horas, porém, já estava dando a hora e o ônibus não chegava. Liguei para a escola avisando que estava à caminho, a diretora disse que me esperaria.
Cheguei na escola esbaforida às 15 horas. Na minha cabeça, como cheguei um pouco atrasada, achei que não conseguiria o trabalho. A diretora me recebeu sorrindo, se apresentou e pegou meu currículo.
- Já deu aulas para crianças? - questionou a diretora, de forma simpática.
- Sim, cursei o antigo curso normal, mas não o concluí. Montei na varanda da casa do meu pai uma creche na comunidade em que ele morava. Respondi, tentando parecer calma.
- Ótimo! Vou te mostrar a escola.
(E eu sorria, muito feliz).
- Você gosta de crianças?
Ela me fez essas perguntas enquanto andávamos pelos corredores da escola vazia. Os estudantes não estavam mais. Ela abriu a porta de uma sala pequena onde pude ver várias coisas entulhadas.
- Sim, adoro! – respondi, acompanhando e olhando o espaço pequeno onde ela disse que seriam as minhas aulas, muito diferente do que eu imaginei.
- Você deve ficar com essa sala aqui. Estamos em obra, vamos mudar, depois terá uma outra sala onde hoje é a de professores, mas não agora. Vai demorar, no momento é o que temos para vocês. Aqui são 25 alunos por turma no máximo e são 4 turmas. o pessoal da secretaria já te passou o valor?
- Sim. R$ 240 reais, certo?
- Isso. Outra coisa: aqui você vai pegar os piores alunos, os indisciplinados, os violentos, com mau comportamento, mau rendimento e apáticos. Você vai ter que ter voz ativa!
Não falei nada, mas a minha cara disse algo que ela respondeu:
- Qualquer problema é só falar comigo que eu resolvo.
Fiquei pensando como ela resolveria, Voltamos a sala da direção.
- Você começa na segunda-feira, tudo bem? E preciso de outra pessoa na quarta-feira também, pode ser?
- Pode, sem problemas.
- Então fica assim: segunda e quarta o dia todo, ok?
- Ok!
No final de semana planejei uma aula de apresentação e uma dinâmica de apresentação. Eles teriam que dizer o nome, a idade, mais um filme que já assistiram e gostaram. Depois eles iriam escrever em um papel 5 coisas que eles gostavam muito de fazer e 5 coisas que eles não gostavam nem um pouco de fazer.
Cheguei na escola às 9 horas, a aula seria às 10 horas. Arrumei as cadeiras em um círculo enquanto ouvia os gritos deles do lado de fora. Eu estava com um vestido retrô azul e um sapato preto, levemente maquiada, cabelos soltos. Queria causar uma boa impressão aos meus alunos. Saí para o pátio e eles estavam formando e orando ao Senhor, fiquei extremamente incomodada com a forma como eram tratados com gritos e deboche por parte dos inspetores e professores e pensei: “se o Estado é laico, porque na escola tem que rezar?” Entrei novamente para a sala e aguardei aquele ritual acabar.
Me apresentei falando meu nome, idade e filme que gostei de assistir, um filme compatível com a idade deles. Eles sorriam e não pareciam nada com o que a diretora havia dito, até chegar a segunda turma da manhã.
A segunda turma da manhã estava eufórica. Eles gritavam e brincavam. Através de nomes que não consigo mencionar aqui, dois estudantes começaram a se xingar porque, na folha que eu havia entregue com a atividade sugerida, um deles havia colocado o nome de uma das meninas daquela turma. Percebi claramente naquela discussão que havia uma espécie de “casta” dentro da favela. Dependendo do lugar em que se mora, você é de uma classe diferente e, com isso, acontecia o bullying dentro daquela escola. Fiquei atônita olhando para aquelas crianças, até que resolvi intervir e mandar eles pararem imediatamente. O sinal tocou e eles foram dispensados. Fiquei incomodada vendo a sala vazia e pensando no que tinha acontecido. Nada funcionou! Eles rasgaram o papel, não queriam sentar, uma loucura.
Veio a turma da tarde que era dos mais velhos e as injúrias eram piores. Ainda assim, consegui desenvolver atividades com eles, mas estava tão abalada com o que havia acontecido pela manhã que me desanimei na parte da tarde.
Fui para casa me recusando a acreditar no que tinha presenciado. Comecei a reler minha monografia que falava sobre O cinema na educação como formador de um novo público para o cinema nacional. Nela fazia uma discussão a partir de uma visão de mercado, pensando no crescimento do mercado audiovisual caso, desde a primeira infância, fôssemos acostumado a assistir filmes não pedagógicos. Tive vontade de rasgá-la.
Foi-se o primeiro dia. No segundo dia, pedi o aparelho DVD para exibir um filme na TV, já que o projetor ainda não havia chegado na escola. O DVD estava sendo usado numa turma em que a professora faltou e colocaram um filme para os alunos assistirem. Exibi os filmes num monitor de computador. Eram curtas do youtube. Eles reclamaram, mas, ao final, gostaram, apesar de eu ter uma certa dificuldade para fazê-los prestar atenção nos filmes e não nos computadores que, mesmo estando desligados, eles cismaram em teclar e colocar os fones.
Duas semanas depois de tentativas frustradas de fazê-los entender os filmes exibidos, comecei a alugar filmes de longa metragem para eles. Eles gostavam, mas o bate-boca continuava. Fiquei sabendo que haveria um encontro de educadores de cinema e vídeo na UFF no horário das minhas oficinas, pedi que a diretora trocasse meus dias naquela semana para que eu pudesse ir ao encontro. Avisei aos estudantes que eles ficariam com outra professora nos meus dias, mas que eu retornaria. Foi a melhor coisa que eu fiz! Não me arrependo!
Tive diversos insights com relatos de futuros colegas de profissão. Tive acesso a informações e materiais desconhecidos para mim até então. Depois de três dias de encontro, decidi que mudaria minhas aulas e minha postura diante dos educandos. Estava radiante, confiante e empolgada.
Resolvi começar do zero, coloquei as mesmas roupas do meu primeiro encontro com eles, cheguei na escola com outras atividades, levei minha câmera, filmes, 4 papéis 40 kg e pilot. Pedi para eles que fizessem o "estatuto da turma". Eles não sabiam o que era um "estatuto", daí então pegamos o dicionário. Eles entenderam que eram as regras do jogo daquela sala.
Para minha surpresa eles decidiram as mesmas regras que já estavam estabelecidas na escola, com poucas alterações, como o uso de celular, por exemplo. Eu mesma fui avisada pela diretora que havia uma lei federal onde dizia que não se pode usar celular nos espaços escolares. Essa regra foi mantida escondida, porque a turma mesmo questionou: "as professoras usam celular!".
Sem procurar dar repostas, e sem divulgar à direção propus continuar com o uso do celular. Acredito que o fato de eles terem autonomia de dizer SIM ou NÃO mudou a concepção deles de regras. Eles passaram a se policiar mais, foi muito interessante fazer eles perceberem que têm poder de decisão e mudar a visão deles de escola.
Em casa, fiquei pensando um jeito de acabar com as agressões entre eles. Decidi levar uma caixa de sapato que seria confeccionada por eles. Quando eles quisessem gritar, brigar ou xingar outro colega ou qualquer pessoa da escola, sugeri que escrevessem,  desenhassem, enfim, desabafassem, sem colocar o nome, depositando na caixa o desabafo. Essa caixa seria chamada de "Caixa de Pandora". Coloquei algumas folhas e lápis ao lado da caixa. Levei apenas uma caixa pequena, não sabia que eles queriam escrever tanto!
Na semana seguinte, tive que passar no shopping e coletar mais caixas, pois percebi que aquela caixa era muito pequena para eles. Levei então uma caixa para cada turma e eles decidiram que deveríamos abrir a caixa uma vez por semana. Decidiram também que algumas coisas ficariam na caixa, outras seriam descartadas para sempre.
Achei ótimo vê-los às vezes irem para o fundo da sala pegar um papel e rabiscar até esgotar, depois colocar na caixa e voltar pro seu lugar, pensei que iria ler eles se xingando, mas para minha surpresa eles depositavam ali todas as angústias deles, não só da escola como também da família, medos, colegas de fora…
Em outro encontro, eu levei feijões, copos descartáveis e algodão. Pedi pra eles plantassem e fotografassem a cada dia, dessa forma registrariam a evolução daquela planta. Infelizmente não deu certo, pois, como a sala ficava fechada quando não tínhamos aula, eles eram proibidos de entrar e não tinha como fazer. Eles ficaram frustrados e eu também. Tentamos então fazer em casa, porém, nem todos os pais deixavam as crianças usarem as câmeras. Tentamos novamente na escola, mas as faxineiras jogaram os copos fora. Ao fim, conversamos e chegamos à conclusão que nem sempre tudo vai dar certo, mas que tínhamos que tentar. Eles, apesar de chateados, seguiram em frente e uma das estudantes me disse: "Pelo menos tentamos, né, tia?". Respondi que sim e propus outra atividade.
Percebi que eu e aqueles estudantes estávamos mudando a forma como nos relacionávamos: eu confiava neles e eles confiavam em mim. Viramos cúmplices uns dos outros, nos meus almoços eles ficavam comigo.
Em outra ocasião, fizemos uma experiência com o som em um filme. Coloquei o som de uma propaganda do youtube para eles e pedi para eles criassem uma estória a partir dos sons ouvidos. Em seguida, pedi que eles assistissem a mesma propaganda sem o som e escrevessem quais sons eles imaginariam ouvir naquele vídeo. Depois, os alunos assistiram a mesma propaganda com som e ficaram intrigados com a diferença que fazia entre o que eles tinham escrito e o que estavam vendo. Muitas perguntas foram feitas e conclusões tiradas.
Em outro encontro, falei sobre os filmes mudos. Exibi um curta- propaganda de guerra do Chaplin, um filme raro. Depois exibi um curta de animação extra do DVD “Up - Altas Aventuras”, também mudo. Fiz algumas perguntas sobre qual a diferença entre um e outro e eles falaram sobre um ser preto e branco e o outro ser colorido; que um era antigo e o outro novo; que um era desenho e o outro pessoas de verdade. Alguns falaram que conheciam o Chaplin e o associaram ao Chaves, porque ele também era atrapalhado como o herói mexicano.
Durante a exibição, uma professora entrou na sala no momento em que Chaplin martelava um soldado nazista com um grande martelo. Neste mesmo dia, fui chamada à direção. Senti um frio na barriga como quando eu era estudante e era repreendida. A coordenadora ir na minha sala me chamar durante aquele encontro me incomodou. Fiquei pensando se havia ocorrido alguma coisa com algum educando meu. Neste meio tempo, deixei com os estudantes dois sacos de brinquedos doados por filhos de amigos. E também deixei com eles a câmera. Pedi para que eles pegassem os brinquedos e fizessem um filme mudo ou, no máximo, com o som de algum celular.
Na sala da direção, fui chamada a atenção por exibir um filme violento. Ouvi da diretora que eles não sabiam o que era Chaplin e que eu tinha dado pérolas aos porcos. Ouvi também que, a partir de então, ela teria que ver os filmes que eu estava exibindo porque um filme que diminui o policial não é bom para eles. Dizia ela que o filme tinha que ser condizente com a idade. Não respondi nada. Fiquei aborrecida e voltei a sala quieta, mas louca para dar uma resposta.
Ao chegar na sala, eles estavam filmando ainda. Fiquei quieta para não atrapalhar a filmagem. Um grupo colocou até música do celular. Fizeram uma briga de bonecos e um deles recriou uma parte do filme de Chaplin com os brinquedos. Eu não tinha ideia do que eles iriam fazer, mas peguei aquele material e pedi para eles não saírem por um momento que eu colocaria na TV para assistirem o que eles tinham acabado de fazer. Fui na direção e mostrei o que eles fizeram e a diretora. Ela então disse que não interromperia mais as minhas aulas e nem interferiria nos meus métodos, apesar de não concordar com eles.

Na semana seguinte, havia poucos estudantes devido à falta de uma das professoras da tarde. Assim, nos sentamos no chão e fizemos aviões de papéis e balões. Peguei a câmera e dei a eles o tema “liberdade”. Perguntei o que eles queriam filmar naquele dia. Eles quiseram ir a quadra e pediram para eu filmar eles pulando, correndo, se pendurando na trave do gol, estrelinha, cambalhota e rindo muito. Perguntei o que era para eles aquilo e eles gritaram: "Liberdade! Tô livre!".
Para a turma seguinte dei o tema "sonho". Enquanto sentávamos no chão, perguntei a eles: "qual é o seu sonho?". Os meninos queriam ser jogadores de futebol, um queria ser desenhista. Entre as meninas, uma queria ser médica, outra modelo e outra "cuidadora" de cavalo. Falei veterinária e ela concordou. Perguntei então: "qual desses sonhos vamos filmar hoje?".
Eles pediram para eu sair da sala e voltar quando eles decidissem. Eu concordei. Fui beber água e, quando voltei, eles queriam ir para a quadra. Gravaram 2 sonhos, o da médica e dos jogadores de futebol. A médica atendia um jogador que se machucava durante o jogo.
Para a primeira turma da tarde o tema foi "observação". Eles ficaram na sala porque a quadra estava ocupada e brincaram do jogo do "detetive". Eles sorteavam o papel e, em roda, o assassino piscava e matava as vítimas. Por sua vez, o detetive tinha que prender o assassino. Segundo eles, a câmera passava e observava o detetive e, por vezes, as vítimas.
Para a última turma do dia o tema foi "prisão". Decidiram brincar de "polícia e ladrão". Se dividiram em dois grupos, um sendo carcereiro e outro prisioneiros. Os prisioneiros se rebelaram e os policiais tentavam controlá-los com palavrões e agressões. Essa  foi bem complicada porque, quando estava muita algazarra e eu pedia para parar, eles diziam que eram atores e que estavam em uma cena.
Em alguns momentos, quando eles pediam, eu filmava. Achava muito interessante as associações feitas com os temas propostos, desde reação dos carcereiros e dos carcerários, como a relação que fizeram do sonho do jogador com a médica.
Neste período, precisei dar aulas nas segundas e terças. Eles reclamaram pois não foram avisados anteriormente. Mais uma vez, os estudantes foram deixados à margem das informações administrativas. Eu acordei com a direção a mudança dos meus dias, mas a informação não foi repassada a eles. Depois fui perceber que esta era uma problemática recorrente naquele e em outros espaços escolares.
Em outro encontro, passei a falar sobre documentários. Tentei utilizar filmes brasileiros e exibi "Ilha das flores", do diretor Jorge Furtado. Eles passaram a se cumprimentar com os polegares e indicadores como no filme. A discussão sobre o filme foi muito interessante, eles começaram a refletir um pouco mais sobre a realidade deles e a problematizar a escola.
Para contextualizar, devo dizer que nossa sala não tinha ventilador, muito menos ar condicionado, e que o calor era absurdo. No entanto, eles começaram a observar que em alguns espaços da escola, espaços aos quais eles não tinham acesso, havia ar condicionado, internet, água gelada…
Fiz a proposta de fazerem um documentário sobre a escola. Perguntei o que eles queriam filmar daquela escola. "Tudo", eles responderam. Perguntei o que eles queriam saber sobre aquele espaço, e eles responderam "sobre a merenda, sobre a direção, sobre a professora". Pedi para que eles se dividissem em grupos e escolhessem alguém da escola para entrevistarem com 5 perguntas previamente discutida entre eles e com a turma.
Um grupo decidiu me entrevistar, outro decidiu entrevistar a diretora, outros 3 grupos decidiram por 3 professoras diferentes. A elaboração das perguntas foi uma parte um pouco complicada, pois muitas delas, pelas polêmicas levantadas, além de me provocar certo desconforto, podiam me atrapalhar com a direção.
Perguntas como:
- Você come a merenda da escola? Se não, por quê?
- Porque você grita tanto?
- Você gosta do que você faz?
- Por quê na sala dos professores tem ar e na nossa não tem ventilador?
- Você se aborrece muito?
- Você acha que é uma boa professora?
- Você ganha muito para estar aqui?
Eu os orientei a falar sobre o documentário, entregar as perguntas antes, conseguir os entrevistados e fazer a entrevista no próximo encontro que seria na semana outra semana, ou seja: na terça eles fariam a produção e na segunda seguinte filmaríamos. Avisei que não iria me envolver, mas, ao final da aula, conversei com a diretora sobre a proposta de documentários e disse que eles iriam fazer a produção, conversar com os possíveis entrevistados, que perguntariam se seria possível na segunda, qual seria o melhor horário. Afirmei que tudo ficaria sob a responsabilidade deles.
Naquela mesma terça-feira, antes de sair da escola, a diretora me chamou de novo na direção. Disse que eu não iria fazer entrevista nenhuma, que eu parasse com essa história de documentário, que a minha oficina era de cineclube e não de vídeo, que ou eles mudavam as perguntas ou ficariam sem filme nenhum.
A maioria dos escolhidos disseram que responderiam as perguntas, exceto a diretora, por não se sentir à vontade com as questões. O grupo que entrevistaria a diretora ficou desanimado com o ocorrido. Perguntei a eles se não queriam entrevistar outra pessoa, mas eles foram irredutíveis. Sugeri que eles mudassem as perguntas e propusessem a mudança à diretora, mas eles imediatamente disseram não. Perguntei a eles o que poderíamos fazer, afinal, já que estava difícil resolver o impasse. Por fim, eles optaram por mudar as perguntas e eu concordei pra darmos prosseguimento a atividade.
Foram elaboradas novas perguntas, como:
- Você gosta do seu nome?
- Qual a sua idade?
- Você quer mais filhos?
- Você gosta do que você faz?
- O que você gostaria de ser se não fosse diretora?
Eles entregaram na direção e aguardaram o chamado desta. Quase no fim da tarde a diretora foi à sala e disse que poderia fazer a entrevista naquele momento. Eu estava com outra turma, porém, na mesma hora fui acompanhar o grupo que entrevistaria a diretora. Levei a câmera mas deixei a outra turma  sozinha por um tempo, enquanto eles assistiam ao que haviam filmado.
Alguns minutos depois, eles foram devolver a câmera e riam muito, disse a eles que não poderia assistir naquela hora, mas que, no próximo encontro, todos assistiríamos juntos. Logo em seguida, a diretora entrou na sala e me chamou à direção.
Após liberar a turma, fui à direção e a mesma estava irritadíssima. Disse que foi muito maltratada pelos meus estudantes, que ela não aceitava o que tinham feito com ela e que eu deveria repreende-los em sala, do contrário, expulsaria todos. Como ainda não tinha assistido a filmagem deles, não pude debater, só afirmei que conversaria com eles assim que entendesse o que havia acontecido de tão ruim. Ela disse que eles haviam modificado as perguntas.
Em casa, assisti ao vídeo e me preparei para uma conversa que estava marcada para a semana seguinte com a diretora. Pensei em me eximir da culpa, dizer que foi responsabilidade deles, que eu não tinha nada a ver com isso, mas achei, no mínimo, inescrupuloso da minha parte fazer isso. Assumi minha posição como mediadora daquela turma e responsável por propor esta atividade. Conversei com a diretora sem me desculpar e resisti para que nenhum deles fosse criminalizado pela ação espontânea de ter as respostas que eles queriam. Apesar de contrariada por eu ter me colocado a favor deles, a diretora não me dispensou da escola.
A conversa com a turma foi a pior parte para mim. Eles estavam muito apreensivos. Fiz um circulo no chão com eles e falei que a atitude que eles tiveram não havia tido um resultado positivo. Eles não conseguiram obter as respostas que queriam e ainda causaram um desconforto entre eu e a diretora. Sugeri que eles fossem conversar com a diretora e serem verdadeiros ao expor os motivos que os levaram a fazer o que fizeram. Analisei a técnica, disse que constranger o entrevistado não era o ideal, eles assim o fizeram e depois desse incidente não houve mais embate da direção comigo.
Após a exibição de um filme, percebendo que alguns deles tinham muita dificuldade de se expor, resolvi fazer um questionário com perguntas técnicas sobre a obra. Quem respondesse corretamente receberia uma paçoca, já que o programa não permitia avaliações pedagógicas. Atualmente considero problemática essa adestração, mas como na época ainda não tinha os debates que tenho hoje sobre o assunto, consegui obter resultados. Mas, devo admitir, ainda hoje questiono-me se os bons resultados foram pela paçoca ou pelo real interesse em saber do filme.
A diretora não mais entrou em embate comigo, mas tempos depois, um dos meus colegas foi expulso do programa por mal comportamento e, enquanto todas as professoras diziam "ainda bem!", eu dizia "que pena, é menos um aqui comigo".
Em outro encontro percebi o quanto eles adoravam histórias de terror. Fiz uma pesquisa de curtas-metragens desse gênero e exibi na parede da sala com datashow, que foi cedido com muito medo pela direção, pois acreditavam que eu não conseguia operar o equipamento. Depois de muita insistência, consegui não só provar que sabia operar o aparelho bem como ensinar as professoras que se interessavam em aprende a operá-lo.
Alugava filmes em uma locadora próxima à escola com meu próprio dinheiro, depois descobri que a escola poderia me ressarcir. Passei a dar as notas para a professora e ela sempre me reembolsava o valor.
O resultado de um ano de aprendizado naquele universo é a certeza que na sala de aula me sinto realizada, que naquele espaço, mesmo com todas as suas problemáticas e contradições, ainda é um local de formação e autoafirmação, de criação, de identidades e de manifestações culturais das mais diversas.
Tive um contato mais próximo, empírico, em uma unidade educacional dentro de uma comunidade carente. Consegui, mesmo com meu "olhar de fora", ter uma visão diferente daquela romantizada nos filmes que falam de escolas.
A minha visão de escola é que esta é uma instituição que não faz uma reflexão da sua prática e tem uma visão muito “idebizada”, se é que posso dizer isso desta maneira, muito mais preocupada com resultados irreais e nem tampouco coerentes, do que com o resultado real que faz o indivíduo refletir sobre a sua realidade.

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